Dentre as causas sociais que precisam de atenção nas lutas políticas está o combate à discriminação e à intolerância. E entre tantos fatores que geram a discriminação está a Aids.
Por Cristiane Delfina
na Com Ciência
Dentre as causas sociais que precisam de atenção nas lutas políticas está o combate à discriminação e à intolerância. E entre tantos fatores que geram a discriminação está a Aids. Síndrome da imunodeficiência adquirida, a Aids é uma doença transmitida pelo HIV (vírus da imunodeficiência humana) através do sangue, de relações sexuais sem uso de preservativos, na gravidez, amamentação ou no parto. Não se pega Aids através da saliva ou do suor.
Mas o medo prevalece, resquício das reações chocantes ao primeiro diagnóstico da doença no país, no início dos anos 1980, conforme explica Onã Silva no artigo “No espelho da bioética crítica: a imagem refletida das vulnerabilidades das pessoas que vivem-convivem com HIV/Aids”: “A peste gay foi o primeiro rótulo construído para a Aids, pela sociedade perplexa, diante do mal que se disseminava com alta letalidade, causando pânico e medo. Surgiu o discurso baseado em risco iminente de a coletividade ser atingida pela peste gay, influenciando os modos de vida e valores. A construção social da Aids – síndrome então desconhecida no mundo acadêmico – se configurou e fortaleceu na ideia de doença contagiosa, incurável, mortal, provocada pelo castigo divino. Tornou-se ameaça à sociedade, que passou a evitar o portador do vírus. Inclusive a exclusão era reflexo do ato punitivo social pelas supostas transgressões praticadas pelas pessoas soropositivas. A representação inicial também era de uma doença associada aos grupos de risco – geralmente aqueles discriminados como homossexuais, usuários de drogas injetáveis e profissionais do sexo – e, posteriormente, aos grupos específicos dos hemofílicos e receptores de sangue transfundido. Essa representação rotulou a Aids no campo das doenças malignas, mexeu com sentimentos e preconceitos, gerou condutas e políticas discriminatórias aos grupos mais vulneráveis ao HIV.”
Apesar dos estigmas impostos à doença, o Brasil teve uma reação rápida de busca por tratamento e controle, tornando-se pioneiro na quebra da patente para produção de antirretrovirais e na distribuição e tratamento gratuito aos soropositivos. Pesquisas e aperfeiçoamentos constantes fizeram da Aids, hoje, mais uma condição de vida do que propriamente um estado sintomático e destrutivo; e isso revelou que talvez mais fortes que os sintomas físicos provocados pela doença são os comportamentos discriminatórios aos portadores, males que a sociedade tem dificuldades para curar.
Como exemplo do preconceito institucionalizado no país, em 2011, o Ministério da Educação anunciou o lançamento o kit anti-homofobia, desenvolvido pela organização não governamental Ecos com o objetivo de abrir o diálogo sobre o homossexualidade em turmas de ensino médio de 6.000 escolas do país. Atacado pela Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional e outros membros conservadores, o kit, composto por uma cartilha e três vídeos, foi vetado pela presidente Dilma Roussef. A censura a essa iniciativa do Ministério da Educação impediu que informações importantes de prevenção e segurança chegassem a jovens em plena descoberta sexual, funcionando como desserviço à saúde e à tolerância, por ter como argumento o não incentivo a práticas homossexuais e, mais do que isso, o não incentivo ao diálogo sobre sexo em geral nas escolas.
Para Georgiana Braga-Orillard, diretora do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids) no Brasil, a discriminação é o medo do outro. Segundo ela, diante da qualidade que o país possui no tratamento à doença, a maior contribuição que o programa pode trazer é na luta contra o preconceito. Orillard assumiu em outubro de 2013 a direção do Unaids, que engloba 11 agências da ONU e mais instituições e órgãos parceiros, como ministérios, empresas privadas, embaixadas, agências bilaterais e representantes da sociedade civil. Em 2014 o Unaids lançou a campanha mundial “Zero Discriminação”, que tem como meta “combater quaisquer estigmas e preconceitos que impeçam o direito a uma vida plena, digna e produtiva, combatendo todos os tipos de discriminação – seja sexual, geracional, de raça ou de gênero – como fator de vulnerabilidade social e estrutural”.
“A gente quer incorporar zero discriminação em tudo o que a gente faz. Nossas metas são para tratamento, para prevenção, mas que a gente incorpore o zero discriminação. Pensando na agenda do desenvolvimento sustentável, na agenda pós-2015, um dos temas que saíram das discussões de alto nível foi de não deixar ninguém pra trás: “leave no one behind”. E o que é que estamos vendo? Que justamente são essas populações vulneráveis que estão ficando para trás. Então, é essa ideia: a gente reforçar esse trabalho contra a discriminação. É uma campanha e uma iniciativa”, diz Orillard.
Trabalhando de forma transdisciplinar e não só focada no preconceito contra portadores do vírus HIV, essa campanha surge em um momento em que líderes da ONU demonstram preocupação com o aumento da discriminação como um todo no mundo, pois após fases de conquistas de direitos por parte de minorias, como o reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo em muitos países, por exemplo, em outros há retrocesso. “A gente vê países tomando posições mais radicais. A gente vê Uganda, por exemplo, que, 20 anos atrás, era um país que começou bem na luta contra a Aids, que tinha uma luta pelos direitos humanos muito boa e que retrocedeu e está cada vez mais tradicional. São questões que estão vindo à tona. São ondas que tomam forma e que a gente deve impedir”, observa Orillard.
Tem-se hoje, no combate à discriminação, inúmeras iniciativas que se interrelacionam, por terem muitas coisas em comum. Contra a discriminação da Aids, uma recente conquista pode ser comemorada. No dia 06 de junho deste ano, foi publicada no Diário Oficial da União a Lei 12.984/2014, aprovada recentemente pelo Congresso Nacional e sancionada pela presidente Dilma Rousseff. Essa lei tramitou por 11 anos na Câmara e no Senado e prevê quatro anos de prisão para quem discriminar portadores do HIV. De acordo com a lei, será crime impedir ou dificultar a inscrição de soropositivos em instituições de ensino, assim como demitir ou exonerar de cargos ou isolar trabalhadores em razão da doença.
O respaldo da justiça é um passo grande para a garantia da dignidade de pessoas que sofrem qualquer tipo de preconceito, enquanto uma política educacional íntegra não dê conta disso. Mudanças como essa não seriam efetivadas sem a pressão da sociedade em suas mais diversas instâncias.
Manifestações sociais e ONGs
No artigo “Sociedade civil no Brasil: movimentos sociais e ONGs”, publicado pela revista Meta em agosto de 2013, Maria da Gloria Gohn, pós doutora pela New School University – New York e professora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, aponta como, no Brasil, o último milênio mobilizou a população em busca de mudanças sociais. Inicialmente, antes da década de 1990, como reação às ações governamentais autoritárias, grupos se organizaram para reivindicar a democracia através de militâncias e manifestações. Posteriormente, ora auxiliando as organizações já formadas, ora propondo novos focos, as organizações se voltariam para assuntos mais pontuais e para proposição de soluções para problemas, para isso associando-se, inclusive, a órgãos governamentais e privados.
“Em suma, o associativismo nos anos de 1990 passou a ser mais propositivo, operativo e menos reivindicativo – produzindo menos mobilizações ou grandes manifestações –; é mais estratégico. O conceito básico que dá fundamento às ações desse novo associativismo é o de participação cidadã. É importante destacarmos algumas características deste conceito porque ele fundamentou várias práticas civis que se desenrolaram no interior de estruturas estatais ao longo da primeira década do novo século. Elas esclarecem a ênfase que passou a ser dada à participação institucionalizada, normatizada, que apresentou claros sinais de esgotamento no início da década que vivemos (2010 em diante) e ajudam a compreender o retorno das manifestações civis nas ruas, em junho de 2013”, diz o artigo.
Gohn afirma, portanto, que as organizações institucionalizadas dos anos 1990 teriam se tornado também burocráticas e opacas como os próprios governos, trazendo como exemplos a Anistia Internacional, o Greenpeace e a Campanha contra a Fome (ação de cidadania lançada pelo sociólogo Herbert de Souza), mas reconhece que tanto as militâncias quanto as novas ONGs juntas teriam papéis importantes nas mudanças do país.
“Uma nova cultura política foi construída a partir daquela herança, em relação ao espaço público e aos temas de interesse coletivo como meio ambiente, saúde, lazer etc., ou temas de interesse de coletivos específicos como os portadores de deficiência física, mental, do vírus da Aids etc. Ou seja, as ONGs cidadãs/militantes, junto com os movimentos sociais reivindicatórios dos anos 1980, construíram um conjunto de práticas que se traduzem numa cultura de cidadania, algo novo num país de tradição centralizadora, autoritária, patrimonialista e clientelística. Suas ações abriram espaços que demarcaram novos ‘lugares’ para a ação política, especialmente ao nível do poder local e no meio urbano, na gestão das cidades”, segue o artigo.
Vale lembrar que grupos organizados para propor ações ou reivindicá-las não necessariamente lutam por correções em prol da igualdade de direitos e deveres. Embora muitas associações tenham origem em grupos político-ideologicamente fechados e se unam por bens comuns à sociedade em geral, semelhantes estruturas se formam para discutir e compor programas e projetos com bases e motivações políticas, religiosas, visões e interesses bem específicos, como por exemplo o Instituto Plínio Corrêa de Oliveira e a Associação para Defesa da Heterossexualidade, do Casamento e Família Tradicionais. O objetivo, nesses casos, pode tornar-se novamente impositivo e pouco ou nada inclusivo.
Em 1945, após a Segunda Guerra Mundial, formava-se a Organização das Nações Unidas, substituindo a Liga das Nações, com o objetivo de promover diálogos pela manutenção da paz mundial. A ONU é composta por agências especializadas que atuam no direito internacional, segurança internacional, desenvolvimento econômico, progresso social e direitos humanos. Ao mesmo tempo em que é muito criticada por ter como membros permanentes no seu Conselho de Segurança somente as cinco maiores potências nucleares (o que torna as ações bastante imperativas e talvez tendenciosas), também se mostra influente e bem sucedida em momentos de crise localizada e apoio a projetos e programas sociais, além de ser um importante canal de comunicação e troca de informações entre as nações e suas realidades. Campanhas de conscientização ganham maior visibilidade quando endossadas pela organização.
É difícil mensurar e avaliar resultados de projetos e programas sociais. Em parte porque existem poucas metodologias especializadas nessas áreas; em parte porque ações sociais são completamente dependentes das dinâmicas da vida, das interações e das mentes. Traçar planos e metas e verificar se foram ou não atingidos não garante que se reconheça todas as mudanças qualitativas provocadas por projetos em prol desses planos. Mas o trabalho constante de planejamento, a médio e longo prazo, e da valorização da alteridade e da auto-crítica pode ser ferramenta útil para se transformar realidades.
“O Unaids está vendo como objetivo chegar a 2030 com o que chamamos de fim da epidemia (da Aids). É uma esperança; é um objetivo bem difícil – não de acabar com o vírus, que ninguém tenha mais HIV –, mas que, em 2030, os níveis epidêmicos não existam mais, que seja uma doença mais controlada. Essa é uma meta que o Unaids tem e onde gostaria de chegar. Daqui para lá, vejo vários momentos de crise, de retrocesso político, de retrocesso econômico, que podem nos levar a não chegar a esses objetivos”, finaliza Orillard.