Por Sueli Pecci Passerini
no Estado de São Paulo
Alfabetizar precocemente significa empurrar a criança para o mundo adulto antes da hora, analisa psicopedagoga.
É possível alfabetizar uma criança com menos de 7, 6 ou até 5 anos de idade? Sim, é possível alfabetizar muito cedo uma criança. Mas será uma alfabetização significativa? Que comprometimentos podem advir do que entendemos como aceleração da alfabetização? Qual é o ganho efetivo para a criança?
Ouço muitas vezes no consultório os pais preocupados com o futuro caminho profissional definido pelo vestibular de seu filho ou filha de apenas 3, 4, 5 anos. Quando pergunto aos pais o que eles entendem do brincar de sua criança, geralmente respondem que é apenas um passatempo, exceto pelos jogos de raciocínio. Eles consideram importante preparar a sua criança para a vida, para a competição do mundo, para uma profissão que lhe dê “felicidade”- palavra quase sempre atrelada a “dinheiro”.
No entanto, se olhamos a criança quando ela está brincando, fantasiando, subindo em árvores ou correndo com outras crianças, verificamos um universo muito particular no qual ela desenvolve capacidades e uma confiança que, muitas vezes, não encontramos no universo dos adultos bem sucedidos. É por esse motivo que nas escolas Waldorf nós defendemos que até pelo menos os 6 ou 7 anos a criança simplesmente… brinque. O tempo que alguns julgam que ela “perde” por não ser rapidamente alfabetizada, ela na verdade ganha, acumulando forças e mecanismos internos para poder enfrentar o mundo que às vezes tanto preocupa os adultos.
Há quase 100 anos da fundação da primeira escola Waldorf na Alemanha, cuja concepção, denominada Antroposofia, foi elaborada pelo filósofo Rudolf Steiner, acreditamos cada vez mais nessa prática, hoje disseminada em mais de 3 mil instituições em todo o mundo, orientando educadores quanto a essa questão. A antropologia antroposófica reconhece a importância do desenvolvimento físico, anímico e espiritual do ser humano em formação. E os sete primeiros anos da criança, por exemplo, representam uma fase de grande dispêndio de energia para preparar toda uma condição física. Isso se evidencia no princípio da troca dos dentes e em um desenvolvimento neurológico e sensorial que tem sua expressão no domínio corporal, na linguagem oral, na fantasia, na inteligência.
Contudo, é na atividade do brincar que essas capacidades são desenvolvidas com alegria e seriedade, com atenção e responsabilidade, com segurança e confiança em um mundo bom, que não exige da criança além de suas possibilidades, ou seja, uma entrada precoce no mundo adulto. E alfabetizar precocemente significa empurrar a criança para o mundo adulto (para o qual ela não está preparada, portanto) antes da hora, um gasto de energia que poderá fazer falta na vida futura dela.
Em minha experiência docente, assim como psicopedagógica, sempre constato que, para uma criança pequena, o código alfabético é estéril, sem cor, sem beleza, pois é abstrato e desconhecido. Mesmo depois de alfabetizada, é o desenho que representa tão significativamente as suas vivências. Podemos verificar tal condição quando estudamos a escrita de nossos antepassados e a forma de comunicação de nossas crianças, o desenho. A escrita do povo egípcio, os hieróglifos, é a representação objetiva da realidade, ou seja, a re(a)presentação do mundo sensório pelo desenho. Mas quando em 3.000 a.C. surgiu a escrita fonética dos fenícios, ocorreu um distanciamento dessa forma de expressão, porque o fonema não tem mais relação direta com os elementos do mundo circundante.
O desenho da criança é, portanto, a sua forma de comunicação natural, semelhante aos antigos egípcios, que revela seu universo infantil com o código que lhe é caro e próprio. Quando a sua criança lhe mostra um desenho que tenha feito, ela está lhe contando como vê o mundo, como se sente, se está alegre ou triste. Não é só a escrita que é capaz disso.
Nas escolas Waldorf a alfabetização pelo código fonético inicia-se pelo desenho, de forma lenta e gradual, a partir dos 6 anos, mas o desenho e a pintura correm em paralelo por toda a escolaridade, como uma forma de comunicação tão importante quanto nossa linguagem escrita.
A pedagogia Waldorf pressupõe que o professor, realizador dessa pedagogia, conheça o ser humano em seu desenvolvimento geral, respeite o contexto sociocultural em que o aluno está inserido e saiba organizar seu ensino privilegiando a brincadeira, o canto, a dança, para que a alfabetização (e qualquer outro conteúdo de ensino) tenha significado e seja efetiva.
Entendemos o brincar como o princípio lúdico que embasa as atividades artísticas e orienta toda a prática docente,masque também significa ou re-significa o ensino-aprendizado, pois é o motivo, o vínculo afetivo como professor e com o conteúdo.Termino coma frase do filósofo Friedrich Schiller:”O homem só brinca ou joga enquanto é homem no pleno sentido da palavra, e só é homem enquanto brinca ou joga”.
* Doutora em psicologia pela USP, professora da FAAP e autora de O Fio de Ariadne – Um Caminho para A Narração de Histórias. Coordena cursos de pós-graduação em pedagogia Waldorf e integra a Aliança pela Infância.