The loudest applause at Oscar. Congratulations to #CODA and Troy. A deserve and win for disability representation. pic.twitter.com/gaTSizuDcG
— AP (@imaqhiel) March 28, 2022
Imagem acima – tweet de uma cena mostrando aplausos em linguagem, de sinais. na noite do Oscar
Coda – No ritmo do coração, leva ao Oscar a maior das minorias
Ontem foi um dia histórico para o movimento das pessoas com deficiência. O filme “Coda – No ritmo do coração”, que conta a história de uma jovem ouvinte em uma família de surdos, chegou ao topo da “cadeia alimentar” do cinema mundial, desbancando produções milionárias. Levou o Oscar de melhor filme, melhor ator coadjuvante Troy Kotsur, e melhor roteiro adaptado por Siân Heder do filme original francês “A Família Béliér”. Todas as três estatuetas a que concorria.
A vitória assustou o mundo do cinema, acostumado a ver atores famosos laureados por interpretações “memoráveis” de pessoas com deficiência. Coda chegou trazendo um recado claríssimo: “Nada sobre nós sem nós”.
O lema do movimento das pessoas com deficiência serve para resumir o que Hollywood e grande parte do planeta ainda faz com as pessoas com deficiência, mantendo-as excluídas de suas próprias histórias, inclusive pela falta de acessibilidade das produções e estruturas audiovisuais.
Duas tendências contribuíram para esse momento de virada. De um tempo para cá as pessoas com deficiência vêm ocupando as redes sociais, cobrando representatividade nas telas e se insurgindo contra o “crip face”. A exemplo do “black face” – usar atores brancos com a cara pintada de preto, inimaginável nos dias de hoje, os personagens com deficiência ainda costumam ser vividos por atores sem deficiência.
O que antes era garantia de lágrimas e prêmios, hoje é questionado e grandes produtoras começam a buscar consultoria para não errar na mão.
Só para citar uma gafe recente, no filme a Convenção das Bruxas, a produtora Warner Brothers e a atriz Anne Hathaway se desculparam por associar a deficiência à maldade. “A diferença nos membros não deve ser representada como assustadora. As diferenças devem ser celebradas e a deficiência, normalizada”, tweetou o Comitê Paralímpico, junto com a hashtag #NotAWich (Não é bruxa)
Por outro lado, as plataformas de streaming estão apostando e se dando bem com essas novas histórias, que têm o frescor da autenticidade e de sua humanidade.
A Netflix fez uma parceria com a BBC para produção de ideias originais de realizadores com deficiência. O primeiro é o curta sobre a operação Aktion 4, “Perdoai-nos as nossas ofensas”, de Ashley Eakin. Para quem ainda não sabe, as pessoas com deficiência foram as primeiras vítimas do nazismo.
Numa postagem nas redes sociais, a diretora comentou:
“Por quase 3 décadas eu odiei meu corpo com deficiência. Meu capacitismo internalizado era tão profundo que demorei muito tempo para reconhecer as camadas da minha vergonha.
…
Nos últimos 5 anos tenho contado histórias sobre deficiência. Aprender essa história me trouxe o contexto sobre por que nossa sociedade mantém ideias tão capacitistas e me permitiu ser agradecida por minha própria experiência. Minha vergonha foi herdada de gerações de atrocidades cometidas em todo o mundo contra nossa comunidade.
Essa história particular de pessoas com deficiência sendo cobaias para a “solução final” é muitas vezes esquecida quando falamos sobre o holocausto. Além da comunidade judaica, qualquer tipo de diferença era vilipendiada – seja por causa de quem você escolheu amar ou pela cor da sua pele ou pela condição do seu corpo e mente.
O que Hitler e todos aqueles que nos consideram indignos não percebem é que as diferenças e principalmente a deficiência tornam nosso mundo mais bonito. Ela nos permite ver diferentes lados da vida. Muito da nossa sociedade é baseada no que “podemos fazer” e realizar ou alcançar, mas quando uma criança nasce, nós a valorizamos apenas por existir. Por que nos esquecemos dessa simples verdade de que toda e qualquer vida tem valor apenas por estar aqui nesta terra”.
As pessoas com deficiência vêm, aos poucos, ocupando seu espaço. No ano passado, o documentário Crip Camp, uma das produções que recebeu apoio da família Obama, foi indicado para o Oscar de melhor documentário. Disponível no Netflix, o filme conta a história do movimento político das pessoas com deficiência nos Estados Unidos, que começou numa colônia de férias estilo Woodstock e recebeu apoio dos Pantera Negras em um de seus protestos da Califórnia. Perdeu para o Professor Polvo.
Esse ano parecia que seria diferente. Além de Coda, um dos curta-metragens indicados, o polonês “O Vestido”, tinha uma personagem com nanismo, interpretada pela atriz Anna Dzieduszycka. E no final da noite das estrelas, Lady Gaga entrou com Liza Minelli luzindo e sorrindo em sua cadeira de rodas para apresentar o vencedor de melhor filme, demonstrando uma bonita relação de interdependência entre as duas lendas.
Infelizmente, o capacitismo está tão fortemente arraigado em nossa sociedade que o que aconteceu no Oscar ontem está sendo esquecido.
Todas essas conquistas das pessoas com deficiência foram eclipsadas pelo tapa de Will Smith em Chris Rock por uma piada sobre sua esposa Jada Pinkett Smith.
Jada, que é atriz e cantora, tem falado abertamente sobre ter alopecia, uma doença autoimune sem cura que faz com que alguns ou todos os cabelos caiam de qualquer lugar do corpo e sobre a decisão de raspar a cabeça.
Chris Rock sabia disso e, conscientemente, fez a piada. Capacitismo explícito.
Depois da reação do marido, a deficiência deixou os holofotes, que se voltaram para a discussão sobre masculinidade tóxica e defesa da honra.
Embora profundamente comum ao humano, é ainda muito difícil ser diferente.
Existem mais de 1 bilhão de pessoas com deficiência no mundo, a maior das minorias. Certamente as pessoas com deficiência têm muito a dizer. Chegou a hora de ouví-las, vê-las, sentí-las.
Patricia Almeida – Jornalista, mestre em Estudos sobre Deficiência pela CUNY – City University of New York, Trabalhou como editora nas TVs Educativa e Manchete e como produtora na BBC Brasil. Criadora da agência de notícias Inclusive – Inclusão e Cidadania (Prêmios Educação em Direitos Humanos e Orgulho Autista). Criadora da GADIM – Global Alliance for Disability in Media and Entertainment, GADIM Brasil e Odimídia – Observatório da Diversidade na Mídia.
Odimídia – https://www.facebook.com/groups/240028826434615
Maravilhosa matéria!