Por Lucio Carvalho *
Um Graal está posto, talvez para sempre, em relação a vida das pessoas que nasceram ou adquiriram ao longo da vida alguma deficiência ou limitação, seja física, sensorial ou mesmo intelectual. É o Graal da funcionalidade total. Parece até nome de norma da ISO ou ABNT, mas quero crer que se trata de algo mais poderoso até do que isso. O Graal de que falo é um norte, um objetivo supremo, uma meta insubstituível a perseguir. Está mais para o sentido religioso e para uma abstração da vontade humana que para um objeto real, seja ele um copo ou um livro. Na história da religião, trata-se do cálice no qual Cristo bebeu vinho na Última Ceia e que teria sido motivo de busca dos cavaleiros templários e justificado algumas guerras bastante sanguinolentas, típicas da Idade Média. Aqui neste texto ele serve apenas de metáfora da busca por algo mais ou menos inacessível. De algo capaz de trazer consigo uma espécie de redenção final. Algo que justifique a empreitada. Uma busca que deve valer a pena.
Desde que o bicho homem sabe-se bicho homem, tenho a impressão de que ele vem travando essa busca homérica contra si mesmo. Digo homérica porque estou falando de uma verdadeira epopeia que começa nos primeiros dias da vida e vai, às vezes com algumas paradas e abastecimentos, até o seu final. Essa epopeia mais conhecida como “vida”. E digo contra porque muitas vezes se trata de um busca empreendida na razão inversa do próprio trajeto que nela se percorre. Não, meu assunto não é a busca por perfeição, que essa talvez nem seja da alçada do humano. Meu assunto é a busca aparentemente infindável por avaliação. Por exame. Por autocompreensão. E explorar também algumas formas pelas quais isso se choca com outros valores aparentemente naturais entre as pessoas, tais como o amor, a tolerância e a aceitação.
Tanto quanto uma jornada individual, a vida é uma aventura social. Mesmo os mais microscópicos seres (até mesmo os unicelulares) parecem manter algum grau de relação com os demais seres biológicos. Algumas vezes eles precisam totalmente uns dos outros para a sobrevivência, às vezes nem tanto. E às vezes, ainda, parece que não precisam, mas normalmente isso só acontece porque os estejamos observando fora de perspectiva, como num alto relevo ou como se fossem espécies de divindades e não existências biológicas. A vida biológica, toda ela, está apoiada em sistemas dinâmicos de relação com o ambiente. Essa parece ser inclusive uma das condições fundamentais para sua existência.
Jean Paul Sartre, o conhecido filósofo existencialista francês, foi um dos primeiros pensadores a postular que o isolamento da mente e do indivíduo jamais poderá explicá-lo adequadamente. Sua famosa frase “o inferno são os outros” é uma síntese dramática da ideia de que a liberdade individual e autonomia não podem prescindir da produção social. A despeito disso, não é difícil constatar que se reproduz cada vez mais a mentalidade de que a busca pelo nível máximo de independência em relação aos demais é o que há de mais importante na vida. Isso quase implica que o social deixe de ser o produto de um acordo coletivo, mas o resultado de uma união casual de pessoas emocionalmente desconectadas e, ao menos idealmente, supercapazes. Um tipo de acaso, não um pacto comum. Em se tratando de pessoas com deficiência, parece uma proposição aparentemente irresistível. Muitas pessoas, inclusive, dão sua vida por isso. E desde a mais tenra idade.
A ideia é sedutora, principalmente do ponto de vista dos equipamentos e das responsabilidades sociais. Um ser autônomo seria tanto a expressão máxima da potência individual quanto a demonstração de que o meio social está plenamente apto a permitir seu trânsito físico e psíquico. É sedutora e poderosa a ideia, mas isso não significa que seja autossuficiente. Há um percurso oculto na celebração de cada superação, no qual muitas vezes lustra-se o aspecto espetacular em detrimento de longos anos de sofrimento e provação. Um exemplo clássico dessa situação são as pessoas superdotadas. Quem vê a maravilha de um prodígio musical muitas vezes não imagina o grau de exigência emocional que recai sobre pessoas assim. Em relação à deficiência, a situação não é muito diferente, assim como também para quaisquer outros limites que se impõem na vida humana, sejam de ordem física ou psicológica.
É justo e admissível que as pessoas optem, em determinados momentos de sua vida, por dedicar-se a uma inclinação ou talento individual. Principalmente quando se trata de uma decisão autêntica. Mas me intriga muito compreender de que forma as pessoas incorporam crenças e tomam decisões e o que pressupõe a ideia de que o ser humano deve esfolar-se na própria carne para alcançar muitas vezes aquilo que está, ou deveria estar, disponível socialmente.
Em muitos e visíveis aspectos da vida social, encontramos vestígios ou até mesmo evidências de que a ideia de funcionalidade tornou-se um imperativo no mundo contemporâneo. Se a pessoa é uma criança, deve funcionar minimamente bem para progredir nos estudos. Se for um adolescente, deve funcionar minimante bem socialmente para não ser enjeitado pela comunidade. Se for um adulto, deve produzir e contribuir regularmente para o social e, finalmente, se é um idoso, deve ter boa saúde para não sobrecarregar a previdência social e a família. Dentro de cada um desses estágios, uma escala ou mais estão disponíveis para ajustar socialmente a pessoa. Quando há um desajuste, há recursos imediatos de compensação que deveriam funcionar. Quando não há estes recursos, produz-se a deficiência social, embora o sujeito possa ser convencido de que tudo é culpa sua e do seu precário engajamento ao “Graal” da plena funcionalidade. É por isso que entendo que a fixação em torno a este modelo ideal de existir é altamente produtora de frustrações e desadaptações. Entendê-lo como ideal emancipatório preferencial (ou exclusivo) pode significar um aprisionamento sem precedentes para as possibilidades de vida das pessoas.
Se do ponto vista social os seres e grupos humanos são comumente avaliados segundo critérios matemáticos (demográficos, estatísticos, etc.), no que diz respeito ao indivíduo cada vez mais ele tem sido verificado e analisado a partir de seu isolamento em relação ao seu ethos, seu ambiente. Assim, tem-se privilegiado a parte em detrimento do todo e o sujeito, nessa perspectiva, aliena-se do social para então “existir”. A pessoa aparta-se de sua comunidade. Medidas de inteligência e critérios diagnósticos de doenças parecem fixados definitivamente nessa métrica patologizante, na qual o ser humano é escalonado e comparado em relação aos seus semelhantes e a um impreciso eixo de normalidade para ser compreendido em sua particularidade.
Entretanto, essa ideia (vamos chamá-la assim), obedece muitas vezes a critérios esdrúxulos, exorbitantes ou simplesmente inacessíveis às pessoas, dada a precariedade das condições sociais e capital cultural que lhe estão disponíveis. Ao mesmo tempo em que se propaga a ideia de superação ou de plena expressão da autonomia individual, consolidam-se as noções do individualismo, do discurso da competência, da meritocracia e do “vire-se com o seu melhor”. É uma ética bem particular da sociedade contemporânea que gera, aos jorros, exclusões e violências.
Por isso, compreender a extensão pela qual uma pessoa pode expressar seu potencial humano para a realização psíquica e social de forma isolada parece obviamente inviável. Entretanto, cada vez mais se utiliza como forma de análise das capacidades humanas o seu nível particular de funcionalidade, adaptação e desempenho. No meu ponto de vista, é uma emboscada para a qual poucos estão preparados. O uso do exame de funcionalidade pode ser suficiente do ponto de vista do examinador, mas jamais será do examinado. Por mais que se ampare em um modelo social de compreensão, o uso da funcionalidade como escala extirpa o social da vida do indivíduo, transforma-o numa amostra, anulando a importância das relações humanas na expressão potencial de cada pessoa.
O biólogo e filósofo austríaco Konrad Lorenz, em A Demolição do Homem, tenta lembrar-nos que a cooperação voluntária e o envolvimento emocional são mecanismos culturais de seletividade operando em favor aos seres humanos. Para ele, a compaixão não é natural, embora o sofrimento o seja, mas é ela (e não ele) que nos capacita para o amor e o desenvolvimento afetivo. Quando observamos os fundamentos dos sistemas educacionais, a lógica dos mercados de trabalho e até mesmo as dinâmicas sócio-comportamentais, fica bastante claro que estamos propondo ao indivíduo um modelo de exclusão. Estamos lhes dizendo que nesse mundo social não há cooperação, mas competição. Não há apoio mútuo, mas concorrência. E que a oportunidade disponível confere apenas em um ajuste unilateral, como se um contrato no qual apenas uma das partes tenha sido consultada.
No momento em que não questionamos isso e defendemos a ideia de que as pessoas façam de-um-tudo para ajustar-se a este tecido social há uma gritante fraude social em questão. Estamos dizendo às pessoas que minimizem suas características indesejáveis e submetam-se ao critério da norma, da qual elas mesmas são essencialmente sujeitos desviantes. Se o “Graal” da funcionalidade total visa entregar seres mais habilitados a essa dinâmica social, então tanto o modelo social quanto o modelo médico chegaram a colapso. São modelos que podem até explicar o indivíduo e justificar o social, mas são insuficientes em habilitar novos valores sociais que são desejos de muitos e que estão na boca de todos, com mais ou menos verdade. Palavras tão antigas como compaixão, aceitação, tolerância, apoio e solidariedade ao mesmo tempo em que nutrem a esperança para o outro modelo social, deflagram a falência do atual. Parece até que, quanto mais as usamos, mais longe de seu sentido estamos.
Ao propor a ética do reconhecimento como forma de acordo social, o filósofo alemão Axel Honneth ergue um pressuposto inteiramente novo. Ele diz que o ser humano deve ser reconhecido em todas as suas limitações para ser estimado socialmente e gozar de autoestima, sem que deva ser tomado por estas. E que ele depende tanto do reconhecimento de suas habilidades quanto de suas necessidades para tal. Para ele, a noção de autonomia é sempre apoiada socialmente, jamais tomada em isolamento do indivíduo. É um pensamento que rompe muitas amarras, mas principalmente de quem se quer ver desamarrado.
Lembro que há alguns anos atrás, no festival Assim Vivemos, em Porto Alegre, assisti a um filme iraniano muito tocante sobre duas irmãs, Mitra e Jamileh, que se comunicavam inteiramente pelo contato físico e gestual. O filme chama-se “Quando brilha um raio de luz”. Mitra nascera com uma severa deficiência física e Jamileh nascera surda. Mitra é o elo comunicativo da dupla e, a despeito de sua deficiência física, tem um talento especial para o desenho. Juntas, elas vivem intensamente em um ambiente social precário. Sua energia é extraída da colaboração. Suas vidas são um exemplo perfeito de que o indivíduo não prescinde dos demais e que mesmo a funcionalidade é um valor relativo, que pode ser compensado (e recompensado) pelo envolvimento social.
Que a vida não é um moto-contínuo todos nós sabemos, de forma mais ou menos racional. Ela supõe obtenção e gasto de energia, ela necessita estratégia de sobrevivência, mesmo que às vezes de formas quase irreconhecíveis pela inteligência. Talvez aí esteja seu grande mistério ou a razão pela qual dependemos uns dos outros e de ambientes sociais favoráveis. Como em poucos momentos antes do atual, o ser humano parece empenhado em sua felicidade. Eu até penso que seja admissível e interessante que as pessoas busquem ao máximo o seu desenvolvimento, mas que esse não seja o único “Graal” de suas vidas. Quem sabe não pode haver vários, de outros tipos e finalidades? Também não se pode esquecer que mesmo o Graal original não foi utilizado na solidão, mas no encontro de muitos. E se esse encontro faz algum sentido até hoje não é por causa de um copo, mas pelo tempo ali compartilhado, pelas trocas feitas, pelos compromissos selados.
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Jean Paul Sartre. Entre quatro paredes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
Axel Honneth. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2009.
Konrad Lorenz. A demolição do homem: crítica à falsa religião do progresso. São Paulo: Brasilinse, 1986.
* Coordenador-Geral da Inclusive – Inclusão e Cidadania e autor de Morphopolis.
Mais uma vez, meus parabéns e obrigada por expor de maneira tão clara uma reflexão tão oportuna e importante – para todos nós, para todos nós…
Lucio,
Seu artigo tem a nitidez de um observador qualificado para expor contradições e imperfeições da funcionalidade total como busca suprema. O texto é perfeito e inquietante. Portanto, se precisasse de aprovação, por mim ele estaria aprovado. Dito isso, passo a comentar minha reação a ele.
Encontrei especial ponto de reflexão no seguinte parágrafo: “… O uso do exame de funcionalidade pode ser suficiente do ponto de vista do examinador, mas jamais será do examinado. Por mais que se ampare em um modelo social de compreensão, o uso da funcionalidade como escala extirpa o social da vida do indivíduo, transforma-o numa amostra, anulando a importância das relações humanas na expressão potencial de cada pessoa.”
É a mais completa verdade, já que a avaliação da era do modelo social perpetua o modelo biológico e individual. A funcionalidade das escalas de avaliação deixou de fora o ambiente social das relações interpessoais e da construção física do ambiente social. Basta lembrar que a CDPD, tratado do modelo social, baseou-se na CIF, que por sua vez é uma tentativa de superação da CID, patologizante como você observou. A referência aos fatores contextuais contida na CIF é tão reduzida e imprecisa quanto os ajustes ou adaptações razoáveis da Convenção.
As questões fundamentais do modelo social não foram ainda trazidas para a prática. E avaliação é aspecto do pensamento que essencial se exercita no mundo da práxis. Examinadores continuam a representar a sociedade e examinados, oriundos da mesma sociedade, continuam a ser os oprimidos. É o modelo médico que predomina na avaliação do modelo social, ainda que camuflado.
Concordo com ressalvas com seu texto em “… Se o “Graal” da funcionalidade total visa entregar seres mais habilitados a essa dinâmica social, então tanto o modelo social quanto o modelo médico estão em colapso.”
Para mim, não é o modelo social que está em colapso, mas sim capacidade de superar o modelo biológico. Sobressai a nossa incapacidade de avaliar a funcionalidade do contexto social. É mais fácil e direto medir as imperfeições do indivíduo do que analisar o potencial de desenvolvimento de cada um e de todos em dado tecido social e seus desdobramentos. Falta uma escala de avaliação para o social e falta a compreensão de conjunto. Também não tenho certeza que mais uma avaliação nos faça evoluir.
De forma pragmática, considero que não entendemos quais necessidades do indivíduo suficientes para que ele não seja condenado a viver como solitário e, portanto, imperfeito. Sem esse passo, o modelo social não pode acontecer.
É por isso que desejo acreditar que ele ainda não está em colapso. O modelo social é um porvir.
Lucio, seus artigos são os mais especiais e interessantes que há para ler. Eles são repletos de humanidade e observação cuidadosa. Parabéns e muito obrigado.
Mariana
Izabel
Acredito que você fez a leitura conforme eu havia imaginado. Essa perpetuação camuflada é que tem minha objeção expressa. Acredito que o modelo social precisa necessariamente ser superado pelo compreensivo, porque o social é dependente mais do econômico (portanto de causas externas) que o desejável. O que me incomoda profundamente, e foi isso que me moveu a escrever, é a forma pela qual o discurso é assimilado e perpetuado em práticas essencialmente individualistas e muito pouco sociais. Ora, o modelo social não deve existir apenas como forma de compreender e justificar as situações, mas também de ampará-las e modificá-las, haja vista a precariedade das condições oferecidas tanto pelo mercado quanto pelo estado. No meu entendimento, o colapso já está dado para aqueles que, dependentes do estado assistencial, veem-se desajustados na sociedade competitiva. Talvez não estejamos vendo ainda os sinais do colapso, talvez o sintam melhor as próximas gerações, mas o pior é estarmos investindo pesadamente numa ideologia capacitista e abilitista. Isso em uma sociedade desigual como a nossa é quase um decreto de pobreza. As políticas públicas em relação à deficiência atingem as pessoas em diversas situações, mas não se adaptam, são uniformes e estanques. Um modelo compreensivo teria de ser mais flexível, individualizado, localizado.
Enfim, minha aposta é justamente encontrar um meio caminho no qual principalmente os mais pobres possam desenvolver-se com alguma razoabilidade. Um modelo, qualquer ele, que não ajude o indivíduo a superar as dicotomias culturais e econômicas é apenas um modelo que conserva o estado de coisas, embora ele devesse fazer diferença concreta na vida das pessoas para justificar o nome “social”. Só dizer que o social deve ser envolvido e considerado já nem dá conta de explicar tantas incoerências e “diferenças”. Junte-se uma pitada de ideologia funcional e equipamentos sociais depauperados, temos então um problema sério a resolver e um legado futuro a evitar.
É uma conversa longa e prolixa, mas eu só posso lhe agradecer pela leitura e disposição em conversar..
Um abraço
Lucio