
Por Gil Pena *
Eu confesso que nunca senti tristeza por ter uma filha com síndrome de Down. Eu quero confessar o contrário disso, já me entristeci, nunca pela existência da minha filha, ou da síndrome, mas o fato de ela existir tornou-me mais susceptível a me entristecer com as pessoas com quem de um modo ou de outro eu lido no mundo. A primeira vez que me dei conta disso foi quando encontrei uma contemporânea do curso de medicina, em uma agência de viagem, logo após a Sofia ter nascido. Eu tinha comigo uma sensação boa de ser pai, o de primeira viagem, na viagem que agora empreendia, a pequena bebê, em casa, um futuro novo, desconhecido, que eu me sabia capaz de conduzir com serenidade, curtindo cada dia, fosse ele de alegria, eventualmente de tristeza.
Ia à agência para trocar uma passagem aérea, para que o tio de Sofia pudesse vir vê-la. Lá estava essa conhecida, que acertava os últimos detalhes de viagem a Miami, para a compra do enxoval de bebê que esperava, espantei-me da precocidade do empreendimento, ainda antes de saber o sexo, mas ela logo emendou que já tinha o cariótipo, e estava tudo bem. Entendi o cariótipo como salvo-conduto. Entristeci-me de pensar que me julgaria um descuidado, ela vigilante não deixaria a quem não possuísse salvo-conduto em ordem, adentrar as fronteiras da existência. Fiquei incomodado.
O que me traz de volta esse antigo episódio são dois outros episódios recentes. Tenho andado às voltas com a tentativa de publicar um artigo sobre a deficiência intelectual em indivíduos com síndrome de Down, como resultado da privação cultural, a educação concreta, adaptada, que se oferece a essas pessoas; o artigo tem sido rejeitado sumariamente em diferentes revistas. O outro episódio está relacionado a comentário que fiz sobre o uso da memantina em pessoas com síndrome de Down. Em resposta que recebi, comentando o comentário, veio a informação de que em outros países, muitas pessoas já podiam considerar o “problema” da síndrome de Down resolvido, com a disponibilização de testes de rastreamento pré-natal e possibilidade de interrupção “aconselhada” da gravidez. É outra vez com incômodo que percebo que o artigo que venho tentando publicar, um que venha descortinar a possibilidade de aquisição da autonomia, uma idéia diferente do conceito de inteligência, não tenha encontrado espaço nas revistas, porque muitas das pessoas, eventualmente geradas com a trissomia do 21, não possuam agora salvo-conduto, que lhes garanta estar compartilhando esse mundo, nem sempre tão humano, e que, por outro lado, nos possibilite compartilhar com elas o construir um mundo humano, onde a inteligência e a autonomia possam se produzir no convívio humano, nos significados da cultura, na própria aceitação da diversidade.
Métodos menos invasivos para o diagnóstico fetal estão cada vez mais precisos. A ciência “avança”, resolve os seus problemas, eliminando-os, antes que cresçam. Hoje, em muitos países em que o aborto é legalizado, em torno de 90% das gestações com fetos anômalos é interrompida. O Brasil, em termos legais, está caminhando lento, neste sentindo. Decisão no Supremo estabeleceu que as gestações de fetos anencéfalos podem ser terminadas dentro da lei. A anencefalia é um exemplo extremo. É uma alteração incompatível com a vida, implica a ausência da atividade cerebral, numa situação interpretada como análoga à da morte cerebral.
Enquanto permanece proibido o aborto no Brasil, esse é um debate que fica adormecido. Escuto dizer que o aborto ilegal é praticado no Brasil, em clínicas clandestinas, resultando em mais riscos à saúde materna. As mulheres, vítimas de complicações destes procedimentos mal feitos, ocupam leitos hospitalares, descortinando que o problema existe, apesar do vácuo legal impor-lhe uma cortina de fumaça, transpô-lo a uma espécie de submundo, caminhos pelos quais não transito.
Em outros países, é corriqueira a prática da aborto, admitida na lei. Nestes, é possível que se aconselhe “geneticamente” a interrupção de uma gravidez, a partir da detecção de alguma alteração fetal. E cada vez mais precocemente, tem sido possível detectar essas possíveis alterações, de modo que uma interrupção faça-se no mais curto tempo, quando os procedimentos abortivos podem ser conduzidos de modo menos traumático. As estatísticas indicam que em torno de 90% das gravidezes com alguma alteração acabam interrompidas, isso ainda nas duas últimas décadas do século passado (Mansfield C, Hopfer S, Marteau TM. Termination rates after prenatal diagnosis of Down syndrome, spina bifida, anencephaly, and Turner and Klinefelter syndromes: a systematic literature review. European Concerted Action: DADA (Decision-making After the Diagnosis of a fetal Abnormality). Prenat Diagn. 1999 Sep;19(9):808-12). Com a disponibilização de métodos diagnósticos mais precoces, menos invasivos, mais precisos, parece que a humanidade caminha para resolver o “problema” da síndrome de Down e outras malformações fetais.
Acontece também, paralelamente a esse avançar da ciência, uma mudança na história reprodutiva humana, com gravidezes cada vez mais tardias, o que sabidamente implica probabilidade maior do nascimento de pessoas com síndrome de Down. Em países onde o rastreamento prenatal é aconselhado, com a possibilidade de decisão sobre a interrupção da gravidez, há uma redução na incidência de nascimentos de pessoas com síndrome de Down, não obstante o aumento da idade materna (Skotko BG. With new prenatal testing, will babies with Down syndrome slowly disappear? Arch Dis Child. 2009 Nov;94(11):823-6. doi: 10.1136/adc.2009.166017.).
As pessoas que aconselham tecnicamente a interrupção da gravidez, com alguma probabilidade, não conhecem bem todos os pontos envolvidos em uma questão complexa, como essa. Isso parece bem ilustrado em um relato anônimo de uma potencial mãe, que tem como atividade profissional o aconselhamento genético e que descobre tardiamente uma malformação cerebral em seu feto. Todo o processo envolvido com a interrupção da gravidez é contado em detalhes. Pareceu-me interessante, é que ela não se conforta, mesmo com o passar do tempo, em que pese admitir racionalmente que tomou a decisão correta (Anonymous. A genetic counselor’s journey from provider to patient: a mother’s story. J Genet Couns. 2008 Oct;17(5):412-8; discussion 419-23. doi: 10.1007/s10897-008-9171-2.). O relato é intitulado como a estória de uma mãe, talvez esse o ponto, o nó que não se ata, a maternidade interrompida, abruptamente, numa decisão racional, não se (re)concilia com a própria ideia humana de maternidade, de ser mãe.
Um editorial da revista, comentando sobre esse mesmo artigo, considera que um aborto “indicado”, pode provocar sofrimento semelhante à perda espontânea perinatal, acrescentado de sentimentos de culpa, responsabilidade e ansiedade. De maneira geral, as mulheres (ou casais) são capazes de lidar melhor com um aborto de uma gravidez não desejada. Já no caso de perdas espontâneas de gravidezes desejadas, há o sentimento de luto, de perda, o mesmo que os casais que decidem abortar por alguma malformação fetal detectada no período pré-natal relatam (Biesecker BB. Commentary on “My Story: A Genetic Counselor’s Journey from Provider to Patient”. J Genet Couns. 2008 Oct;17(5):419-423.).
O sentimento provocado por uma decisão desta natureza é pouco discutido na ciência e atividade médica. Os aconselhadores genéticos conhecem os problemas psicológicos que podem advir de uma decisão de interromper uma gravidez, a partir da detecção de alguma alteração fetal. A partir do momento em que o sentimento é traduzido em linguagem técnica, os profissionais envolvidos acabam por se distanciar da pessoa que sofre. Isso parece particularmente evidente, na dificuldade da profissional/mãe que faz aquele relato em manter uma relação com seus colegas de trabalho, que acabavam por se manter afastados, talvez pela própria dificuldade em lidar com esses sentimentos.
Há ainda um problema pouco debatido, que parece transparecer no relato mencionado, que se refere à ambiguidade nos achados relacionados a muitas anormalidades observadas no desenvolvimento. Em muitos casos, há um terreno movediço de incerteza sobre o que nos reserva o futuro. Os exames finais realizados podem mostrar-se ambíguos em relação ao que se antecipava das alterações estruturais determinadas nos exames pré-natais. Dependendo do que demonstram esses resultados finais, maior carga de desconforto pode advir da decisão tomada.
Se voltamos ao tema da síndrome de Down, podemos também levantar a dúvida se os aconselhadores genéticos conhecem a síndrome, de modo a fornecer informações adequadas, que possibilitem uma decisão realmente consciente e esclarecida. Quando eu falo de conhecer a síndrome, eu quero dizer conhecer a realidade que cerca pessoas ou famílias, pois as pessoas não são a síndrome, a síndrome acontece na pessoa, como muitas outras coisas também acontecem.
Eu sou de um tempo e lugar em que o diagnóstico da síndrome era via de regra pós-natal. Havia a translucência nucal, a possibilidade de biópsia do vilo corial, para cariótipo, com algum risco de abortamento relacionado ao procedimento. Eu mesmo, como pai, e minha esposa, recebemos a notícia depois do nascimento. Houve, é verdade, uma suspeita na translucência nucal, mas o ultrassonografista não definiu o diagnóstico.
Boa parte dos pais vai receber com pesar a notícia de que seu filho ou filha tenha síndrome de Down. Vai viver o luto. Não é o filho ou a filha que esperavam. De algum modo, ao longo do tempo, vão caminhar na direção da aceitação, partir daí para a luta, a de tentar achar um lugar no mundo onde o seu filho ou sua filha caiba. É o que a maioria dos relatos de pais e mães atesta. De alguma forma, o luto poderia ser amenizado se a maneira como a notícia é transmitida fosse mais positiva, enfatizando mais as possibilidades do que as limitações. Quase sempre, entretanto, o olhar dos pais e das mães sobre essas pessoas vai modificar-se ao longo do tempo, numa trajetória de superação, de uma visão inicialmente negativa, para uma visão construtiva, em que o futuro tenebroso dado ao princípio, dissipa-se pelo próprio passar do tempo e pelo conhecimento da pessoa com a síndrome, que cresce agora no nosso próprio círculo de convivência.
É processo de vida, conhecer a pessoa, compartilhar com ela o mundo, saber-lhe das limitações, entender a vocação humana de superação, são processos humanos, o próprio ser humano um ser historicamente construído, das interações num espaço de convivência, conhecer também amar, por que amor, emoção genuinamente humana, é forma de conhecimento. São questões que extrapolam a síndrome, é uma discussão que faço centrada na pessoa, pessoa que por ser pessoa possui a qualidade humana, a vocação de tornar-se humana.
De algum modo, a dor, essa que menciono, vem de habitar um mundo cada vez mais restritivo, muitas mudanças, mesmo essas que convencionamos denominar avanços, operam em um sentido de massificar, de reduzir a diversidade, parecendo que estamos mais perto de uma verdade, de uma resposta. E que essa uma verdade, uma resposta, é a verdade, a resposta. Nem nos damos conta, na certeza que deriva da verdade única, que isso origina a negação de outras verdades possíveis. Trata-se então de uma verdade imposta, os que dela não compartilham estão errados, estão no atraso.
Então eu olho o mundo, com meus sentimentos conservadores, admitindo a emoção, razão humana de lidar com o incerto, impoderável, comportar certa dor, mesmo essa a de ser pai, e nela entender a mesma felicidade de ser pai, porque não há mesmo uma só verdade, um só mundo possível. Omitindo a emoção, não é possível entender equilíbrio num jogo de contrários.
Está aí a emoção. Essa que negamos em muitas decisões. E que por muitas vezes, nos fará repensar decisões que tomamos, para racionalmente tentar reconciliar o que decidimos, e esse repensar pode nos custar anos, sem que possamos mais conservar o que foi mudado pela nossa bem pensada decisão. Emoção, uma essa que chamo de dor, para traduzir em sensação física o que é emoção. Tristeza. Não doi. É emoção. Conforto-me. Há o que possa modificar, transformar um mundo, fazer dele um que caiba as pessoas, um que tenha espaço de humanidade, para que nos formemos humanos, mesmo que sejamos muito diferentes.
Boa emoção, mesmo essa a que traduzo por sensação física, dor, porque sei que as pessoas que amo estão aqui comigo, posso abraçá-las, chamá-las pela manhã, hora de ir para escola, tomar o café, o trabalho. Boa emoção. Amanhecer. Um dia nasce novo. Olho a janela, com a esperança de que alguma coisa possa se modificar. Bem perto de mim, ao alcance do abraço, o que luto por conservar.
* Gil Pena é médico patologista e dedica-se a estudos na área da educação.
REALMENTE A TENDENCIA DAS PESSOAS É ELIMINAR O QUE INCOMODA, O QUE ME TIRA DO MEU ESPAÇO DE CONHECIMENTO EU EXTERMINO, É DIFÍCIL SAIR DO MEU CONFORTO E RECONHECER O OUTRO NO SEU DIREITO DE VIVER.
SER A FAVOR DO ABORTO DE PROVÁVEIS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA É MODERNO, PRA QUE GASTAR DINHEIRO COM ESSAS PESSOAS QUE NÃO VÃO “PRODUZIR” EM UMA SOCIEDADE EFICIENTE E SEM DEFEITOS COMO A NOSSA?