Por Priscila Cruz
do Movimento Todos Pela Educação
Uma das memórias mais marcantes da minha infância, tanto pelos detalhes claros ainda tão vividamente guardados quanto pelo significado que tantas vezes resgatei ao longo da vida, é a do dia do meu aniversário de 7 anos. Minha mãe e meu pai estavam sentados à mesa da cozinha montando a decoração do bolo e da festa, colando palitos de sorvete para fazer uma oca de índio, que era o tema da festinha. Eu estava ansiosa porque iria ganhar a minha primeira bicicleta (e também, poucas horas mais tarde, uma cicatriz na perna).
Lembro que nesse dia falei para meus pais que não precisava mais ir à escola porque já sabia tudo. Eu tinha mesmo uma enorme convicção que sabia absolutamente tudo e que ir à escola não era mais necessário. Mais recentemente, percebi que o que eu realmente queria dizer era que eu sentia uma enorme autonomia para aprender, que a mim, recém-alfabetizada, era possível ter acesso a todo o conhecimento do mundo. Ao estar plenamente alfabetizada, de fato eu tinha como aprender tudo o que eu quisesse. Meses antes do meu sétimo aniversário meus pais tinham comprado a Barsa, uma enciclopédia em muitos volumes, que tinha até páginas em papel transparente mostrando o corpo humano! Eu tinha a competência leitora e as condições para aprender. Lembro bem que o sentimento era de autonomia, que ia além daquele que as tias diziam “está ficando mocinha”. Eu podia aprender.
Anos mais tarde, aprendi que a alfabetização pela qual todos nós precisamos lutar para que seja universalizada no nosso país é justamente essa: ler pra aprender. Esse é o significado de estar plenamente alfabetizado.
A alfabetização demorou muito tempo para ter uma avaliação que aferisse a sua qualidade. Em 2011 e 2012, o Todos Pela Educação (TPE) realizou a Prova ABC com esse objetivo. Empreitada contou com a parceria da Fundação Cesgranrio, do Instituto Paulo Montenegro/Ibope e do próprio Instituto de Pesquisas Educacionais (Inep), ligado ao Ministério da Educação. Logo em seguida a Prova ABC, o MEC anunciou no mesmo ano a criação do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic), em busca da garantia da alfabetização plena das crianças, até no máximo 8 anos de idade. Para avaliar o resultado do pacto e aperfeiçoar o programa, foi instituída a Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA), cujos resultados foram divulgados pelo Inep na última semana.
Infelizmente os resultados são mais que preocupantes. Estamos longe de garantir às nossas crianças a plena alfabetização até o 3º ano do Ensino Fundamental, como determina o Plano Nacional de Educação. Em leitura, há quatro níveis de alfabetização descritos pelo Inep, os três últimos (2,3 e 4) são considerados adequados. No Brasil, 78% das crianças estão nesse nível.
Uma leitura mais atenta das descrições das escalas, no entanto, deixa muito claro que um aluno no nível 2 de leitura não está plenamente alfabetizado. Ele não tem as condições necessárias para aprender tudo aquilo que tem direito de aprender nos anos seguintes. Ou seja, não sabe ler o suficiente para aprender. Considerando as crianças que atingiram os níveis 3 e 4, o percentual de aprendizado adequado em leitura é de apenas 44% ao final do 3º ano do Ensino Fundamental, o chamado ciclo da alfabetização.
Os dados escancaram, mais uma vez, a enorme disparidade de desempenho entre regiões, estados e municípios no início da Educação Básica. Novamente, vemos na lanterna dos indicadores estados da região Norte e Nordeste, como Alagoas, Amapá e Maranhão. Não podemos mais aceitar o discurso de que os percentuais pífios são resultado da pobreza. A vulnerabilidade econômica e social desses lugares explica em boa medida os baixos resultados, mas não pode mais ser usada para justificá-los. A prova disso são o Ceará, no Nordeste, e o Acre, no Norte, que conseguiram se destacar em suas regiões e até mesmo em relação a estados do Sul e do Sudeste.
Se queremos ter um país mais justo e com oportunidades para todos, precisamos ter uma obsessão em garantir a alfabetização a cada uma das nossas crianças, dando atenção especial àquelas que continuam vivendo invisíveis a todos nós. Devemos formular políticas mais vigorosas e cobrar seus resultados. Há poucos dias, minha filha mais velha completou 7 anos. A Barsa foi substituída pelo Google. Nesse dia, deitada comigo na minha cama, ela pegou meu computador e digitou a pergunta: qual a aranha mais venenosa do mundo? E descobriu.
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*Priscila Cruz é fundadora e diretora executiva do movimento Todos Pela Educação e mestre em Administração Pública pela Harvard Kennedy School.