A pessoa com deficiência que não se supera é um…

A capa do superman pendurada num cabide.

Por Lucio Carvalho
da Inclusive

A pessoa com deficiência que não se supera é um…

Um fiasco? Um fracasso? Um traste inútil? Um loser, no melhor sentido made in USA do termo? Mas por que não seria apenas um ser humano como outro qualquer, enquadrado pelas situações normais da vida, lutando sem ter de ganhar, mas apenas por ter de lutar?

Perguntas respondendo perguntas são, para mim, um hábito difícil de superar, então tento tirar alguma vantagem disso, nem que seja para não me dar por satisfeito com respostas prontas ou fáceis, mesmo que isso não me traga nenhum benefício, pelo contrário, me deixe num estado de dúvida permanente. As do parágrafo acima nasceram em minha mente após a ampla difusão, na mídia nacional, da notícia de um jovem que nasceu com a síndrome de Down e comemorava sua aprovação no vestibular de uma universidade pública federal, no estado de Goiás.

Deveria ficar feliz, esfuziante, pelo feito do rapaz. Afinal, diante de tanto descrédito quanto às pessoas com deficiência intelectual e de tantas pedras e outras coisas no caminho, trata-se inegavelmente de um verdadeiro herói. Ou não? Será? E se seu feito for apenas decorrência de uma sequência de situações favoráveis, no que diz respeito às oportunidades, sejam elas de ordem particular, divinas ou socioculturais? Em que medida sua família tem parte em seu sucesso? Seus professores, sua comunidade escolar? Registre-se que, mesmo com todos esses questionamentos, estou muito feliz por ele, por sua família, seus professores, comunidade, etc. Ficarmos felizes importa muito, mas a vida também tem suas infelicidades. É preciso olhar para elas também, até para não confundirmos a felicidade autêntica com a bobeira pura e simples.

A situação do exemplo acima não é emblemática nem única. A todo o momento lê-se, até nos mais sérios meios ditos “inclusivos”, aqueles que lutam ferrenhamente contra estereótipos, preconceitos e todo o eixo do mal, uma manchete dando conta da tal superação. Palavra que traz o heroísmo dentro de si e que transformou-se, nos últimos tempos, num tipo de obrigatoriedade, caso você seja uma pessoa com deficiência e não queira sentir-se um derrotado em vida.

Você que é cadeirante e ainda não fez rapel ou surf, saiba que seu potencial de felicidade está seriamente ameaçado. Você que tem síndrome de Down e não está dando shows, seja nos palcos da vida, nas noites de autógrafos ou nos vestibulares, você precisa fazer algo. Você precisa imediatamente de aulas expressas de alguma coisa, nem que seja pela madrugada, até você ter direito de ser alguém por si próprio, sem andar pendurado em ninguém. Você que é cego ou surdo, dê logo um jeito de sobressair-se em algo, a despeito de sua deficiência. Ai de você, pessoa com deficiência, que pretenda ser apenas um cidadão comum. Como você vai conseguir viver sem ser um exemplo de vida?

Você, leitor, que chegou até esse ponto, deve estar pensando que eu estou super-preocupado com essas coisas. Não, não, não estou. Verdade verdadeira que não. Não acho que nenhum de vocês, meus amigos com deficiência, necessitem mesmo desse super-espanto que as trilhas da superação oferecem àqueles que topam percorrê-las. Nem de super-pena, tampouco. Nem de nada que seja super. Não desejo que vocês abarrotem-se de júbilo pelo fracasso da sociedade em reconhecê-los humanos como são, despejando uma carga de compensação que muitas vezes sequer vocês pretendem ou desejam. Isso é uma super falta de respeito que vocês não deveriam aceitar a menos que… Bem, a menos que não se importem de secularizar essa condição que na verdade não deveria chamar-se de “super”, mas de “sub”, por duro que seja pensar nesses termos.

Então quer dizer que estou dizendo que um cadeirante não deve fazer rapel, uma pessoa com síndrome de Down não esforçar-se nos estudos e assim por diante? Claro que não! Deve fazer se desejar, mas não para satisfazer a ninguém. Não para atestar que precisa ser menos deficiente para ser mais humano, ou palatavelmente humano. A ideia de estar submetido a esses valores é uma armadilha atroz para quem busca uma sociedade verdadeiramente inclusiva. É um jogo de espelhos que se sustenta socialmente na necessidade de negar o reconhecimento legítimo à diferença, com todos os entraves que isso possa trazer ao mundo e suas estruturas oxidadas. Aderindo a esse modelo de pensamento, o que se obtém é a chancela de que a exclusão se resolve a sós, com dinheiro e “superação” a não poder mais. Pode começar a esfalfar-se. Só depende de você, como dizia a propaganda de cigarros.

Já há muito tempo as pessoas com deficiência vem lutando por inclusão e dignidade, o que é justíssimo e absolutamente necessário. É chegado o momento, talvez, de lutar também por liberdade. De liberdade, entre outras coisas, certamente. Mas todas as outras coisas sem liberdade são sub-coisas, não se pode perder isso de mente. Da liberdade semântica, inclusive. A vida não é carnaval, deixemos a fantasia de super-herói guardada para os dias de folia.

Fonte: Inclusive

10 Comments

  1. Excelente texto, partabéns! Sou cadeirante, professora universitária e tenho lutado como nunca para garantir meus direitos.
    Concordo com você.. precisamos sim de inclusão,dignidade, respeito mas também de outras coisas, liberdade e muito mais…e
    Gostei!
    @ZezeFontes

  2. Você não sabe como eu precisava ler isso! Obrigado por ajudar as pessoas a entenderem melhor seu lugar no mundo

    Marta

  3. As pessoas com limitações não podem ser pressionado, achando que tem obrigação de ganhar só a luta o direito de igualdade já é uma vitória, até os ditos normais quando são pressionado, se sentem nervosos, e atrapalha o seu desenvolvimento…

  4. Presado acho que cada dia que vejo alguém que consegue ir mais longe fico feliz não por ele estar provando a sociedade do que ele é capaz, mas sim pelo fato de poder mostrar para a que todos tem o mesmo direito e a mesma capacidade basta ter oportunidade tenho um filho com síndrome de down e se fosse a dez anos atras a frase que eu ouviria das pessoas seria ” ele deve estar em uma escola especial e não junto com os normais” . Acho excelente esses exemplos pois mostram para nós mães que você esquece que é dela que vem maior e mais importante parte do trabalho para que se obtenha algum resultado futuro, tem mães que não levam para tratamentos seus filhos e garanto que se tivessem os feito seus filhos poderiam ter desenvolvido muito mais. Não acho que essas matérias sejam heroísmos mas apenas uma indicação para todos da nação que deficientes ou não temos a mesma capacidade e que podemos acreditar na capacidade dos nossos filhos e não vê-los como inválidos pobres coitados que vão ser inúteis o resto da vida e sim que podemos acreditar que eles podem ,ler escrever, amar, e fazer tudo normalmente eu sou mãe solteira e sempre tive que lutar pelos direitos do meu filho que tem 8 anos e hoje está bem desenvolvido devido estudar em escola inclusiva pública quero apenas que entenda que para mim como mãe essas matérias servem como sinal de que lutar vale a pena. Amanhã não me sentirei culpada por meu filho não ter desenvolvido por falta de estimulos.

  5. Oi Adriana

    Entendo seu ponto de vista e o respeito. Apenas me preocupo que a construção desse estereótipo não implique em frustração para todos aqueles que, por uma ou outra razão, não o perseguem. Se alguém acha que deve, por si mesmo, ou levar um filho a trilhar o caminho da superação, ninguém está aqui para impedi-lo. Mas vamos garantir dignidade tanto aos que conseguem quanto a todos os demais. Pra mim basta que as pessoas se dêem por felizes e vivam com plenitude a sua vida, em qualquer condição, não apenas naquelas em que precisem ser “excepcionais” ou “super qualquer coisa”.

    Um abraço e obrigado pela leitura e pelo comentário
    Lucio

  6. Adorei o texto! Penso tão igual a você que quase achei que eu havia escrito o texto…eehehehhe.
    Estamos juntos na luta pelas mudanças de representações sociais!
    Bjs

  7. Adorei o texto também. Sou mãe de uma criança que tem síndrome de Down e procuro oferecer a ele todos os estímulos que garantam acesso as possibilidades que a vida vai lhe trazer para que ele possa fazer suas escolhas. Acho que temos que tomar cuidado em dosar os estímulos e nossas espectativas. Estímulo demais -no meu ponto de vista – transforma essas crianças em indivíduos hiper ativos, espectativas demais aumentam as chances deles crescerem e ficarem deprimidos se não conseguirem cumpri-las. Vejo na mídia a exaltação dessas crianças quando passam num vestibular, por exemplo. Algumas conseguém, parabéns a elas, seus familiares e rede de apoio. Mas não devemos nos guiar nesses exemplos para medir sucesso, para ter a certeza que nossos esforços e estímulos deram certo. O sucesso é algo extremamente particular. Minha idéia de educação é possibilitar. O caminho que ele vai traçar com isso é dele e ele não precisa nem deve ser um herói nesse caminho, ele só tem que ser ele.

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