Pátria Educadora: especialistas criticam o documento, pedem mais diálogo e uma educação significativa

Por Ana Luiza Basílio, do Centro de Referências em Educação Integral
com Cidade Escola Aprendiz

Nas últimas semanas veio a público o documento Pátria Educadora: a Qualificação do Ensino Básico como Obra de Construção Nacional, elaborado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da República. A versão preliminar foi divulgada em caráter não oficial visto que, como apurou o Centro de Referências, sua consolidação passa por um processo dialógico com a presidente Dilma Rousseff, ainda não finalizado segundo o que informou a assessoria de imprensa da SAE. De qualquer forma, a publicação, amplamente divulgada, vem ecoando entre especialistas que incidem em uma agenda por uma educação de qualidade, equânime e significativa, prevendo o desenvolvimento integral dos estudantes. Confira as opiniões!

Pilar Lacerda, diretora da Fundação SM.Pilar Lacerda, diretora da Fundação SM:

Esse documento parte do princípio de que nada aconteceu nos últimos anos. Desconhece políticas importantes dos anos 90 pra cá, principalmente a partir do governo Lula, como os instrumentos de participação federativa – Plano de Ações Articuladas (PAR) e o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica que teve importante mudança política ao passar a priorizar os 1240 municípios com IDEB mais baixo. Além disso, é preciso falar sobre a centralidade pela Secretaria de Assuntos Estratégicos que conduziu a elaboração sem a participação do Ministério da Educação (MEC). Pelas 20 páginas do documento encontrei a palavra ‘todos’ uma única vez e ‘inclusão’ nenhuma. A questão é que a educação básica no Brasil dos quatro aos 17 anos é obrigatória; ou seja, não dá para fazer políticas que não sejam para todos, e esse não é o viés da publicação. Ainda acredito em mudanças significativas nessa versão, que partirão da apropriação do MEC para o que está posto.”

Diretora do Instituto Inspirare.Anna Penido, diretora do Instituto Inspirare:
“É fundamental que se tenha um projeto de educação prioritário, que dialogue com o projeto de país. Nesse sentido, minha expectativa sobre o documento era que, uma vez anunciado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos, envolveria os múltiplos setores do governo e da sociedade, e consideraria os múltiplos esforços necessários para chegarmos onde precisamos enquanto nação. Esperava algo que agregasse a cultura, o esporte, o desenvolvimento social, enfim, uma abordagem intersetorial. Os quatro eixos do documento me parecem muito pertinentes. Se conseguirmos ter concretização nesses campos – cooperação federativa, reorientação do currículo, qualificação de diretores e professores, e aproveitamento de novas tecnologias – temos chance de saltos. Mas há pontos preocupantes sobretudo em relação à Base Nacional Comum e como ela vem sendo trabalhada. O primeiro ponto é que se faz necessário estabelecer o que os alunos querem aprender, isso tem que estar dado. O ‘comum’ deve vir na perspectiva da equidade, da universalidade, sem exceção. Nesse sentido, ela [a base] não pode estar atrelada aos conteúdos que, sim, são importantes, mas estão a serviço do desenvolvimento de capacidades ou competências. Precisamos pensar bem sobre isso, pois queremos tornar os estudantes capazes de construírem seus projetos de vida e apoiarem o país como nação, e não vi menção a isso no documento. Outro equívoco é discuti-la como uma sequência de capacitações, entendendo isso como uma sequência de aulas estruturadas. Novamente, a base deve dizer dos impactos e não da metodologia. Se houver um pacto com os resultados, os meios podem ser diferentes, desde que alinhados com os princípios da equidade. As ferramentas pedagógicas podem permitir as diferenciações, desde que não se tenha percursos estabelecidos para alunos com mais ou menos habilidades. O terceiro equívoco é pensar o desenvolvimento das competências socioemocionais para determinados perfis de alunos em situação de vulnerabilidade, quando temos a perspectiva de que elas transitam por múltiplas dimensões dos indivíduos e precisamos promover o desenvolvimento integral deles. Por isso, é preciso prever, para todos, questões voltadas ao intelectual, cultural, socioemocional e físico. Com relação às tecnologias, o documento fala de vanguarda pedagógicas. Penso que, para chegarmos a esse nível, precisamos criar espaço para que ela possa emergir, ser pensada e gestada. E, certamente, vamos precisar investir no desenvolvimento dos profissionais de educação para que eles sejam agentes disso, em diálogo com outros atores. É salutar que eles possam trabalhar em conjunto com outras áreas impulsionadoras de inovação, como design, pesquisa, ciências sociais e outras. Isso é importante ser fomentado por uma política de Estado. Somente vídeos e softwares dentro da escola são ineficazes, além de comporem visão reducionista.”
Diretora da Associação Cidade Escola Aprendiz.Natacha Costa, diretora da Associação Cidade Escola Aprendiz:
“O documento que introduz o projeto Pátria Educadora apresenta, a meu ver, grandes problemas. Primeiro e muito importante, o fato dele ter sido concebido sem sólido diálogo com o Ministério da Educação. E, em segundo lugar, o que considero particularmente gravíssimo, o fato dele não mencionar as metas do Plano Nacional de Educação, um plano que é resultado de uma intensa interlocução entre o executivo, legislativo e a sociedade civil. Fico preocupada, sobretudo, com a concepção de país apresentada e da qual discordo integralmente. Enquanto o PNE buscou legitimar e dar lugar à diversidade socioeconômica, regional , cultural da população brasileira, construindo uma proposta capaz de responder aos desafios e oportunidades próprios da rica diversidade do país, o texto do Pátria Educadora concebe um país homogêneo, culpabiliza a população mais pobre pelos baixos índices educacionais e propõe, por exemplo, como estratégia, a criação de polos de excelência a serem seguidos como modelos pelos demais. Por fim, a proposta retoma a palavra ‘ensino’ no lugar de ‘educação’, nos fazendo retroceder a uma concepção que felizmente já havíamos ultrapassado no Brasil. Este documento tem que ser objeto de um intenso debate com a sociedade brasileira. O caminho até aqui, tanto em relação ao processo quanto ao conteúdo, me parece desastroso.”
Superintendente do Centro de Estudos e Pesquisas sobre Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec).Anna Helena Altenfelder, superintendente do Centro de Estudos e Pesquisas sobre Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec):

Tive acesso ao documento a partir de um convite do Ricardo Paes de Barros para um encontro com o ministro Mangabeira Unger, que aconteceu na última segunda, 27 de abril. Ele [o documento] surgiu no contexto de uma pré análise para posteriores considerações durante essa reunião. Nesse sentido, achei a iniciativa louvável porque partia de uma condição dialógica de construção. No entanto, a primeira coisa a me causar estranhamento foi a não convocação de outros atores sociais para esse momento, a começar pelo MEC, primazia dessa conversa, mas também Consed, Undime, ANPED, sindicatos e outras instituições que pensam a educação. Como segundo ponto, colocaria a não menção do documento ao Plano Nacional de Educação, principal balizador de nossas políticas e ações. Vejo, de maneira geral, que o documento traz ainda uma supervalorização da visão empresarial da educação, que se traduz desde as estratégias de meritocracia até a afirmação de que boas práticas nas escolas são orientadas por iniciativas empresariais; para além disso, o foco no diretor, com premiação e apoio aos que se sobressaem, e a seleção de alunos me mostra um desconhecimento da cultura própria da escola. Lógicas estranhas à esfera e ao contexto escolar podem ser analisadas. O que não se pode é ter a transposição de uma lógica para outro contexto, sem considerar aquele já existente. Outro ponto é que a própria lógica empresarial já é questionada pelas empresas mais inovadoras. O que está posto no documento parece me remeter ao século XX. Em vários momentos também me deparei com conceitos e concepções equivocadas, por vezes contraditórias, e não pertencentes à educação, como capacitações sobre habilidades pré-cognitivas. Vejo que o arranjo curricular não se faz claro, carecendo de uma reflexão maior. Coloco ainda o perigo de alguns estereótipos complicados em relação às famílias vulneráveis, associadas a mães solteiras, mulheres negras. Vejo que isso pode trazer a visão de uma escola centrada na disciplina e na cooperação para as crianças pobres. E é preciso se perguntar a serviço do que vem essa cooperação. Em relação à educação integral, vejo duas citações, uma que a traz em função do aumento do turno e outra que diz de um cumprimento das funções das famílias, o que desconsidera toda a produção e conhecimento sobre a educação integral, e ela como indutora de outras possibilidades educativas.

Daniel Cara, Coordenador Geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.Daniel Cara, Coordenador Geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação:
“Nós, da Campanha, consideramos um documento preocupante em relação ao conteúdo, mas acreditamos na abertura para diálogos e cooperações. A publicação traz uma visão pedagógica da educação da qual discordamos, que se aproxima muito das reformas empresariais nos Estados Unidos e outros países. Para além disso, reconhecemos problemas gerais, como a ausência de interlocução com o Plano Nacional de Educação e participação do Ministro da Educação, Renato Janine Ribeiro.

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