Quanto é a água?

Por Rosilene Silva da Costa

– Quanto é a água?

– Dois reais.

– Me vê duas, mas quero geladas.

– Não estou vendendo água.

– Desculpa, pensei que estivesse com ele (apontando o vendedor ambulante negro).

– Por que você pensou isso?

– Desculpa, moça, eu me enganei mesmo (sai apressado e envergonhado).

Diálogo bobinho este, mas reflete uma das facetas mais cruéis e vergonhosas de nosso país: o preconceito racial. Eu falando em preconceito novamente? Sim, eu falando em preconceito novamente, mas digo o motivo. Neste domingo fiz provas para um dos concursos mais concorridos do Brasil: Senado. Cheguei cedinho fiz uma prova, saí para almoçar e quando retornei comprei duas garrafas d’água para enfrentar as outras cinco horas e trinta minutos que teria de prova. Enquanto aguardava para entrar no prédio, fui interpelada por um homem branco de trinta e poucos anos, com o qual mantive o diálogo acima. A pessoa que me abordou imaginou que pela cor da minha pele eu não deveria estar ali para prestar uma prova, mas sim para vender água. Devido a minha caminhada e experiência, eu pude confrontar o rapaz e perguntar o porquê dele pensar que eu era uma vendedora ambulante, porém a atitude de algumas pessoas que estavam próximas fez com que ele depressa saísse, pois diante do ocorrido alguém disse: “Isso dá processo.” Eu discordo disso, afinal ele não foi grosseiro, não discrimou, apenas mostrou o que se pensa no Brasil: o lugar do negro é na cozinha.

No turno da manhã, as provas haviam sido para nível médio, e eu observei que o número de negros era bem pequeno, mas vi alguns circulando – havia como dizer: “negros fizeram a prova”. No turno da tarde, as provas foram para nível superior, e depois do ocorrido eu comecei a procurar meus pares que estivessem visíveis, mas para minha surpresa, vi apenas mais duas mulheres negras e um homem negro naquele local. Se a presença dos negros é tão pequena nestes espaços até que justifica a confusão que o homem fez. Ele não conseguiu perceber que eu usava um vestido longo, sandália de salto alto, nem que carregava uma pasta (Datelli, por sinal) em uma das mãos e, na outra mão, eu equilibrava as duas garrafas de água que ele queria comprar. O que a roupa significa? Minha apresentação pessoal em nada diferia da apresentação das demais mulheres que ali estavam, contudo o meu “defeito de cor” não me colocava ali como concorrente do certame, mas sim como vendedora ambulante.

Quando isto ocorre, é impossível não nos sentirmos desvalorizados, menosprezados e humilhados por causa do racismo. Não vejo nenhum mal em ser vendedor ambulante, o senhor negro que vendia águas em nada difere de mim, no entanto, atitudes assim demonstram o imaginário brasileiro que ainda não admite que o negro saia da cozinha. E este imaginário aflora quando as pessoas menos esperam, no momento em que estão fazendo as suas lidas cotidianas. Para aquele homem, um negro não poderia prestar aquela prova, pois afinal ela exigia uma boa formação acadêmica, boa preparação teórica e ainda o indivíduo precisou desembolsar algum dinheiro. Estes três fatores realmente afastam os negros destas concorrências. Temos hoje um pequeno número de negros com boa formação (mesmo com as cotas e Enem ainda é pequeno o número de afrodescendentes na universidade); a preparação para um concurso exige tempo de estudo e dinheiro, o que nem sempre os negros têm, pois eles acabam os estudos na graduação e precisam trabalhar muito; e a inscrição para o concurso custou cento e noventa reais (valor alto para pessoas que mesmo com curso superior ainda não têm boa colocação no mercado de trabalho). Outro fator que deve ter levado o rapaz a esta conclusão deve ser  que negros não ocupam espaços de trabalho onde o salário beira ou ultrapassa vinte mil reais. Assim, nada justificaria a minha presença ali.

Eu fiz a prova e estou aguardando o resultado, mas isto não sai da minha mente e tenho pensado no quanto é urgente que os negros ocupem espaços que historicamente lhes foram negados. Em concursos deste tipo não podemos abrir mão de exigir que exista uma reserva de vagas, porque isso motivará os negros a se inscreverem e concorrer, pois sabemos que a concorrência não é igual: brancos e negros têm formações diferentes. E garantir vagas em concursos deste tipo, colocará negros em posições importantes nos serviços públicos do Brasil, o que começará a transformar o imaginário que diz que “a negra faz a cocada e o negro sai para vender”.

Fonte: A autora

2 Comments

  1. Muito interessante. Realmente precisamos mudar a nossa própria mentalidade para que sejamos vistos e interpretados da maneira correta. Parabéns pelo relato. Felicidades para você. Abraços

  2. Oi, Rose.
    Somente uma afrodescentende culto e desenvolvido como tu podia dar a real dimensão da situação.
    De longo, salto e Datelli! Como alguém pode te confundir com um vendedor?? Absurdo. É como se a etnia apagasse os outros traços…

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