Desvendando fósseis

Ou Pequeno Dicionário Amoroso

fóssil de uma concha em uma pedra. dois dedos destacando fossil.

Por Ana Nunes

O verbo “judiar” fez parte do meu vocabulário por muito tempo. Deixa de judiar do cachorro, menino! Ô judiação! E por aí vai. Até o dia em que uma amiga, judia, me disse que aquele verbo a ofendia. Explicou que, ao falar “judiar”, eu ajudava a perpetuar um estereótipo nocivo, que pinta os judeus como maus e apresenta um povo como sinônimo de atos de crueldade. Estereótipo que, historicamente, foi usado para vitimar o povo de que minha amiga faz parte. Essa amiga querida me fez pensar. Não me defendi dizendo que não tinha a intenção de ofender. Apenas escutei. E desde então tenho feito um esforço para dizer “maltratar” em vez de “judiar”.

Uma outra amiga, que trabalha com Direitos Humanos, uma vez me falou: “a gente tem que se perguntar o tempo inteiro onde mora o nosso preconceito.” Parafraseando minha amiga, a gente também tem de se perguntar se não estamos, inadvertidamente, com aquela falta de cuidado típica de quem não é diretamente atingido pelo assunto, reproduzindo um preconceito ancestral, que ficou calcificado na linguagem como um fóssil. Era meu caso com o verbo “judiar”.

Muitas vezes a gente erra – e ao errar ofende as pessoas e ajuda a perpetuar uma ordem injusta – não por maldade, mas por desconhecimento, por descuido. Para ficar na imagem do parágrafo anterior, erra porque não vê o fóssil.

Então, pra ajudar todo mundo a errar menos, ofender menos, e não ser cúmplice inadvertido de uma ordem injusta, resolvi fazer uma compilação rápida dos erros mais frequentes relativos à deficência – ou do que mais me perguntam como dizer. Com vocês, os fósseis.

1) Diagnóstico não é xingamento

Esta semana, um amigo fez uma postagem no facebook. Compartilhou um artigo interessante, acompanhado de um comentário pertinente, embora um tantinho exaltado (quem nunca, não é mesmo?). Quis curtir a postagem, mas não consegui: em um determinado momento do comentário, meu amigo usava “débil-mental” como xingamento.

Ao usar um diagnóstico, ou uma condição médica, como xingamento, você ajuda a perpetuar a carga negativa normalmente associada àquela condição – e às pessoas que a apresentam. Reforça o estigma e alimenta o imaginário que contribui para a segregação e o isolamento de quem tem doença mental, deficiência intelectual, autismo. Essas palavras não são xingamentos – são diagnósticos. E mais que isso: muitas vezes são identidades.

2) Retardado

Essa não vou nem explicar. Vou partir da premissa de que todo mundo que está aqui já evoluiu o suficiente para não usar the R word. Use: deficiência intelectual.

3) Mongol

Essa também não precisava nem avisar, mas é tão carregada de significado que vale elaborar.

“Mongol” demarca os traços físicos característicos de uma certa condição: a aparência “mongólica”, asiática, de quem tem síndrome de down/deficiência intelectual. Esse “physical profiling” evoca uma época muito triste da medicina e da criminologia, quando a ciência se dedicava a identificar características físicas que evidenciariam deficiência intelectual ou propensão ao crime.

A busca por demarcar fisicamente as deficiências intelectuais (ou de caráter), o esforço “científico” em tornar visível qualquer desvio da norma que pudesse estar escondido, mostra a vontade de que o estigma seja visível a olho nu, de forma a possibilitar a pronta identificação daqueles considerados indesejáveis. Esta identificação, claro, tinha um propósito: permitir à população “sã” afastar-se prontamente dessas pessoas. Ou, em uma palavra: segregar. Identificar para melhor segregar. É o mesmo raciocínio por trás das braçadeiras com estrela de David que os judeus eram obrigados a usar. Ou da letra escarlate que marcava as adúlteras nos EUA do século XVII.

“Mongol” também é muito rico em significado porque liga a deficiência intelectual a uma região geográfica. Não por acaso, a uma região distante, mítica, estrangeira. O termo descortina a percepção da pessoa com deficiência intelectual como um “estrangeiro”, alguém que não pertence à “nossa” sociedade. Ao mesmo tempo, descortina nossa xenofobia, nosso repúdio ao  “outro”, ao diferente.

Resumindo: várias camadas de preconceito numa palavra só. Fóssil daqueles complexos. Evite.

Use: pessoa com deficiência intelectual, pessoa com síndrome de Down.

3) Portador de deficiência

Não use “portador”. Primeiro, porque portador evoca contágio (portador de um vírus etc.). E as pessoas com deficiência já sofreram muito, historicamente, com as suspeitas de que sua condição fosse algo contagioso. Deficiência não “pega”. Seu filho pode brincar tranquilo com aquele coleguinha autista na escola – o coleguinha é só uma criança com autismo, não é portador de nada. Portador é uma palavrinha carregada daqueles medos de epidemias ancestrais, da peste, da cólera.

Portador também não é legal porque dá a ideia de uma condição temporária. Hoje você é “portador” daquela doença, mas se trata e deixa de ser. Deficiência não é uma condição temporária, é uma identidade. Use: pessoa com deficiência, não portador.

Ah, e use “pessoa” na frente, sempre que puder. Porque você está falando de um grupo cuja humanidade foi, e ainda é, questionada. Um grupo que é muitas vezes percebido como sub-humano – ou como  humanos de segunda classe. Então, reafirmar a humanidade é sempre bom.

A fórmula “pessoa com deficiência” serve também pra não deixar que a deficiência defina a pessoa; afinal, o ser humano é muito mais que seu diagnóstico ou sua condição. Olha a diferença entre, por exemplo, definir alguém como “autista” (o autismo se confunde com aquela pessoa) ou “pessoa com autismo” (uma pessoa em toda a sua complexidade, com sentimentos, desejos, aspirações, afetos – e que, por acaso, tem autismo.) E “portador de autismo”, vocês já aprenderam: nem pensar.

Para referência: a Convenção da ONU sobre pessoas com deficiência usa o termo “pessoa com deficiência”.

4) Pessoa com necessidades especiais

Esse é polêmico. Pessoalmente, acredito na possibilidade de que cada uma escolha como quer ser chamado. O mesmo vale aqui: se uma pessoa com deficiência se identifica como “pessoa com necessidades especiais”, ok. O motivo todo desse cuidado com os termos é evitar duas coisinhas: 1) magoar inadvertidamente as pessoas; e 2)perpetuar estereótipos e conceitos que acabam por ser nocivos, na medida em que reafirmam a percepção negativa das pessoas com deficiência já incutida no “senso comum”.

Você, leitor, pessoa SEM deficiência, tem que ter presente isso aqui: uma parte da comunidade com deficiência não gosta da fórmula “necessidades especiais”. Porque entende que esta fórmula tenta esconder a deficiência sob termos mais suaves – e, ao fazê-lo, apresenta a deficiência não como simplesmente uma variação da espécie humana, mas uma coisa feia e vergonhosa que a gente tem que “maquiar”, disfarçar, chamar por outro nome pra não ofender. Analogia fácil: aquelas pessoas que, em vez de dizer “negro”, dizem “moreno”. Como se a negritude fosse um opróbrio que a boa educação recomenda suavizar.

A fórmula à prova de erro é, novamente, a da Convenção da ONU: pessoa com deficiência. Na dúvida, vai nela.

Ou pergunta pra pessoa a quem você vai se referir como ela prefere ser chamada.

5) Idiota, imbecil

Esse verbete eu dedico pra quem vai arquivar mentalmente esse texto como “patrulha do politicamente correto”. Porque essa é difícil de entender. Mas vamos lá. Idiota e imbecil eram usados como categorização de doença mental. São palavras que já foram “diagnósticos”, cada um indicando um quadro determinado de deficiência intelectual, com capacidades e limitações determinadas, nos primórdios do estudo da doença mental.

O primeiro erro em usar essas palavras é que hoje, na acepção comum, elas são, por si,
xingamentos. Aí a gente volta lá pro começo do texto: doença mental não é xingamento. Quando você usa estes termos pra xingar alguém, está inadvertidamente contribuindo pra perpetuar o estigma da doença mental.

O segundo erro é que, ao usar esses termos e achar que não tem nada de errado (são palavras dicionarizadas etc.), você está ignorando a História, com h maiúsculo mesmo, da doença mental. O estigma que existe hoje não nasceu do nada, não brotou do solo, não se gerou espontaneamente no vácuo. Ele vem de uma longa história de sofrimento, isolamento, experimentação, ciência equivocada, “diagnósticos” usados para segregar e justificar maus-tratos. Uma História da qual termos como “idiota” e “imbecil” são capítulos. São termos carregados de significado, mesmo que hoje o senso comum tenha se apropriado deles de outra maneira.

6) Minha favorita: “Eles são uns anjos, só precisam de amor!”

Normalmente usada para crianças com deficiência. Primeiro problema: desumaniza. Crianças com deficiência não são anjos, são seres humanos, são crianças como qualquer outra. Não vivem no ar, tocando harpa, vivem entre nós – você vê poucos deles por causa do preconceito, mesmo que esse preconceito seja bondoso, bem-intencionado e use de metáforas bonitas como anjos para evitar reconhecer que essas crianças são gente igual à gente.

Segunda parte, segundo problema: crianças com deficiência não só precisam de amor. Precisam de amor tanto quanto qualquer outra criança, certamente – um amor que muitas vezes lhes é negado. Mas precisam também de casa, de comida, de roupa, de estabilidade. E precisam, desesperadamente, de uma escola que as aceite, de um monte de tratamentos caros e de uma sociedade sem preconceitos – necessidades que são convenientemente minimizadas e esquecidas toda vida que a gente reafirma que elas só precisam de amor.

Use: “Elas são crianças como todas as outras, só precisam de inclusão!”

Ana Nunes é mãe da Bruna, de sete anos, uma menina muito esperta que tem autismo não verbal

 

Fonte – Inclusive

3 Comments

  1. Aprenda mais uma que pensei ia encontrar na sua lista: DENEGRIR.
    O ato de tornar ‘negra’ uma pessoa, como se negros fosse sinonimo de coisa ruim.

  2. Denegrir está relacionado com algo negro, escuro, onde não se pode ver. Não tem nenhuma relação a uma pessoa negra. Isso é o que chamamos hoje de lacração.

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