Copa de graça?

Papagaio verde e amarelo - logotipo da Copa do Brasil 2014 - Fifa World CupQuanto custa a dignidade das pessoas com deficiência?

Estou passando as férias de fim de ano com minha família e amigos na Flórida. Um dos objetivos principais da viagem é levar minha filha mais nova Amanda, de 7 anos, que tem síndrome de Down, nos parques da Disney.

Daqui leio pela internet uma notícia em todos os jornais: Romário e Ronaldo anunciam a doação de 32 mil ingressos para deficientes.

O primeiro pensamento que me vem a mente é que legal! Mas logo depois, um sabor amargo começa a vir à boca…

Como militante do movimento das pessoas com deficiência, desde o nascimento da minha filha tenho me empenhado para que essa parcela da população tenha garantidos os mesmos direitos que qualquer cidadão, em igualdade de condições.

Ou seja, se toda população pode assistir a uma partida de futebol em um estádio, esse estádio tem que estar apto a receber qualquer pessoa. Para isso tem que ter as condições de acessibilidade que permitam a um usuário de cadeira de rodas, por exemplo, se locomover até a arquibancada, cadeiras, ou onde quer que ele tenha adquirido o seu ingresso.

Há pouco tempo, outra notícia relacionando deficiência e Copa não recebeu tanto destaque. alegando limitações de tempo e recursos, os responsáveis pelas obras dos novos estádios que estão sendo construídos para a Copa de 2014 querem reduzir os critérios de acessibilidade, contrariando legislação que diz que todos os espaços públicos devem obedecer ao desenho universal.

Em meio a esse cenário, a CBF “concede” ao Deputado Romário, a gratuidade de ingressos para os jogos da Copa a 32 mil torcedores com deficiência. O sabor na boca vai ficando cada vez mais amargo… Em nosso país temos, segundo o Censo 2010, 45 milhões de brasileiros com deficiência…

Mesmo acreditando que o Deputado Romário não vai esmorecer na cobrança dos critérios de acessibilidade dos estádios, como vem fazendo até agora, e não tendo dúvidas sobre suas boas intenções, gestos como estes fazem muito mais mal do que bem ao ideal de igualdade que tanto almejamos.

A imagem que fica, a mensagem que é reforçada, é de que os “deficientes” são coitadinhos, que não têm condições de comprar ingressos para assistir aos jogos da Copa e que se contentam com migalhas. É o popular “cala a boca”, que tanto tem servido para empurrar problemas com a barriga em nosso país e que, lamentavelmente, ainda são aceitos com profundos agradecimentos e lágrimas nos olhos.

Não há como não sentir o brio ferido pela esmola dissimulada, o assistencialismo disfarçado, a atitude paternalista que nos esforçamos para combater.

Enquanto isso, aqui na Disney, paguei o ingresso como qualquer pessoa para minha filha que tem síndrome de Down. Na entrada do parque digo que ela tem deficiência e que precisa de alguns ajustes para aproveitar o parque. Aviso que ela tem dificuldade de esperar por muito tempo e que com isso pode se tornar agitada.

O rapaz que nos atende nos dá uma etiqueta para colocar no carrinho para, dessa maneira, termos prioridade nas filas e levarmos o carrinho até à entrada das atrações, mesmo onde isso não é permitido a outras pessoas. Até 6 pessoas que estão em nosso grupo podem acompanhá-la.

Há vários funcionários com deficiência trabalhando na Disney. Todos os recepcionistas dos brinquedos estão capacitados para atender visitantes com todos os tipos de necessidade. Todos os parques são acessíveis a cadeiras de rodas (e carrinhos).

Passamos dias felizes e satisfeitos, sem nem nos lembrarmos de que a Amanda tem síndrome de Down, pois as adaptações oferecidas a colocam em igualdade de condições às crianças sem deficiência, assim como diz a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

Mas minha filha não faz parte da média dos brasileiros com deficiência. Ao contrário dos mais de oitenta por cento que vivem abaixo da linha da pobreza, conforme estimativa do Banco Mundial para países em desenvolvimento. Ela nasceu em uma família de classe média alta e não depende da caridade de ninguém para comprar ingressos para um parque ou assistir a uma partida de futebol, ao contrário dos outros 44.975.000 torcedores com deficiência que não vão ganhar um ingresso gratuito.

É por isso que precisamos muito da ajuda de todos os parlamentares. Mas ela será muito mais bem-vinda se for para implementar a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência em sua totalidade, garantindo a todos os cidadãos com deficiência serviços de saúde, educação inclusiva de qualidade capacitação profissional e acesso ao mercado de trabalho, entre outros.

Assim, TODOS poderão adquirir ingressos, com dignidade e assistir os jogos em estádios acessíveis, torcendo pelo Brasil como qualquer brasileiro.

Patricia Almeida, Coordenadora da Inclusive – Inclusão e Cidadania

12 Comments

  1. Patrícia, este mesmo amargor e uma sensação de desconforto passou por mim também quando li a notícia. Pensei: “mais um vez as pessoas vão achar esta cambada, “os bonzinhos” que tratam as pessoas com deficiência “tão bem”….” E quando vi a foto das lágrimas nos olhos do Romário…bom daí foi quase uma crise de enxaqueca!
    Achei este episódio lamentável!

  2. Pat

    Parabéns! Que texto excelente! e que gosto amargo, mesmo… não é isso o que queremos, não é por isso que lutamos.

    Que todos os parlamentares possam lê-lo, refletir e alinhar seus projetos de lei e pronunciamentos à luz da Convenção!

    beijos
    Marta

  3. Texto irretocável. Parabéns!
    Sou presidente da ONG Somar Brasil e postei assim no meu facebook: O que difere a pessoa com deficiência de baixa renda de qualquer outra pessoa de baixa renda? Onde fica a igualdade que tanto buscamos? Facilitem na acessibilidade arquitetônica e de comunicação. Espalhem rampas, banheiros adaptados, intérpretes de Libras, informações em Braille…é disso que precisamos.
    Vamos trocar informações.
    Bjs!
    Thais

  4. obrigada pelo que escreveu……………sou surda e sei oque é discriminação,,,,,,,,,,,,,,,precisamos de ajuda nao de esmola…….

  5. Cleuza
    A inclusão tem que acontecer em todos os momentos , ambientes, de forma digna, pois somos todos iguais, com direitos, deveres, com livre acesso a qualquer ambiente, pois são cidadãos… Exigimos respeito, sobretudo em termos de acessibilidade, ir e vir é um direito de todos…

  6. Passei um tempinho sem vir ao “Inclusive” e de cara me deparei com este texto oportuníssimo, , objetivo, que esclarece com a exata veêmencia a verdadeira questão que envolve a inclusão e a dignidade! Parabéns, Patrícia, mais uma vez! E obrigada por nos brindar com suas reflexões. Logicamente, passarei adiante, para muita gente. Um abraço e boas férias! Elisa

  7. Sou pessoas com deficiência e concordo plenamente com o texto, a midia não da cobertura para a tentativa de flexibilizar a lei que nos garante acessibilidade, mas da cobertura para um ato assistencilista.
    Falam em o que ficara de legado para o povo brasileiro após os 2 grandes eventos, pelo visto nada ficará, pois a unica coisa que interessa é lucro, e para maxcimizar o lucro quanto menos acessilidade melhor, esses igressos serão pagos por alguém? será o deputado que pagará? ou a sociedade.
    E a massa de brasileiros e brasileiras que são excluidos e não são pessoas com deficiência não tem o direito a estar nesses eventos?

  8. Parabéns pelo texto que chamo de “alerta, acorda pessoal”
    Trabalho com crianças com deficiências. Mostro a elas a capacidade de ser independente, autônoma e desenvolver sua habilidade.É inaceitável para mim vê-las por muitos como “coitadas” ou “incapazes”. Creio que já passou da hora de nossos políticos acordarem para a realidade.A pessoa deficiente precisa de acessibilidade, trabalho e acima de tudo RESPEITO.

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