O escafandro e a borboleta: a conquista da autonomia e dignidade de deficientes com síndrome “locked-in”

Cena de O Escafandro e A Borboleta

Por Ana Paula Barbosa-Fohrmann *

Muitos já devem ter lido O Escafandro e a Borboleta, publicado na França e no Brasil em 1997, ou visto o filme de 2007 baseado nesta biografia e dirigido por Julian Schnabel. A história de Jean-Dominique Bauby, editor bem sucedido da Revista Elle, se inicia e se desenrola depois de ele ter sido acometido por um acidente vascular cerebral enquanto dirigia. Depois de quase três semanas, Bauby acorda de um coma em um quarto de hospital, consciente, lúcido, mas com uma síndrome rara, a denominada síndrome “locked-in” (LIS), ou síndrome “pontina ventral”, ou, ainda, chamada do cativeiro ou do encarceiramento. As traduções da denominação desta doença rara parecem trágicas. A sensação que podemos, a princípio, ter lendo o livro e/ou vendo o filme é que a pessoa com essa extrema forma de deficiência física foi literalmente enterrada viva: todos os movimentos musculares do seu corpo, como braços, pernas, face, boca ou língua, ficam paralisados. O paciente, nesta condição, parece estar ou continuar em coma. Mas só parece. O estado de plena consciência é revelador, contudo. Os movimentos dos músculos verticais dos olhos e a elevação da pálpebra, assim como sua sensibilidade a dor, continuam a funcionar, a estar presentes, visto que tal tipo de lesão cerebral não atinge e, portanto, preserva o movimento voluntário dos olhos. No livro e no filme, apesar da drástica e irreversível mudança de vida, Bauby, preso em seu próprio corpo, não se entregou a estados depressivos graves ou profundos. A sua capacidade de sonhar, desejar e seu humor positivo não permitiram que ele se embrenhasse pelo caminho pretensamente mais simples: o de não desejar a vida. Sem dúvida, o acompanhamento, a dedicação e a persistência de sua terapeuta especializada em ortofonia o auxiliaram pacientemente e de forma determinante na expressão de sua autonomia. Tal expressão sucedeu com a canalização da comunicação por meio do piscar do olho esquerdo. Piscando o olho esquerdo (a pálpebra do direito foi obliterada), Bauby foi capaz de ditar (piscar) letras do alfabeto, formar palavras, parágrafos e, no final, escrever a sua biografia.

Por que vamos nos referir aqui à autonomia e à dignidade em um caso tão raro, particular de deficiência severa ou extrema? É possível realmente, neste contexto, falarmos de ambas? Em que sentido? O ponto de partida da nossa escolha é o da interpretação da autonomia moral de Kant, tendo como base a sua obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes, que tanto influenciou não só a Filosofia, mas também o próprio Direito, como fundamento possível e razoável para a defesa dos direitos humanos de grupos vulneráveis, como é o caso das pessoas com deficiência física extrema. Como aqui, não se trata de um artigo científico, mas tão-somente de apresentar um novo olhar sobre a problemática da autonomia no caso relatado a um público abrangente, conhecedor ou não deste universo, vamos preferencialmente nos ater a alguns pontos centrais da teoria kantiana e buscar interpretá-los.

De acordo com Kant, em sua Fundamentação, a autonomia é a capacidade para aceitar livremente e com auto-determinação as leis morais e de obedecê-las. Pelo fato de se auto-conceder leis baseadas na razão, o homem passa a estar dotado de valor absoluto, e é isso o que constitui a sua dignidade. Assim, a autonomia é a base da dignidade de todo ser humano e de toda natureza humana racional. Ademais, a dignidade humana fundada no valor absoluto do homem pressupõe que ele seja um fim em si mesmo e não um mero objeto. Como um fim absoluto em si mesmo, todo ser racional deve, consequentemente, admitir que todos os outros seres racionais também igualmente o são.

Indo além da leitura acima e expondo, a partir de agora, nossa interpretação da autonomia, que tem em Kant, o seu ponto de partida, podemos afirmar que ela pode ter duas significações: a interna e a externa. A primeira, a nosso ver, está baseada no fato mesmo da existência do ser humano; essa existência que por si só o diferencia de qualquer outro ser não-racional e não-humano. A autonomia interna está, neste sentido, diretamente conectada com a identidade, a identidade que o torna um ser único.

Já a autonomia externa é um atributo de todo ser humano em sua ação com o meio que o circunda. É, em nosso sentir, caracterizada pela sua visibilidade e por tornar concreto o que é particularmente e intrinsecamente humano: a própria identidade e dignidade.

A autonomia interna se revelou no caso de Jean-Dominique Bauby, seja pelo próprio fato de ele ter nascido como ser humano, com identidade própria, seja pelo fato de ela ter-lhe conferido valor absoluto e, portanto, tê-lo provido também de dignidade.

A autonomia externa se mostrou em dois momentos específicos. Em primeiro lugar, Bauby não se tornou um mero objeto da Medicina (lembremos, apenas como exemplo, do papel marcante desempenhado por sua terapeuta e da relação/vínculo estabelecido entre ambos), assim como também não foi meio para a expressão da comiseração social  – de familiares, amigos, conhecidos. Sua vontade autônoma, expressada com o olhar, com o piscar do olho esquerdo, lhe possibilitou tanto estabelecer uma relação possível de comunicação com o seu entorno imediato como também formar conexões com o próprio mundo por meio do seu livro.

A deficiência, portanto, seja ela qual for e independentemente da sua profundidade, não deve ser sinônimo de exclusão, encarceramento, é simplesmente uma condição (temporária ou permanente) concreta da vida do ser humano. Não deveria, assim, existir diferenciação, por exclusão ou separação, da pessoa com deficiência, na medida em que a autonomia e a dignidade nos foram, como seres humanos que somos, destinadas a todos sem distinção. Através desse olhar interpretativo da autonomia e da dignidade apresentado, é como se, ao final, Bauby nos ensinasse: “Existem, sim, sonhos possíveis, borboletas, desejo, esperança, vida, enfim, pulsando e consciente, abrindo o escafandro.”

* Professora Adjunta-A de Teoria do Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atua, entre outros, nas áreas de Teoria do Direito e de Ética e Direitos Humanos, concentrando seus estudos, publicações nos seguintes temas: deficiência, dignidade humana, teoria dos direitos humanos.

One Comment

  1. Excelente reflexão…..a deficiência não é o fim de um ser humano ela é o inicio de um aprendizado para quem não a possui.Diante desse encontro acontece o grande aprendizado…..
    Bjus a todos que acreditam que podemos transformar o mundo!

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