Por Lucio Carvalho *
Que o riso faz parte da vida humana não há quem possa negar. O tema, objeto de profundo dissenso entre teólogos e filósofos da era medieval, parece que vem acompanhando a humanidade desde priscas eras. Há quem afirme que se trata de uma necessidade biológica tipicamente humana e que o ser humano deteria sua exclusividade expressiva. A afirmação é de ninguém menos que Aristóteles, o filósofo estagirense que é um dos fundadores da civilização ocidental. Para o efeito dos argumentos aqui invocados, a citação mais adequada parece, todavia, ser a de Millôr Fernandes, para quem o homem é o único animal que ri e é rindo que ele mostra o animal que realmente é.
Poucas evidências podem se equiparar às causas do riso para demonstrar quem somos realmente, na ausência de outros discursos mais poderosos. Não fosse a habilidade que temos de nos desvencilhar de evidências comprometedoras, talvez nos preocupássemos um pouco mais em entender melhor e quem sabe até mesmo corrigir o próprio comportamento, mas isso não interessa à lógica de manada que parece reger a sociedade contemporânea. Fosse diferente, não seria possível a sobrevivência do freak show no gênero comédia, vide o trailer de “O Mato sem Cachorro“, ainda em pós-produção.
Mas, afinal, o que temos mesmo a ver com isso? Aparentemente nada, até já falamos sobre isso no parágrafo acima. Nosso grande compromisso parece ter curtíssimo alcance, como chegar ao fim do dia tendo sobrevivido e garantir alguns momentos de descontração, seja em frente à TV ou outras telas, que há infinitas e das mais diversas dimensões. O que é justíssimo, diga-se de passagem. É a dose de circo devida ao dia ou noite que se atravessa em busca do “pão”. Trata-se, a bem da verdade, de um mercado vastíssimo no qual cabem desde telenovelas, jornalismo sanguinolento, propagação da fé, esportes até a assim chamada sétima arte, o cinema e seus subgêneros. Encontrar aí a presença de atores anões com o mero objetivo de fazer rir seria lamentável, se não fosse deprimente. Pois lá estão os anões – como encantados em um gênero fabular do qual parecem não conseguir escapar. E mais para lá, do outro lado da tela, os espectadores, entre atônitos e gargalhantes, como se pode ver em um recente esquete do festejado Porta dos Fundos.
A ideia é antiga, remonta às cortes europeias e à fundamental função de entreter a realeza, quase sempre imersa no tédio. Embora não se trate mais da realeza, o tédio parece ser o mesmo. Nada como o “grotesco” dos outros para nos fazer lembrar de quão somos “perfeitos”. O consumo do que julgamos ser a desgraça alheia é um fértil terreno para o cultivo do preconceito e para o distanciamento confortável. Os séculos passam e não damos amostra de evoluir, pelo menos nesse aspecto. Além do nanismo, as deficiências físicas de um modo geral parecem surtir esse mesmo efeito, muito embora desde a época do apogeu dos circos dos horrores sua presença circense – e no entretenimento de um modo geral – felizmente vem diminuindo ou sendo retratada por outro viés. O nanismo, entretanto, não tem a mesma sorte. O vínculo ao estereótipo é tremendo e mostra com alguma clareza que o desconforto diante do corpo diferente é ainda muito presente, mesmo que isso pareça ultrapassado ou indesejável para a sociedade da era pós-democrática. Afinal, parece que a noção de civilização da qual dispomos não tem muita relação com isso, mas com outros indicadores mais palpáveis, como a capacidade de consumo, qualidade da educação, etc.
Certo mesmo é que, enquanto houver atores anões dispostos a emprestar sua figura como elemento cômico, o show deve continuar. Que há pessoas que não se importam com isso e que há anões que também não se preocupam com isso parece não haver dúvida. Mas há relatos diferentes também, de pessoas como Amanda Sobucki, que dão conta da insistência em ser ridicularizada e tratada publicamente como um ser bizarro, e isso cotidianamente. Interessante notar que ela aponta que o tratamento é especialmente “concedido” por pessoas jovens, adolescentes. Ao menos em tese, parece tratar-se justamente de uma parcela da população muito interessada na individualidade, em “ser como se é” e outros bordões que emocionam e parecem conduzir as ideias do público juvenil. Quando se trata dos outros, entretanto, a fórmula parece perder o efeito e o encanto. O que se revela, sob o contraste devido, é que todo o esforço em prol do respeito à diferença ou vem sendo menosprezado nos anos escolares ou outros valores culturais têm obtido maior trânsito entre crianças e adolescentes, como os oferecidos pelo mercado do entretenimento.
Tendo em vista que cada vez mais apenas os discursos diretos parecem surtir efeito – vide o sucesso de campanhas em vídeo -, talvez falte simplesmente esclarecer que não há graça alguma em rir de anões (mesmo que alguns possam querer exatamente isso e isso seja seu ganha-pão) ou de pessoas com deficiência física. Que esse tipo de é humor é um humor “fim de linha”, que não há nada mais bizarro que procurar fazer rir explorando-se as diferenças corporais, ou as diferenças de um modo geral. Sob o pretexto de que a indústria do entretenimento “oferece” aquilo que o público quer ver, invariavelmente o mercado é inocentado nesse processo, apesar de que seja evidente que é ele próprio quem oferece ao público o que quer que seja visto. O que isso diz a respeito da forma como vivemos está colado em nós, já é indisfarçável. Rir e dar crédito a valores morais não é uma fatalidade, é uma escolha. Não é uma roupa que se possa simplesmente trocar peça a peça. Que o show continue ainda vá lá, mas que ao menos perca a graça que lhe conferimos.
* Coordenador da Inclusive – inclusão e cidadania e autor de Morphopolis.