Se o documentário “Futuro do Pretérito” havia sido bem recebido no domingo na 40ª edição do Festival de Gramado, a exibição de “Colegas”, na noite de segunda-feira (14), se mostrou bem superior. O público bateu palmas em cena aberta e aplaudiu de pé ao final do filme, protagonizado por atores com síndrome de Down.
O “road movie” mostra uma garota e dois garotos, portadores da deficiência, que fogem do instituto onde vivem no Karmann Ghia vermelho do jardineiro (Lima Duarte), inspirados depois de ver “Thelma e Louise”. Usando máscaras de palhaço, roubam lojas pelo caminho, cada um querendo realizar um sonho: ver o mar, se casar e voar.
Tudo num clima de aventura e humor leve e adorável, mas que não pareceu atrativo para os investidores. “A arrecadação de recursos foi a parte mais difícil. Os empresários achavam que iam atrelar sua marca à síndrome de Down, e que isso não seria bom”, comentou o diretor Marcelo Galvão na terça-feira (14).
Responsável também por filmes como “Rinha” e “Bellini e o Demônio”, ambos de 2008, Galvão fez testes com mais de 300 jovens em busca do elenco. Daí saiu Breno Viola e boa parte dos figurantes. Para escalar os outros dois protagonistas, foi mais fácil: casados na vida real, Ariel Goldenberg e Rita Pokk já haviam aparecido no documentário “Do Luto à Luta” (2005), de Evaldo Mocarzel.
O diretor admitiu ter crescido convivendo com um tio com síndrome de Down, ao contrário de boa parte da população, que vê os portadores com preconceito. “O principal problema é o desconhecimento. A partir do primeiro contato, a gente quer sempre estar ali, ao lado deles.”
Definindo seu trabalho como uma comédia infanto-juvenil, Galvão aposta que “Colegas”, com estreia prevista para novembro, terá recepção especial entre as crianças. “Acho que vai virar referência entre filmes de infância”, afirmou. “A partir dele, as pessoas vão desenvolver um olhar diferente para a síndrome de Down.”
Se depender do otimismo dos atores, a batalha já está ganha. Ariel disse esperar que o filme faça um “sucesso fenomenal”, enquanto Rita, sem se importar com a modéstia, já ensaiava o discurso para subir no palco na entrega dos Kikitos, “esse Oscar”.
“Foi tão bom fazer esse filme, uma energia tão boa, que isso ficou impresso na tela”, finalizou o diretor.
*Fantasia cinéfila*
Um pouco antes da exibição no Palácio dos Festivais, Marcelo Galvão deu um conselho: “Esqueçam que os atores têm síndrome de Down e viajem na história”. Nem precisava. Em pouco tempo, o público mergulha sem dificuldade nessa grande homenagem ao cinema que é “Colegas”.
A trama é repleta de referências principalmente a filmes hollywoodianos, a começar pelo nome de um dos personagens principais, Stalone. É a ponta de um novelo que se vai desfiando ao longo de todo o filme. Dos diálogos ao cenário, há garantia de diversão para qualquer fissurado em cultura pop. “Homens de Preto”, “Pulp Fiction”, “Cães de Aluguel”, “E o Vento Levou”, “Jules e Jim – Uma Mulher para Dois”, “Psicose”, “A Vida é Bela”… A lista é longa, e se encaixa com perfeição no mundo de fantasia criado pelo diretor.
“Colegas” se passa num universo onírico, longe da realidade. Stalone, Aninha e Márcio, o trio protagonista, fogem do instituto em que viviam usando pijamas, e ficam assim boa parte da história, só alternando para usarem roupas de super-herói, de sultão e de princesa.
Enquanto disparam de carro por estradas poeirentas, ainda atravessam um campo de girassóis, passeiam pelas falésias do litoral norte gaúcho, andam de balão e vão parar em Buenos Aires, tudo embalado pela direção de fotografia cristalina de Rodrigo Tavares. Nessa intimidade que se cria com o espectador, tudo passa a ser possível.
Aliada às belas imagens, a trilha sonora original de Ed Côrtes conquista, ainda mais pelo punhado de canções de Raul Seixas (ele mesmo um personagem) que embalam a história. Mas “Colegas” ainda se apoia no carisma de seus personagens e em um humor fácil, debochado, às vezes negro e até corrosivo — o retrato dos jornalistas que fazem a cobertura dos “ladrões perigosos” é impagável.
Plural desse jeito, o filme tem potencial para agradar aos públicos mais diversos. A princípio, o politicamente correto tornava quase que obrigatório falar bem de um filme estrelado por atores com uma deficiência. “Colegas” não precisa desse sentimento: é excelente.
Fonte: Último Segundo