Izabel de Loureiro Maior*
A segurança das pessoas, que deveria ser a regra, somente é lembrada na comoção que segue uma tragédia, como a que tirou a vida de mais de duas centenas e deixou mais de cem frequentadores da boate “Kiss” com lesões severas (ainda com ameaça de morte), a maioria jovens universitários de Santa Maria, na madrugada do dia 27 de janeiro. Encontravam-se encurralados sem o saber – e foram submetidos ao fogo e à asfixia criminosa.
Com um soco no estômago e forte dor de consciência, o Brasil acordou para a precaríssima fiscalização a cargo do poder público, que se soma à negligência de empresários que exploram atividades em recintos fechados e recebem grande público. Esses locais também podem ser de propriedade ou operados pelo próprio governo e não nos causa surpresa serem lá encontradas as mesmas condições de desrespeito pela vida humana.
Em Santa Maria não houve fatalidade, e sim uma cadeia de irresponsabilidades da qual até agora não se conhecem nem o fim nem o começo, tampouco o grau de culpabilidade dos envolvidos. Quem não estava lá sabe que pode ter corrido risco igual – ou estar prestes a cair em semelhante arapuca.
“Reação” está sendo a palavra de ordem nos últimos dias. Ação preventiva entrou em cena, como nunca poderia ter deixado de acontecer. Estabelecimentos, agora vistoriados às pressas e lacrados por não apresentarem condições de funcionamento, eram indevidamente tolerados.
Os frequentadores como idosos, crianças e pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida não têm a mínima chance de sobrevivência nas “boates Kiss” que existem ao largo. E não é por falta de regras de acessibilidade. Tanto as normas técnicas de construção e de segurança como o Decreto nº 5.296/2004 determinam as condições obrigatórias a serem cumpridas. Este decreto contém parâmetros de acessibilidade, no conceito do desenho universal, que não são específicos para as pessoas com deficiência, já que teriam salvado a vida dos frequentadores da festa trágica. O decreto diz o seguinte:
Art. 23. Os teatros, cinemas, auditórios, estádios, ginásios de esporte, casas de espetáculos, salas de conferências e similares reservarão, pelo menos, dois por cento da lotação do estabelecimento para pessoas em cadeira de rodas, distribuídos pelo recinto em locais diversos, de boa visibilidade, próximos aos corredores, devidamente sinalizados, evitando-se áreas segregadas de público e a obstrução das saídas, em conformidade com as normas técnicas de acessibilidade da ABNT.
§ 4o Nos locais referidos no caput, haverá, obrigatoriamente, rotas de fuga e saídas de emergência acessíveis, conforme padrões das normas técnicas de acessibilidade da ABNT, a fim de permitir a saída segura de pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida, em caso de emergência.
O texto é de fácil entendimento pelo proprietário ou operador dos espaços, pelo profissional que os projeta e ainda mais corriqueiro para os agentes públicos que concedem a multiplicidade de documentos indispensáveis (será mesmo?) para que entrem em funcionamento. Entretanto, via de regra, nada é inspecionado como deveria e as mudanças necessárias também não ocorrem e são deixadas de lado.
As determinações citadas acima se aplicam conforme o artigo 13: “Orientam-se, no que couber, pelas regras previstas nas normas técnicas brasileiras de acessibilidade, na legislação específica, observado o disposto na Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001, e neste Decreto:.. II – o Código de Obras, Código de Postura, a Lei de Uso e Ocupação do Solo e a Lei do Sistema Viário;…”
Ficar em casa, ou sair e encontrar a galera depende da vontade de cada pessoa. Para que a escolha de fato exista, o movimento social das pessoas com deficiência lutou por seus direitos de participação na vida comunitária ao longo dos últimos 30 anos e ainda se confronta com diversas formas de discriminação, algumas delas não reconhecidas com facilidade. É o caso da inexistência do direito básico à acessibilidade física, de comunicação, de informação, nos transportes e no uso de tecnologia assistiva que aumenta sua funcionalidade e bem-estar.
Acessibilidade e inclusão são inseparáveis, significam igualdade de oportunidades e ganharam mais força como direito da pessoa e obrigação da sociedade, quer seja no âmbito público como no privado, com a adoção da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada de maneira inédita com equivalência à emenda constitucional (Decreto Legislativo nº 186/2008 e Decreto nº 6.949/2009, do Executivo). A Convenção, homologada pela ONU em 2006, representa um novo marco regulatório de cidadania para as pessoas com deficiência no país e no mundo. Aqui são 45,6 milhões e no mundo correspondem a um bilhão de pessoas, segundo dados do Censo IBGE-2010 e da OMS em 2011, respectivamente.
A Convenção está acima das leis, dos decretos, dos códigos, das normas de segurança e supre as lacunas que ainda existam para garantir o direito humano de viver ativamente na comunidade. Tudo aquilo que a Convenção determina se impõe aos municípios, estados, à União, ao Poder Legislativo, ao Judiciário e à sociedade.
De acordo com o artigo 30 da Convenção ratificada, é obrigação do Brasil reconhecer o direito das pessoas com deficiência de participar na vida cultural, e para isso precisa tomar medidas apropriadas, entre elas “… ter acesso a locais que ofereçam serviços ou eventos culturais, tais como teatros, museus, cinemas, bibliotecas e serviços turísticos”.
Além dessas atividades, manda a Convenção assegurar que as pessoas com deficiência participem, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de atividades recreativas, esportivas e de lazer, sendo obrigação do poder público tomar as medidas de acesso aos locais desses eventos e assegurar que as pessoas com deficiência usufruam dos serviços prestados por pessoas ou entidades envolvidas na organização de atividades recreativas, turísticas, esportivas e de lazer, resumindo o artigo.
Algumas vezes, mesmo correndo o risco de ser repetitivo, o texto da lei deve ser mostrado para divulgar o que as pessoas com deficiência têm direito, como todo mundo, e não deixar dúvida na cabeça de quem ainda não tenha despertado para o assunto.
Não é por acaso que conscientizar é um dos pontos fortes cobrados pela Convenção da ONU, e precisa ser feito com ações imediatas, efetivas e apropriadas para combater estereótipos, preconceitos e práticas nocivas em relação às pessoas com deficiência.
Campanhas bem elaboradas, variadas e veiculadas continuamente servem muito bem ao propósito de dizer ao público quem são as pessoas com deficiência, para combater a discriminação, “favorecer atitude receptiva em relação aos seus direitos e promover percepção positiva e maior consciência social em relação a elas”, extraído do artigo 8.
Voltando ao caso dos shows, bailes e baladas e o público que em maior número os frequenta, campanhas e redes sociais se complementam. É fácil, rápido e eficiente curtir, compartilhar e comentar as regras de segurança a serem observadas e fiscalizadas por todos, disseminar a informação que acessibilidade é primordial para todos (como direito de frequentar os locais para as pessoas com deficiência e como rota de fuga para qualquer um), denunciar ambientes fora das normas, denunciar casas violentas e discriminadoras, divulgar aquelas que são seguras senso amplo, tal como se faz ao dizer onde estão os ambientes mais agitados e interessantes.
Há muitos aspectos importantes frente à realidade que ainda se desenrola em Santa Maria, que vai deixar sequelas graves nas pessoas atingidas diretamente, sejam feridos, sobreviventes, famílias e amigos e repercutirá em todos os brasileiros e em suas cidades.
O primeiro ponto é desmascarar o “faz de conta” da fiscalização que, ao se dar de maneira fragmentada, acaba por não ser de responsabilidade de ninguém, quando a ideia é justamente a oposta. Espera-se que órgãos públicos e agentes idôneos atuem desde o projeto de construção ou de reforma incorporando o desenho universal (onde acessibilidade é carro-chefe), passando por todas as normas de adequação para aquilo a que o espaço fechado ou aberto se destina, com as garantias de segurança redobradas (não podem ser regras tão mínimas) para a vida humana. Não menos relevante é o controle sobre o funcionamento, quando superlotar a casa para o maior lucro está acima de qualquer coisa, mostrando a tolerância capitalista nefasta. Tudo cheira à fumaça da corrupção, como se sabe.
O segundo aspecto a ressaltar é a conscientização do público para a necessidade de cobrar segurança, denunciar o não-atendimento das normas e para isso tem de haver divulgação e preparo. Reconhecer entradas e saídas com acessibilidade, dimensões compatíveis com a capacidade de lotação (espaço bem grande e muitas portas largas abrindo para fora cm fácil acionamento), equipamentos de combate ao fogo como sprinklers (chuveiros automáticos para extinção de incêndios) e extintores de CO2, água ou pó químico, de acordo com o material que pode se incendiar, data de validade, sinalização que realmente aponte para as rotas de fuga.
Ainda nesse aspecto, os chamados “seguranças” não podem incitar e usar a prática da violência para prevenir abusos e manter o ambiente sadio, menos ainda participarem do crime organizado. Não se entende que haja regras para outros agentes particulares de segurança (de bancos, edificações, portarias) e nada seja requerido dos seguranças de boates e de quem os contrata.
Cabe lembrar o olhar míope para a venda de drogas e seu consumo, assunto de tamanha complexidade e tema de saúde pública, que porisso mesmo foge do alcance nesta abordagem sobre segurança. Mas que existe, não se tem dúvida, e que interfere com a segurança individual e social também não.
O terceiro ponto destaca os frequentadores e sua garantia de entretenimento, cultura, esporte, congraçamento, tudo com urbanidade e respeito às diferentes pessoas, chamando atenção para as pessoas com deficiência. Pessoas com deficiência intelectual, síndrome de Down, surdas, cegas, cadeirantes e muletantes gostam de frequentar boates e baladas, dançar, conversar, chegar junto e ficar, como é natural, sempre em condições de segurança para a sua integridade física e emocional, como qualquer outra pessoa.
São tantos os ângulos da segurança que um artigo não os esgota como a ação tempestiva e profissional de brigadas de incêndio e bombeiros, defesa civil, equipes de saúde, serviços de transporte de feridos, unidades de saúde, equipamentos de resgate e de atendimento, unidades de terapia intensiva, além de insumos para a saúde.
Não se pode passar ao largo, devido à sua importância, das atividades de apuração das causas dos incêndios e de outros sinistros, a perícia técnica e a medicina legal, as polícias investigativas, o ministério público e os tribunais. É imperioso conhecer como estão preparadas ou despreparadas e como cuidam do direito humano à segurança as instituições como prefeituras, governos estaduais e federal e legisladores, todos escolhidos pelo voto direto.
A proposta aqui trazida é não deixar cair no esquecimento os múltiplos e inaceitáveis erros que levaram à tragédia social em Santa Maria. Temos este ano a Jornada Mundial da Juventude e a Copa das Confederações, seguidas pela Copa da FIFA 2014 e Jogos Olímpicos e Paraolímpicos 2016. Então é indispensável ter consciência da ação preventiva que compete ao governo e à sociedade e as consequências punitivas correspondentes. Não aceitar a tolerância a riscos como incêndios e outras situações que estão à espreita em milhares de ambientes frequentados dia e noite. Enfatizar que a vistoria que está começando a ser feita cumpra a lei de forma verdadeira e coloque acessibilidade como requisito de segurança. Reafirmar o direito de todos de frequentar lugares desejados e, particularizando para as pessoas com deficiência, significa não haver mais estranhamento, discriminação e falta de condições acessíveis do meio. E finalizar chamando os protagonistas das redes sociais para serem fiscais das condições de inclusão e segurança da sociedade.
* Docente da Faculdade de Medicina da UFRJ, consultora em direitos humanos, acessibilidade e inclusão, atuou na consultoria de acessibilidade da Rio+20, é ex-secretária da Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos das Pessoas com Deficiência. Participou na ONU da elaboração da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de sua ratificação no Brasil.
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