Por Andrei Bastos *
Olhos que nem sei verdes ou azuis brilhavam tanto no sorriso do rosto inteiro e me surpreenderam docemente quando toquei minha cadeira de rodas para a porta do elevador do shopping. Ouvi o “oieeee!” esticado com o pescoço por uma cabecinha dourada de cabelos cacheados e olhinhos apertados. Respondi com um “oiii!” de incontido entusiasmo, pois poucas vezes fui cumprimentado com tanta simpatia.
A garota perguntou em seguida: “Tudo bem?”, e eu respondi: “Tudo. E você, como vai?”. A resposta veio como um vento de felicidade e orgulho: “Eu vou bem, estou trabalhando aqui!” e, estufando o peito, ela me mostrou o crachá. Em seguida, numa mudança brusca, mas suave, de tom, completou: “Sou terceirizada”. Seu ar repentinamente triste me deixou pensativo.
Por quê a alegria dessa garota com síndrome de Down, que eu conheço há alguns anos, não é completa? Por que ela não tem direito à felicidade inteira do seu emprego?
Sem levar em consideração a possibilidade de fraude que a intermediação da mão de obra com deficiência cria, como no episódio recente que envolveu uma montadora de automóveis e conhecida organização social, com multa de R$ 400 milhões determinada pela Justiça, a terceirização é, para as pessoas com deficiência, que podem ser usadas mais facilmente em esquemas ilícitos, um cruel fator de discriminação.
Sem levar em consideração a possibilidade de enriquecimento de instituições e indivíduos que se dediquem à intermediação da mão de obra com deficiência, em evidente desrespeito à dignidade humana, a terceirização é, para as pessoas com deficiência, que podem ser usadas inescrupulosamente em proveito de outros, um cruel fator de segregação.
Como disfarce para procedimentos ilícitos ou exploradas por uma mais-valia dobrada nos guetos dos intermediários, a mão de obra com deficiência não pode dizer que exerce o direito ao trabalho preconizado no Artigo XXIII da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Para que a garota minha amiga e todas as pessoas com deficiência possam se considerar incluídas socialmente, é necessário que se dê fim à desfaçatez da terceirização em que se vende bondade, e os profissionais com deficiência sejam empregados diretamente nas empresas, sem a desculpa de que requerem uma atenção especial para a qual os empregadores não estão preparados. Se as empresas precisam de preparo, que usem as instituições especializadas para treinar seus quadros e adequar seus ambientes e assumam sua responsabilidade na sociedade.
Finalmente, para que o brilho dos olhos que nem sei verdes ou azuis da garota com síndrome de Down não se apague, também é preciso acabar com os projetos de lei de má-fé que sempre estão à espreita para roubar direitos já conquistados e promover o retrocesso, como o Projeto de Lei nº 112/2006, do senador José Sarney que, além de reforçar a terceirização, reduz o número de contratações de pessoas com deficiência e confina milhares delas em oficinas de trabalhos manuais e artesanato.
Publicado em O Globo, Opinião, 01/05/2013.
* Jornalista.
Andrei Bastos,
Seu artigo traduz a real angustia das Pessoas com Deficiência, principalmente as Down e DI. Trabalhei na intermediação de emprego para a pessoa com deficiência e, como Pessoa com Deficiência que sou, percebia com apropriação este sentimento.
Houve um pequeno avanço, pois antes não conseguíamos nem com as terceirizadas realizar a Inclusão no Mercado de Trabalho destes seguimentos. Há muitas barreiras a serem vencidas, por isso não pode haver descanso.