O livro engana. É fininho, tem um coração na capa e diz que foi escrito por uma mãe de autista. Não se iluda. A leitura é densa. Como disse um amigo:
“Pensei em ler Cartas de Beirute – Reflexões de uma Mãe e Feminista sobre Autismo , Identidade e os Desafios da Inclusão(Editora CRV) em um fim de semana. Foi impossível. Esse livro deve ser lido lentamente. Cada parágrafo deve ser lido e relido, pois levam a reflexões importantes. As páginas já lidas estão cheias de marcações e anotações para futuras referências. Obrigado, Ana Nunes, pelo livro.”
O meu exemplar, ao invés de marcações, traz orelhas em várias páginas. Com concisão, clareza e elegância com as palavras, referências que fazem todo sentido, e uma coerência impressionante, Ana Nunes nos leva numa análise de várias questões relacionadas à deficiência ainda não tocadas em nenhuma publicação brasileira que eu conheça, e em poucas estrangeiras. Além de tudo isso, há muitas informações interessantes e atualizadas para famílias de autistas.
A abordagem é única e pessoal, como quando falamos de pessoas, mas a identificação é imediata a cada passagem. E, como disse a blogueira Daniela, do Projeto Literário “As Participativas”:
“Ao contrário do que muitos pensam, esse não é um assunto que diz respeito apenas aos envolvidos diretamente, é um assunto que diz respeito a todos nós. Mas que, infelizmente, ainda permanece restrito e envolto em muitas camadas de desconhecimento, preconceito, desinformação, visões mitificadas, rejeição e piedade.”
Em cada capítulo a autora trata de um assunto importante. O inevitável diagnóstico da filha com autismo, o desconforto com os olhares curiosos, a difícil relação com os profissionais de saúde, tratamentos e a busca da cura, a importância da preservação da identidade da pessoa com deficiência, o trabalho – análogo à escravidão – dos cuidadores e o meu assunto preferido – concientização através da mídia, ou uma palavra que aprendi recentemente: edutainment – fusão de educação e entretenimento. Seria algo como educamento ou entrecação?
Ana cumpriu seu objetivo – fazer refletir. Em cada parágrafo ela traz colocações importantes que afetam a vida de várias pessoas diariamente. E não só das pessoas com deficiência e suas famílias. Isso porque todo o texto está entremeado com reflexões sobre gênero e identidade. E quem não as tem?
As lágrimas rolaram soltas em duas passagens – a do médico atencioso que veio em casa e fez o exame na filha Bruna, que tem autismo não verbal, “mais rápido que um mecânico de Formula I trocando pneu no cockpit”. Quem já enfrentou horas de espera em consultórios com um filha hiperativa vai entender a emoção…
A outra enxurrada veio quando vi que eu estava citada no capítulo sobre conscientização! Ana discute autismo em novelas e a polêmica de (ainda) serem escalados atores sem deficiência para representar personagens com deficiência.
Mas a discussão mais importante e ainda praticamente inédita no Brasil que o livro suscita é com relação aos cuidadores das pessoas com deficiência, que inveitavelmente são mulheres – mães, filhas, irmãs. Duas mensagens fundamentais – as cuidadoras também devem ser cuidadas. Muitas vezes o trabalho é estafante, sem folga nem prazo para acabar. Análogo à escravidão. Ana lembra que a responsabilidade por este dever não é da família, mas do Estado e da comunidade, conforme a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. No país ainda não existe nem plano de políticas públicas para a atribuição de assistente pessoal, algo que a maioria das pessoas com deficiência necessita – e nem todas tem família a quem recorrer. Inclusive esta é uma das recomendações feitas recentemente pelo Comitê da ONU dos Direitos das Pessoas com Deficiência ao Brasil na recente revisão sobre a implementação da Convenção no país.
Muitos pontos instigantes para um debate sério e atual sobre a vida de todos. Afinal, se não morrermos jovens, todos um dia seremos de alguma maneira dependentes de outros.
Leia o primeiro capítulo aqui: https://www.inclusivenews.com.br//arquivos/27896
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Patricia Almeida – Fundadora e coordenadora da Inclusive e mãe de uma menina com síndrome de Down.
Bem q poderia surgir o feminismo autista. Eu tenho asperger, uma leve síndrome do autismo. Eu sou aspie e feminista.
Ops… meu nome foi escrito errado. Não é “Cristian” é “Cristiane”. Rsrs