Quer brincar? Deficiência intelectual e a interdição precoce do brincar

Peças de lego multicoloridas

Por Lucio Carvalho *

Dizem que brincar é como se fosse a linguagem natural das crianças. A sua forma preferencial de interação com o mundo exterior, ainda não fixado totalmente pela razão e pelo conhecimento. Se isso é mesmo verdade, deveria ser a realidade de todas as crianças, mas muitas delas não têm esse direito ou o têm frustrado (ou mesmo interditado) muito cedo na vida.

Isso pode acontecer por muitas razões diferentes. Contra a sua própria vontade, certamente, na grande maioria das vezes. Quem tem um filho que nasceu com deficiência intelectual, como eu, conhece bem o grau de exigência que recai desde muito cedo sobre crianças assim, muitas vezes impedindo-se que elas aproveitem plenamente o ato de brincar, este que funda o surgimento do ser humano no mundo social e cria as primeiras conexões da pessoa com o mundo ao seu redor.

Ao contrário da maioria das outras crianças, sua brincadeira deverá ser sempre de um tipo proveitoso, milimetricamente planejado de modo a suprir o que aparentemente lhe falta ou está indevidamente atrasado. A preponderante noção de que se está correndo contra o relógio e que se deve aproveitar cada possibilidade de estímulo é um tipo de sequestro que muitos pais fazem tranquilamente com os próprios filhos, muitas vezes amparados e até estimulados “cientificamente”.

Creem estes pais que estão agindo pelo bem de sua prole, mas com a mesma facilidade deixam de perceber que até este “bem” (ou pelo menos seus parâmetros) pode ser apenas uma construção assimilada a partir de vários tipos de discursos, entre pedagógicos, terapêuticos e médicos. É mesmo muito difícil para pais com filhos que têm deficiência intelectual equilibrar estímulo e obrigação, diversão e intervenção. Trata-se de uma corda bamba e, como todas, implica sempre em riscos importantes.

Mesmo que muito se tenha evoluído da década de 1960 para cá, época em que a estimulação precoce teve suas bases lançadas, difunde-se cada vez mais a mentalidade “abilitista” (ableism, em inglês), que diz que a pessoa tem de equiparar-se e minimizar o máximo possível as próprias características de sua deficiência para ter uma vida social em tese mais satisfatória ou, em sua versão mais radical, para ser socialmente mais aceitável.

Por menos que pareça, é uma visão refinada que mira preferencialmente os pontos fracos do sujeito e procura consertá-los a qualquer preço. O refinamento de que falo obviamente não reside nisso, mas na forma pela qual suas ideias subjacentes reproduzem-se no discurso e na prática dos profissionais que se relacionam diretamente com a pessoa, ao ponto de naturalizar-se até mesmo no cotidiano familiar. No modo de viver a vida.

Trata-se de um modo de entender a deficiência, entre outros, mas que ganha repercussão científica e confunde-se a outros modelos de compreensão. Em sua perspectiva, pelo menos em relação à deficiência intelectual, a ideia básica que subjaz às práticas terapêuticas é a de estimular os saltos de desenvolvimento e antecipar capacidades, minimizando-se uma possível expressão dos déficits, além de patologizar e corrigir clinicamente comportamentos. É a intervenção precoce levada ao extremo, radicalmente. Ou então uma tentativa de correr na frente do relógio, como se isso fosse mesmo possível. Para tanto, faz-se necessário viver como um “costureiro”, com um tipo de fita métrica ao pescoço, aferindo-se cada passo da pessoa a cada instante, a despeito inclusive de sua vontade e tendo-se em mente evitar um desajuste social decorrente da deficiência.

Ao mesmo tempo que se repete exaustivamente o direito da criança em desenvolver-se em seu próprio ritmo e tempo, pais e terapeutas apropriam-se cada vez mais do seu tempo biológico na tentativa de equiparação com os demais. Esse é o tipo de investimento emocional que, a priori, desfaz da própria identidade da criança e a coloca numa métrica social absolutamente sem equivalência, na qual a diversidade é apenas aparentemente festejada, mas que é permeada por valores da sociedade ordinária que preponderam, como a competição, a distinção meritocrática e até mesmo o preconceito.

Sim, o preconceito. Embora muitas vezes o termo seja tomado como um caminho de mão única, o preconceito também pode ser um tipo de estatuto social ou uma espécie de pacto. Se você se submete a ele ou mesmo se vale de seus preceitos, lutar contra ele talvez faça pouco ou nenhum sentido. Ou então talvez não se trate de uma luta, mas de um tipo de encenação. A vida social tem muito disso também, como todos já sentiram de um ou outro modo, cada um na sua própria oportunidade.

2

Num gesto de rebeldia extrema, meu filho às vezes recusa-se a brincar de jogos pedagógicos. Se por muito tempo me frustrei por perceber seu pouco interesse em associar algum tipo de conhecimento ao ato de brincar e associei isso às suas dificuldades cognitivas, lá pelas tantas compreendi o que ele queria me dizer, apesar da sua dificuldade expressiva (ele nasceu com a síndrome de Down e sua linguagem verbal ainda é bastante limitada).

Ele queria dizer não. Sim, “não”. E queria que eu entendesse isso com alguma pressa pelo óbvio estabelecido, o fato de que sou seu pai, não seu professor, que seu quarto de dormir não é uma sala de aula, que nossa casa não é uma escola, que ele não quer submeter-se a provas justamente diante de mim, ser medido e avaliado como um funcionário que almeja promoção.

Não. Ele quer sua liberdade e, ao lutar por ela, irrompe como um sujeito poderoso, aquele que interage ativamente com seu interlocutor, que diz não, expressa sua vontade e recusa-se a dobrar-se às intenções alheias, mesmo que elas sejam supostamente as melhores do mundo. E elas normalmente são mesmo, tanto as minhas como as da maioria dos pais que conheço. Melhores, autênticas e ainda assim insuficientes, porque na maioria das vezes unilaterais.

Meu filho, quando faz isso, quer dizer que brincar só é mesmo uma coisa interessante, como dizia Huizinga (1) , quando interrompe o fluxo de necessidades reais e substitui a vida imediata pela liberdade plena. O pioneiro dos direitos das crianças, o polonês Janus Korczak (2) disse mais ou menos a mesma coisa, que “o jogo não é o paraíso infantil, mas o único onde nós lhe permitimos um pouco de liberdade, de iniciativa”.

Nesse afã, ele dispensa sempre todos os seus jogos pedagógicos, geringonças eletrônicas programadas para a satisfação automática e passa a brincar com suas roupas, justamente objetos que não são nem “brinquedos”. Por sua escolha, é a brincadeira que lhe interessa. E se por acaso algum adulto topa brincar segundo suas regras (que nada mais são do que um jogo de atirar e amontoar tecidos), aquele torna-se claramente o momento mais feliz do seu dia. É o momento em que finalmente ele é um sujeito como outro qualquer e não alguém a ser inculcado, instruído, levado a compreender a vida e o mundo sempre através de terceiros.

Mas viver não pode ser sempre assim, é claro que não, embora seja bastante perceptível que ao longo da vida os adultos estejam compenetrados em tentar recuperar o gesto lúdico sob muitas outras formas, talvez como forma de aplacar a saudade, quem sabe?, das brincadeiras infantis.

O início da educação escolar, de certa forma, é o grande marco na vida infantil depois do nascimento. Ali, as figuras paternas e maternas são relativizadas e a cultura doméstica vai sendo suplantada pela cultura formal, pela instrução. Muitas outras coisas se ganham e se perdem na entrada da vida escolar. Na maioria das escolas, a liberdade é a primeira a perder-se. A própria orientação do sentar em classe estabelece uma ordem arbitrária. Também a explosividade natural da criança e suas tendências fantasiosas são sistematicamente anuladas e paulatinamente substituídas pela regra social. Aprender a viver socialmente tem dessas coisas também. A brincadeira finalmente vai perdendo espaço e configura-se mais tarde como um momento de alienação da vida real, no qual tudo é permitido, quase como num estado alterado de consciência. A criança finalmente sublima o brincar, torna-se uma mimese forjada dos adultos, adolesce.

A criança com deficiência intelectual, nesse processo de aquisição cultural, normalmente é duplamente exigida. Ou mais que isso, até. Ela deve responder às necessidades dos outros, e isso é comum a todas as pessoas, mas ela deve fazer isso tendo como parâmetro alguém muito diferente de si mesma. É a pessoa ideal. Aquela que não existe ou, se existe, talvez possa ser até o produto de uma invenção ou da imaginação de alguém. Via de regra, trata-se idealmente de uma pessoa minimamente ajustada socialmente, que responde também minimamente bem a testes padrões e ao convívio social. Fora desse padrão, seria uma pessoa sem lugar. É um cidadão exilado. É uma promessa não cumprida de socialização, de inclusão, porque baseada em um desejo que sequer lhe pertence, mas que é compartilhado socialmente como o único desejável no sistema social cultural ou, pior ainda, como o único tolerável.

O trajeto que uma pessoa com deficiência intelectual faz até sua inclusão ou sua exclusão não está anteposto a ninguém, mas ainda assim é algo mais ou menos previsível. São as condições econômicas da família a determinar grande parte dos fatores que influem aí. É o acesso a estímulos indispensáveis ao desenvolvimento social e cognitivo. Mas também, e penso que principalmente, uma espécie de ideologia que perpassa o seu crescimento, através de suas vivências pessoais, começando pela vida em casa, pela escola, pelos relacionamentos e assim por diante.

Mesmo que não sejamos simpáticos a ele, o abilitismo já está aí, a nossa disposição, e de várias maneiras. Seja na forma de psicofármacos que visam amortecer “sintomas” indesejáveis, seja em modelos educacionais voltados à padronização e serialização ou até mesmo na maneira pela qual os pais de crianças com deficiência intelectual são orientados a interagir com seus filhos. Recolocar a pessoa como um sujeito protagonista da própria vida, como titular de seu desejo e busca pela felicidade certamente não é algo que se possa conseguir isoladamente, mas pelo acordo social. Todavia às vezes será necessário pensar que espécie de acordo é esse a que estamos submetendo-nos e submetendo nossos filhos.

Ultrapassar o próprio reconhecimento da pessoa que está ali, sob nossa (da família, da escola, etc.) responsabilidade, não faz sentido se nossa visão de mundo estiver sedimentada em valores que recusam a sua humanidade inata. Como ao Narciso grego, a imagem de nossas idealizações deve servir prioritariamente a nós mesmos. Nossos filhos têm o direito de estar fora disso e construir sua própria vida, certamente com nosso apoio, mas igualmente certo que com o mínimo de respeito a sua liberdade e individualidade.

(1) John Huizinga. Homo ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980.
(2) Janus Korczak. Como amar uma criança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
* Coordenador-Geral da Inclusive – Inclusão e Cidadania e autor de Morphopolis (www.morphopolis.wordpress.com)

/p

/p

5 Comments

  1. Parabéns pelo texto. Na proximidade do Dia das crianças, que todos se lembrem que TODAS as crianças têm direito de brincar, sem que sua brincadeira seja capturada pela indústria do estímulo pedagógico-terapêutico.

  2. Lúcio, obrigada por suas palavras. É sempre um prazer ler seus artigos… Tb tenho um pequeno com SD e seus textos tem muito significado para mim. Espero que vc esteja pensando seriamente em pública-los, são textos que orientam e nos inquietam, queria te-los organizadinhos na minha estante para q naqueles momentos sem rumo não me sentisse tão só.

    1. Obrigado Letícia, fico muito feliz que goste do que escrevo! Não tenho em mente pubicá-los no formato impresso, mas quem sabe? No meu blog estão mais sistematizados que aqui, dá pra acompanhar por lá tb.

      Abraços
      Lucio

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *