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Se o espaço público é para todos, e esse todo é permeado por diferenças, apenas com a adequação a medidas de acessibilidade será possível se viver em harmonia e paz nas cidades. É o que afirma o presidente da Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, seção Ceará (OAB-CE), Ricardo Franco Vieira. Apesar dos avanços, e aí inclui a lei do passe-livre nos coletivos, ele faz crítica às barreiras arquitetônicas existentes em Fortaleza
Qual o papel da sociedade e dos governantes na promoção da inclusão de pessoas com deficiência, medida que ajuda a promover os direitos humanos e a paz na sociedade?
Hoje, não se admite mais que as pessoas com deficiências, por esse motivo, fiquem fora da vida social e econômica. É certo que ainda existem preconceitos, mas a luta é para que isto seja superado e, nesse aspecto, é fundamental a participação da sociedade, que deve ficar cada vez mais atenta, exigindo políticas públicas que contemplem esse segmento, além da natural solidariedade, que deve ser posta em prática no cotidiano. Quanto aos governantes, é necessário a conscientização de que são gestores do Estado e devem voltar seus esforços para toda a sociedade, sem exclusões ou discriminações de qualquer espécie.
Como o Direito pode contribuir para a superação de barreiras e para a diminuição de preconceitos contra as diferenças?
Muitas vezes, as mudanças ocorridas no sociedade provocam alterações no Direito. Isso é algo até natural. Mas, por outro lado, não raro, o Direito também provoca mudanças na sociedade, já que muitas teses jurídicas de vanguarda acabam se transformando em leis. Tempos atrás sequer nem se falava em legislação protetiva dos direitos das pessoas com deficiências, hoje, já há um arcabouço legislativo, que embora deva ser aprimorado, já trata de questões importantes, como as vagas reservadas em concursos públicos e várias leis que asseguram o passe-livre em transportes coletivos.
Quais os avanços, sobre o assunto, existentes na legislação brasileira e em Fortaleza?
Na legislação brasileira, a começar pela Constituição Federal, vários são os direitos assegurados às pessoas com deficiência. No artigo 7º, XXXI, existe a proibição de discriminação à admissão e salário dos trabalhadores com deficiência; no artigo 37, VIII, existe a reserva de cargos e empregos públicos, bem como os critérios a serem definidos por lei, que se encontra no Estatuto dos Servidores Públicos Civis da União; há também a garantia da habilitação e reabilitação da pessoa com deficiência e a sua integração à comunidade, bem como de um salário mínimo mensal para a pessoa com deficiência que não dispuser de recursos para se manter, que se encontra regulado pela Lei Orgânica da Assistência Social.
E quanto à acessibilidade?
Em matéria de legislação infraconstitucional existe a Lei Nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000, que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras providências. Merece destaque a edição do decreto presidencial Nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999, que adentrou o ordenamento jurídico brasileiro, não apenas regulamentando a Lei Nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, como também instituindo a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência e, sobretudo, consolidando as normas para sua proteção.
No município de Fortaleza, há avanços na promoção ou garantia de direitos a quem apresenta alguma limitação física ou mental?
Em âmbito local, a Capital também dispõe de várias leis que tratam da acessibilidade e, mais recentemente, a lei do passe-livre em transportes coletivos. Entretanto, o problema não é só da existência ou inexistência de lei. É preciso fiscalizar a efetiva aplicação dessas leis por parte dos governantes.
Quais as dificuldades para que essas leis sejam, efetivamente, cumpridas?
Compreendo como sendo a soma de vários fatores: a falta de conscientização do problema por parte de muitos administradores que acreditam que se trata de “minoria” e assim estas pessoas não decidem eleição; a insensibilidade e falta de vontade política de muitos gestores; os custos com as mudanças arquitetônicas necessárias etc.
Na Capital, o que pode ser destacado para garantir a acessibilidade e facilitar a vida de todos os moradores, enfim, para que pessoas diferentes vivam em harmonia?
Fortaleza é uma cidade com muitos obstáculos para as pessoas com deficiências, muitos prédios públicos nem sequer dispõem de rampas para garantir esse acesso diferenciado. Por incrível que pareça, somente agora está sendo resolvido esse acesso especial no prédio onde funciona a Secretaria do Trabalho e Ação Social do Estado, um dos órgãos públicos mais procurados pelas pessoas com deficiências, e isso depois de muita luta.
Até que ponto a promoção de uma cultura de paz também está relacionada ao acesso de todos os seus moradores aos equipamentos da cidade?
Afinal, se o espaço público é para todos, e esse todo é permeado por diferenças, somente com a adequação da cidade às diferenças é que teremos um espaço verdadeiramente público, democrático e cidadão, ou seja, poderemos viver diferentes e harmônicos, e, claro, com paz social.
É possível citar casos significativos nos quais o deficiente, ao reivindicar seus direitos à acessibilidade, tenha sido vitorioso?
Há o caso do exemplo acima, do prédio da Setas. Também podemos dizer que depois de muita peleja foi promulgada lei municipal que assegura passe-livre para pessoas carentes com deficiência. Mas creio que o grande obstáculo continua sendo a barreira arquitetônica que ainda não foi transposta.
Por quê?
Imagine a dificuldade, para não dizer impossibilidade, hoje em dia, para um cadeirante, por exemplo, usufruir o sistema de transporte coletivo, seja urbano, seja interestadual.
Que atuação tem a comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), seção Ceará, que o Sr. hoje preside, na área da inclusão social?
A preocupação com a inclusão social é uma marca da nossa gestão. Temos a compreensão da amplitude dos temas abrangidos pelos direitos humanos, na busca da paz na sociedade. Temos participado dos mais importantes debates sobre inclusão social que ocorreram em Fortaleza desde o ano passado, seja no que diz respeito à alimentação, moradia, trabalho, educação e saúde. Estamos sempre de olho na questão da cidadania, afinal ser cidadão, é buscar a dignidade da pessoa humana, cumprindo seus deveres e usufruindo de seus direitos, sejam políticos, sociais ou econômicos. E para o portador de deficiência, em particular, a dignidade está assentada no princípio da igualdade.
Na área do trabalho, o que diz a lei quanto à admissão de deficientes em empresas?
A lei proíbe a discriminação, seja na admissão, seja nos salários e incentiva a contratação, isso porque na sociedade capitalista, o homem é reconhecido na medida em que se insere no circuito de produção e consumo. Os que se localizam fora disso são condenados pela lógica liberal, são considerados desviantes e ameaçam a ordem social. Nas últimas décadas, assistimos à implementação de serviços voltados à profissionalização de pessoas com deficiência e o esforço para encaminhá-las ao mercado de trabalho, apoiado sobre o discurso da integração. Este movimento sobressaiu-se desde a Constituição Brasileira em 1988 e foi, gradativamente, sendo ampliado.
Quais as chances de quem é deficiente disputar com pessoas sem limitações uma vaga num mercado altamente competitivo ?
Reconhecidas em condições de desvantagem para competir por uma vaga no mercado de trabalho, pessoas com deficiência são alvo de políticas de ação afirmativa, que se materializam nas leis, com a discriminação de vagas nos concursos públicos pela Lei 8.112 de 11 de dezembro de 1990, e ainda, pela reserva de vagas nas grandes empresas privadas, Lei 8.213, de 8 de dezembro de 1991.
Essa lei é cumprida no Ceará ou há burla?
Não disponho de informações sobre se o Ceará se encontra em posição abaixo ou acima da média nacional no que tange ao cumprimento da legislação específica. Não se pode é perder de vista que, apesar de a legislação incentivar a absorção de pessoas com deficiências, é considerável a existência de preconceito em relação à contratação dessas pessoas. É de certa forma uma questão cultural, portanto, acredita-se que haja burla. Não obstante defender a importância da legislação protetiva, acredito que só uma mudança de hábitos culturais e sociais será capaz de promover a igualdade e a paz.
Mozarly Almeida – Repórter