'Não passa um dia sem que ocorra violação no Brasil'

Para ministro, país ainda convive com herança do genocídio
Chico Otavio

Capaz de brigar dentro do governo por direitos que julga certos, como ocorreu recentemente na queda-de-braço com a Advocacia-Geral da União sobre a punição de torturadores do regime militar, o ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria Especial dos direitos humanos, não gosta de medir palavras. Ao fazer um balanço sobre os direitos humanos no Brasil, ele reconhece que os avanços, embora consideráveis, ainda são eclipsados por uma rotina de violência da qual o país não consegue se livrar: “Não passa um único dia sem que ocorra uma violação no Brasil”.

O Globo – Nos 60 anos da Declaração Universal, que balanço o senhor faz da situação dos direitos humanos no Brasil?

Paulo Vannuchi: Antes de abril de 64, o tema era muito escasso no Brasil. Por paradoxal que pareça, a luta pelos direitos humanos nasceu na ditadura, para enfrentar as violações da época, como Censura, banimento, exílio, tortura, morte e desaparecimentos. De 1988, quando a Constituição passou a incorporar essa idéia, para cá, houve grandes avanços, sobretudo nos últimos quatro mandatos presidenciais, que tiveram como linha de ação a incorporação dos principais instrumentos da ONU (Criança e Adolescente, mulheres, tortura, racismo e deficiência). Tivemos avanços importantes. Um deles, sem dúvida, o enfrentamento da pobreza e da fome. Sem comida, é impossível lutar pelos demais direitos. Mas vivemos outro paradoxo. Apesar dos avanços, continuamos tendo uma rotina de violações. Não passa um único dia no país sem que ocorra uma violação no Brasil. Se a gente olhar nossa rotina, esse Brasil que melhorou e precisa ser saudado por isso é o mesmo que ainda convive com uma profunda herança de genocídio.

O Globo – Duas especialistas ouvidas pelo GLOBO denunciaram que a agenda de direitos humanos não bateu nos lares brasileiros, palco de violações. O senhor concorda?

Vannuchi: Quando trabalhávamos na organização do recente congresso internacional sobre Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, que aconteceu no Rio, conseguimos tirar do título a palavra “comercial”. O problema não é apenas de exploração comercial sexual das Crianças. Percebemos que, no fundo, ignorávamos o problema da violência contra as Crianças dentro dos lares. Crimes praticados pelo padrasto, pelo tio, pelo irmão mais velho e até pelo pai e pelo avô. Também era preciso desvincular o tema da idéia de que era problema só dos pobres. Ele não tem classe. Os analistas sabem o quanto aparece no divã de pessoas que foram abusadas sexualmente. Isso deixa marcas profundas, que atrapalham todo o desenvolvimento humano das pessoas. No Brasil, precisamos começar a fazer campanhas institucionais para esse enfrentamento. Como o lar é muito protegido, sempre será um reduto difícil. Mas é esse o caminho: criar uma consciência para enfrentar a monstruosidade da questão do abuso.

O Globo – O senhor aponta as prisões brasileiras como item prioritário da lista de violações aos direitos humanos. Como anda o problema de Urso Branco (RO), considerado um dos mais violentos presídios do país?

Vannuchi: É um episódio de tamanha gravidade que me levou duas vezes a Rondônia. O Conselho Nacional de direitos humanos, depois de acompanhar por dois anos o problema, exigindo o cumprimento de medidas da Comissão Interamericana dos direitos humanos e da Corte da Costa Rica, representou junto ao Ministério Público, cobrando providências. A situação de lá levará o Brasil, certamente, a sofrer uma decisão dura por parte da Corte. Não foram cumpridas providências elementares. Ocorreram 92 mortes ao longo de nove anos. Houve períodos em que todas as paredes do presídio estavam destruídas. O lugar ficou sem água. A lista de violações é enorme. Há dois meses, o procurador-geral da República pediu ao Supremo intervenção no governo de Rondônia pelo tempo necessário para resolver a questão. A idéia é principalmente interromper a sistemática de violência daquele presídio.

A entrevista acima foi publicada originalmente no jornal O Globo, edição do dia 7 de dezembro, no caderno País, página 13

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