InfoAtivo DefNet – nº 4163 – Ano 12 – Dezembro
EDIÇÃO EXTRA
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EM COMEMORAÇÃO DOS 60 ANOS DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS – 1948-2008
O texto abaixo está incluído e publicado no Caderno de Textos da II Conferência Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência – Brasília, DF de 01 a 04/12/08. Tema central: ” Inclusão, participação e desenvolvimento. Um novo jeito de avançar”
II CONFERENCIA NACIONAL DOS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA – dezembro de 2008.
A SAÚDE COMO UM DIREITO HUMANO E SUA PROMOÇÃO NO PROCESSO DE INCLUSÃO DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
Jorge Márcio Pereira de Andrade[1]
Históricas conquistas e novos paradigmas
Dizem que aos 60 anos um ser humano atinge uma plenitude, servindo esta temporalidade bio-psicossocial para definir e anunciar um novo tempo: o da sabedoria e da experiência. Este ano a Declaração dos Direitos Humanos estará sexagenária, e, embora continue sábia, não é muito respeitada (assim como os sujeitos considerados idosos). Ainda temos de, individual e coletivamente, afirmar e proteger seus princípios. Entre os princípios que estão longe de sua plenitude e de uma efetiva realização encontramos, transversalizada por todos direitos, a saúde.
Sabemos da luta, a partir das próprias pessoas com deficiência, desde o século passado, para que sejam criadas políticas públicas estruturais no campo da saúde, já que esta esteve confundida com sua assistência e com a reabilitação.
Por isso ainda interrogo: a saúde é um direito humano? E só podemos afirmar e responder sim caso valorizemos as recentes conquistas de direitos.
Em 2006, podemos colocar um marco na história da afirmação dos Direitos Humanos das pessoas com deficiência, tanto no Brasil como no resto do Mundo. Nesse ano tivemos a I Conferência Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência. Nesse mesmo ano, foi promulgada, em 13 de dezembro, pela ONU, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Este tratado internacional veio consolidar a nova visão e paradigma das deficiências como uma questão de Direitos Humanos, tendo em seu Artigo 25 a confirmação da Saúde como um direito inalienável e interdependente de todos os outros direitos sociais, políticos, culturais, sejam de 1ª, 2ª ou 3ª geração. Este ano temos este artigo incluído como Emenda Constitucional, pelo decreto de lei nº. PDS 90/08, em 09 de julho de 2008, além da aprovação de seu Protocolo Facultativo.
Essa conquista, provando o avanço evolução dos movimentos de defesa de direitos, teve a ativa e persistente participação de pessoas com deficiência e suas lideranças junto à Câmara e ao Senado Federal, foi comprovado seu emponderamento e implicação ativa na consolidação de seus direitos.
A Convenção trouxe uma importante contribuição no campo da Saúde e as pessoas com deficiência ao proclamar que estes cidadãos e cidadãs têm “o direito de gozar o mais alto nível de saúde possível, sem discriminação por motivos de deficiência…”.
n Nesse sentido, nós os brasileiros e brasileiras, desde 1988, já tínhamos uma Constituição afirmando que a Saúde é um dever de Estado e um direito social de todos os cidadãos (ãs), independente da contribuição destes, sendo fixadas algumas diretrizes e princípios que deveriam nortear as ações e serviços do Sistema Único de Saúde. Diz o seu Artigo 126: “A Saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Deve ser este um referencial constitucional, agora complementado pelos 50 artigos da Convenção, como emenda constitucional, que auxiliará na formulação de novas conquistas em políticas públicas, e consequentemente, dos modelos de atenção e promoção da saúde para as pessoas com deficiência.
Os marcos legais que seguiram como as Leis nº. 80.080, de 19/09/1990 e 81.142 de 28/12/1990, confirmaram que este Sistema Único de Saúde, onde devemos encontrar a garantia do acesso e da acessibilidade para pessoas com deficiência, operando de forma descentralizada, com direção única em cada esfera de governo, rede de serviços regionalizada e hierarquizada, respeitando a noção de território para o cuidado e promoção de saúde, tendo como principal ênfase a municipalização dos serviços e ações de saúde.
Direitos humanos podem ser negligenciados?
Cabe defender os direitos humanos em sua condição de indisponíveis, pois que são indisponíveis os direitos dos quais a pessoa não pode abrir mão, como o direito à vida, à liberdade e à saúde. Por exemplo: o rim ou outro órgão do corpo é da pessoa, mas ela não pode vendê-lo, conforme afirma o Ministério Público Federal. E uma das questões bioéticas que estamos enfrentando é a progressiva comercialização de órgãos, assim a utilização irresponsável de sujeitos com deficiência em experimentações biotecnológicas.
Cabe, portanto, ainda mais respeitar, proteger e fazer com sejam efetivos os direitos de pessoas com deficiência à Saúde e à Assistência Médica, não abrindo concessões sobre estes direitos e fazendo com que os Conselhos locais, Municipais e Estaduais de Saúde, da mesma forma que Conselhos de defesa de direitos de pessoas com deficiência, passem a ter a representação e ação presencial de pessoas com deficiência. Ainda carecemos de uma política pública estruturante no campo específico da Saúde, que se mantém confundida, dentro do modelo biomédico de deficiência, com o processo de Reabilitação. Esta confusão tornou-se o motivo para que fossem proclamados, na Convenção (ONU-2006), dois artigos em separado, um para a Saúde (artigo 25) e outro para a Reabilitação e Habilitação (Artigo 26), muito embora o tema da reabilitação seja transversal em outros campos: o emprego, o trabalho, a educação, os serviços sociais e a saúde.
Alguns dados sobre a realidade de Saúde no Brasil, no Mundo e na América Latina, no campo das Deficiências:
n A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que existam no mundo cerca de 650 milhões de pessoas incapacitadas (CIF – 2001), aproximadamente 10% da população mundial, da qual 400 milhões estão nos países em desenvolvimento. Eles constituem a maior das ‘minorias’ do mundo.
n Na Região das Américas e Caribe, segundo a Organização Panamericana de Saúde (OPAS) existem aproximadamente 60 a 85 milhões de pessoas com incapacidades ou deficiências, das quais apenas 2% (dois por cento) encontram respostas às suas necessidades básicas em saúde coletiva. .
n Esta cifra está aumentando devido ao crescimento da população, os avanços da medicina (e das biotecnologias) e do processo de envelhecimento, conforme dados da Organização Mundial da Saúde (OMS)
n Nos países onde a esperança de vida é superior aos 70 anos, há uma média de 08 a 11,5% de que a vida de uma pessoa transcorra com algumas incapacidades.
n Hoje 80% das pessoas com deficiência vivem em países em desenvolvimento, segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).
n Lembrando que: DEFICIÊNCIA NÃO É DOENÇA, mas pode decorrer de uma enfermidade, acidente, violência ou trauma, não tendo uma relação causal com a etiologia ou com a forma como se desenvolveram (CIF), pode-se verificar segundo dados de 1995, publicados pela OMS, que as principais causas de incapacitação, limitações de função e de deficiências são:
n 21% enfermidades crônico degenerativas
n 16,8% de enfermidades transmissíveis
n 16,6% de transtornos perinatais e congênitos
n 11% desnutrição e outras causas – 250 mil crianças por ano tornam-se cegas por causa de deficiências crônicas de vitaminas
n 10% de abuso de drogas e alcoolismo
n 6,6% de alterações psicológicas
n Sendo de 18% causas externas (incluindo aí os acidentes automobilísticos, acidentes de trabalho, violência urbana, conflitos armados e guerras). (CPS/FGV-Rio de Janeiro, RJ, 2003). Por esta 2ª porcentagem (dezoito por cento) de vulneração dos cidadãos e cidadãs, diante do processo de construção de exclusões sociais e econômicas que fundamentam o hipercapitalismo, é preciso se interrogar: até quando precisaremos de mapas de exclusão e pobreza?
n Nos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), as taxas de deficiências são notavelmente mais altas que entre os grupos com menores sucessos educacionais. Por volta de 19%, em comparação com 11% dos que têm maior acesso à educação.
n Na maioria dos países da OCDE, informa-se que a maioria das mulheres tem uma incidência mais alta de incapacidades que os homens.
n O Banco Mundial estima que 20% dos mais pobres do mundo têm deficiência, e tendem a ser considerados, dentro de suas próprias comunidades, como pessoas em situação de desvantagem e desfiliação social.
n É reconhecido que as mulheres com deficiência experimentam múltiplas desvantagens, sendo objeto de dupla exclusão, devido ao seu gênero e à sua deficiência.
n As incapacidades não afetam somente a pessoa que a sofre como também aqueles que dela cuidam, seus familiares, a comunidade e quem quer que apóie o desenvolvimento da comunidade.
n Dados os índices de crescimento populacional da América Latina e do Caribe prevê-se um aumento significativo do número de incapacitados, especialmente quando a atenção materno-infantil é deficitária e quando ocorre um alto nível de acidentes e lesões físicas e mentais devidas às violências.
n Nossa cifra de pessoas com deficiência era (em 2000 – dados do Censo – IBGE) de 24,5 milhões de cidadãos e cidadãs com deficiência no Brasil.
n Considerando que 70% (setenta por cento) desses cidadãos e cidadãs vivem abaixo da linha da pobreza, sendo que 33% (trinta e três por cento) são analfabetos ou têm apenas 03 anos de escolarização, colocando-se uma multidão de 90% (noventa por cento) de pessoas com deficiência fora do mercado de trabalho, apesar das ações afirmativas, da Lei de Cotas e das ações de inserção no mercado de trabalho.
n Confirmamos que estes cidadãos e cidadãs ainda são um segmento da sociedade civil sob discriminação, estigmatização e processo de desfiliação social, portanto com seus direitos sociais e políticos sem cumprimento e efetivação, o que nos permitirá afirmar a Saúde (e todos os outros direitos fundamentais) com um direito humano a ser(em) menos violado(s) em nosso país e no mundo globalizado.
Tomando estes dados/informações e estatísticas é que devemos propor uma nova concepção de Saúde, traçando um novo olhar e ações projetivas para sua efetivação. Já foi proposto pela OMS (Europa) que Saúde fosse definida como: “a medida em que o um indivíduo ou grupo é capaz , por um lado, de realizar aspirações e satisfazer necessidades e, por outro, de lidar com o meio ambiente. A saúde é, portanto, vista como um recurso para a vida diária, não o objetivo dela; abranger os recursos sociais e pessoais, bem como as capacidades físicas, é um conceito positivo…”.
Nesse sentido é que as pessoas com deficiência devem estar incluídas nos direitos básicos de saúde, a partir de uma visão de direitos humanos, com ênfase nos seguintes elementos: acesso universalizado, disponibilidade, acessibilidade e qualidade. Elementos que precisam constituir as bases de uma atenção e promoção em saúde no Brasil, seguindo os princípios do SUS, e, nesse momento histórico de conquistas, avançar para a mudança de paradigmas, saindo de um modelo puramente biomédico e reabilitador, passando para o paradigma bio-psicossocial das deficiências.
Faz-se imprescindível, por exemplo, na questão de benefícios, auxílios ou perícias, incentivar o uso e aplicação da CIF (Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde), e não apenas a CID -10 (Classificação Internacional de Doenças e estados relativos à saúde). Incentivar uma outra visão e concepção de que são o meio ambiente e a sociedade partes integrantes do processo de produção e manutenção de deficiências, com um reconhecimento das diferentes formas de ser e estar em um processo de subjetivação.
Nessa mudança de paradigmas, é imprescindível um reconhecimento de que o estado e o processo saúde-doença de cada pesssoa é singular e individualizado, ao contrário da visão massificadora dos profissionais da saúde, onde o sujeito é um mero objeto de intervenções biomédicas. No atual contexto, em especial pelos avanços biotecnológicos, temos de ter uma postura ética, dos profissionais e das instituições de saúde, para uma transformação cultural em busca do respeito à diferença, de acolhimento do outro e do desconhecido, de profundo respeito aos usuários com deficiência, em especial para sujeitos em condições de vulneração e vulnerabilidade, em suas heterogeneidades.
Urge refletir e agir na defesa de princípios éticos em situações como condições envolvendo a AIDS e as sexualidades, o envelhecimento, as experimentações e pesquisas científicas, as descobertas de novos medicamentos, com dilemas sobre novos meios de tratar o início e o fim da vida, temas onde nos encontramos com as encruzilhadas da Bioética.
Estamos imersos e aprisionados, mesmo que resistentes, a um modelo neoliberal de políticas públicas da saúde e as biopolíticas/biopoderes. Portanto temos de afirmar nossos direitos e, coletivamente, o reconhecimento de que não somos meros consumidores de serviços de saúde ou planos de saúde, que somos, quando micropoliticamente conscientizados e respeitados, sujeitos de direito.
A hora da humanização e da integralidade, tanto na assistência como no cuidado, em Saúde não deve ser amanhã, temos de promover, com a participação cívica, ética e inclusiva, de todos e todas, a sua conquista no cotidiano, hoje.
A saúde de todos os brasileiros e brasileiras é um direito social inalienável, afirmado como dever do Estado, donde ser esta preponderante e legalmente pública, gratuita, sem discriminações, sem exceções, integral, universal e, devido à presença das limitações impostas pelo meio ambiente e a sociedade, para pessoas com deficiência, deve se tornar acessível e humanizada. É, pois, de responsabilidade coletiva a humanização da saúde, não ignorando o lugar particular do sujeito, mas reconhecendo que a sua realização depende de uma rede construída ativa e cotidianamente, com um novo paradigma a experimentar, ou seja o de uma saúde ecosóficamente construída e reavaliada por todos que nela se implicarem, por estarem ética, estética e politicamente desejantes do Direito à Vida.
A saúde é, portanto, um direito humano, e o é porque é universal, inalienável, intransferível, indivisível, interdependente e baseada na dignidade intrínseca e na igualdade de direitos de todos os sujeitos.
Bibliografia.
– Andrade, Jorge Márcio Pereira – Incluindo pela exclusão digital: onde estamos no Mapa?, In Leitura: um cons©erto, Ferreira, Norma Sandra de Almeida (org.), Companhia Editora Nacional/ALB, São Paulo, SP, 2003, págs. 67-83, 125p.
– Andrade, Jorge Márcio Pereira – Para além das exclusões: por uma Sociedade da Informação rumo a uma Sociedade do Conhecimento e das Diferenças, In Políticas Públicas: Educação, Tecnologias e Pessoas com Deficiência, Silva, Shirley & Vizim, Marli, Editora Mercado de Letras/ALB, Campinas, SP, 2003, págs.
–A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência Comentada / coordenação de Ana Paula Crosara de Resende e Flavia Maria Paiva Vital – Brasília, DF: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2008, p.164.
-CIF – Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde/ [Centro Colaborador da Organização Mundial da Saúde para a Família de Classificações Internacionais org., coordenação da tradução Cássia Maria Buchalla], São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003, 328p.
–Derechos humanos y Discapacidad – uso actual y posibilidades futuras de los instrumentos de derechos humanos de las Naciones Unidas en el contexto de la discapacidad, Coordinación de Gerard Quinn y Theresia Denegar (et al.)/ Naciones Unidas, Nueva York y Ginebra, 2002, p. 212.
– Por un mundo inclusivo y inclusivo, guía básico para compreender y utilizar mejor la Convención sobre los derechos de las personas con discapacidad / Instituto Interamericano sobre Discapacidad; Handicap International, HI – 1ª ed. San Jose, Costa Rica, 2008, p 159
– Retratos da deficiência no Brasil (PPD)/ Marcelo Neri…[et al.], FGV/IBRE, CPS, Rio de Janeiro, RJ, 2003, p.200.
– Starfield, Bárbara, Atenção Primária – equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia, Brasília: UNESCO, Ministério da Saúde, 2002, 725p.
[1] Médico, psicanalista, psiquiatra, analista institucional.
Fundador do DEFNET – Centro de Informática e Informações sobre Paralisias Cerebrais