Por um mundo com mais Oes

 

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Por Ana Nunes

Devagarinho, alguns livros sobre autismo vêm sendo lançados no mercado editorial brasileiro. A Companhia das Letras lançou recentemente dois títulos: “O Filho Antirromântico”, de Priscilla Gilman, e “Gêmeos”, de Allen Shaw. Não li “O Filho Antirromântico”, que trata de uma criança com hiperlexia – um autista naquela ponta menos “diferente” do espectro, mais próxima das super-habilidades que do autismo mais corriqueiro. Comprei “Gêmeos”, de Allen Shawn, precisamente porque a irmã gêmea do autor está naquela ponta mais desafiante do autismo, que não rende inspiradoras narrativas de superação – e por isso raramente aparece na mídia.

“Gêmeos” é uma espécie de autobiografia familiar. O título em inglês é “Twin”, no singular – o que faz bastante sentido, como vocês perceberão ao longo desta resenha -, com o subtítulo “A Memoir”, uma memória. “Gêmeos” discorre sobre a vida da família Shawn e o impacto na vida do autor de ter uma irmã gêmea, diagnosticada como autista, e internada em uma instituição aos oito anos de idade.

Os Shawn não são uma família qualquer. Nem mesmo representam a família média – e isso é importante para entender “Gêmeos”. O pai, William Shawn, foi por muitas décadas editor da legendária revista “New Yorker”. Allen é músico, e seu irmão mais velho, Wallace, ator e dramaturgo. Trata-se de uma família intelectualizada, artística, e habituada a altos standards de realizações. Uma família que a mãe gostava de comparar aos Kennedy  (em uma ironia que Allen Shawn certamente não ignora, mas fez questão de não registrar em seu livro, os Kennedy também tinham uma filha com deficiência, Rosemary, que igualmente foi institucionalizada.)

“Gêmeos” é um bom livro, do ponto de vista estritamente literário. Bem escrito, com informações úteis, bem pesquisado. Mas é um livro que me incomodou, em minha posição de mãe de autista. A depender do quanto o olhar do leitor esteja (ou não) treinado para perceber e decodificar certas mensagens, “Gêmeos” pode ser um livro problemático – e tão mais problemático exatamente por ser um bom livro.

A história de Shawn certamente tem um espaço no panorama de narrativas sobre autismo. Mas, em um momento em que ainda poucas vozes estão disponíveis em português, e o debate sobre autismo no Brasil ainda engatinha, não posso negar meu incômodo ao pensar em “Gêmeos” sendo lido pelo grande público.

Um dos temas de “Gêmeos” é precisamente a gemelidade e suas implicações psicológicas, suas particularidades. Outro claro tema do livro é traçar uma biografia de seu autor: sua infância, sua carreira, sua descoberta e evolução musical, e suas muitas fobias, objeto de obra literária anterior.

Em “Gêmeos”, Shawn traça um panorama muito tocante da violência que experimentou ao ser separado da irmã, aos oito anos de idade. Com grande honestidade, o autor expõe o que acredita serem hoje ramificações da ausência de Mary em sua vida: “na esteira dessa mudança (do internamento de Mary), todas as dores inevitáveis por que passei naqueles anos de crescimento foram agravadas pelos anos dessa dor específica. Os temores e pesadelos que eu tinha nessa idade pareciam girar em torno de temas como perda, separação e viagem. (…) essas experiências marcaram o começo do que se transformou na minha luta eterna contra a agorafobia, mas naquela época eu não tinha uma palavra para ela.”

É uma análise que expõe também a vulnerabilidade da infância. O quanto as vidas das crianças são impactadas, às vezes definitivamente, por decisões tomadas pelos pais, sem que os menores tenham qualquer voz.  “Todas as infâncias são normais para uma criança”, constata Shawn. “Mary era simplesmente nossa irmã, seus ‘déficits’ eram inevitáveis, e suas oscilações de humor, apenas parte de uma vida cotidiana, sobre a qual se tinha tanto controle quanto sobre o tempo. (…) A partida de Mary de nossa vida diária foi como uma morte pela qual não se fez luto. (…) Embora ela estivesse bem viva, na família Mary se tornou um símbolo pungente da perda, e era mencionada, quando o era, de forma saudosa, nostálgica – não como uma irmã que estivesse viva.”

Mary foi internada em 1956, tempos da teoria da mãe-geladeira de Bruno Bettelheim –  autor , aliás, várias vezes publicado pela “New Yorker”, e que gozava da admiração do pai do autor. Eram tempos de entendimento do autismo como uma enfermidade psíquica/psicanalítica. Tempos de grande culpa dos pais, em que a ciência afirmava ser melhor que as crianças estivessem em mãos dos especialistas que dos pais.  Shawn comenta este contexto em grande detalhe, e admite que “a suspeita subjacente de que uma criança defeituosa fosse reflexo de pais defeituosos com certeza assustava meu pai e minha mãe, e pode até mesmo tê-los distanciado de Mary em termos psicológicos. (…) A partir do momento em que meus pais tiveram certeza de que havia algum problema com Mary, eles me puseram em outro quarto, (…) e passaram a me proteger dela. Tornou-se menos comum se referirem a nós dois como gêmeos.”

É evidente o esforço de Shawn para fazer o leitor, se não justificar, ao menos relativizar a decisão tomada pela família. Ao mostrar a complexidade da situação, contextualizar seu entorno histórico, descrever a situação peculiar do casamento de seus pais, Shawn tenta nos levar a compreender sua família. O autor nos convida a, se não concordar com o internamento de Mary, ao menos percebê-lo com complexidade, com nuances, sem julgamentos morais absolutos.

Eu sou mãe de autista. Teoricamente, teria tudo para me projetar nos pais de Allen Shawn. Minha filha tem oito anos, como Mary à época da internação. Sei bem das dificuldades desta estrada, e normalmente tenho por regra nunca, jamais, julgar as escolhas de outros pais. Mas não consigo ser convencida de que a única visita semestral dos Shawn a Mary, posteriormente substituída por um único almoço anual, era o melhor que eles podiam fazer. Minha empatia não vai para os pais ou para Allen, com quem o autor convida a identificar-se. Minha empatia vai toda para Mary.  “Gêmeos”, em grande medida, é um livro autoabsolutório e autocondescendente. Nisso terá sucesso junto ao leitor médio, cuja tendência certamente não será de se identificar com Mary, ou de ver em Mary a projeção de um de seus entes queridos. Já eu, fazendo minhas as palavras do grande cineasta Claude Lanzmann, diretor de “Shoah”, acho que frente a certos atos “há uma obscenidade absoluta no projeto de compreender. ”

Em geral, as descrições do autismo em “Gêmeos” são muito boas. Sublinhei muitas passagens e anotei ao lado o nome de minha filha: reconheci precisamente coisas que minha filha autista também faz. Há um potencial de transmissão de conhecimento sobre o autismo em “Gêmeos”. Shawn mostra que fez o dever de casa, que leu muito sobre o tema – de autores clássicos como o malfadado Bettlenheim, Kanner e Asperger, até autores mais modernos como Oliver Sacks, e mesmo autodefensores como Temple Grandin.

O capítulo oito, “Autismo”, traz muitas informações interessantes. Talvez, para um pai ou estudioso do autismo, “Gêmeos” valha a pena particularmente por este capítulo. É nele que aparece pela primeira vez no livro a expressão “neurotípico”, oriunda do jargão cunhado pelo movimento da neurodiversidade.  Não posso me furtar de comentar que, no texto de “Gêmeos”, é onipresente o uso do termo “retardado”. Não sei se é erro de tradução. A edição brasileira traduz ABA, Applied Behaviour Analysis, como ACA, Análise do Comportamento Aplicada; boa tradução, mas que ignora que no Brasil se usa a sigla em inglês, ABA. Há traduções infelizes, como “chuletas de ovelha” em vez de “costeletas de cordeiro” – um dos pratos preferidos do autor, e corretamente traduzido em outra passagem. Se o uso recorrente de “retardado”  é tradução literal do texto original, estamos diante não apenas de um caso de falta de sensibilidade da editora para substituir um termo ofensivo, mas de um indício significativo do tipo de olhar de Shawn: uma profusão de “retardado”, com apenas uma pincelada de “neurotípico”.

Shawn cita autobiografias de alguns autores autistas. Chamou minha atenção, particularmente, a referência que faz ao livro de Gurnilla Gerland, “A Real Person”. Ao ler o título, me animei: pensei que se tratava de livro em que a autora, autista, queria afirmar sua humanidade. Não. Shawn conta, sem problematizar esta afirmativa, que Gerland escreveu sobre “seu desejo na infância de poder experimentar o mundo da mesma forma que os outros, portanto de se comportar mais como eles, e por fim ser aceita e não mais rotineiramente maltratada.” Segundo Shawn, “ela desejava ser ‘uma pessoa real’” e, sendo “altamente verbal (…) foi a palavra escrita que a salvou”. Ainda segundo o autor, “com a nova compreensão, suas habilidades de comunicação se aprimoraram e ela começou a participar de fato do mundo humano, tornando-se por fim uma autora e palestrante sobre autismo.” Ou seja: a normalização é pré-requisito para o reconhecimento da humanidade de Gerland, para ser uma pessoa real, para participar de fato do mundo humano, para ter o direito de não ser rotineiramente maltratada. Se este não é um trecho profundamente capacitista, eu não sei mais o que é.

Shawn cita a família de Kenzaburo Oe, escritor japonês, Nobel de Literatura, também ele pai de uma criança autista. Os Oe são um contraponto aos Shawn: integraram seu filho deficiente à família, em um processo que, nas palavras do próprio Oe, implica em “aprender por meio de experiências concretas a responder perguntas como de que forma uma pessoa deficiente e sua família podem sobreviver às fases de choque, negação e confusão e aprender a viver com cada um desses tipos específicos de dor. Depois tive que descobrir como poderíamos superar isso em prol de uma adaptação mais positiva, antes de finalmente atingir nossa própria ‘fase de aceitação’ – de fato chegando a aceitar a nós mesmos como deficientes, como a família de uma pessoa deficiente.” (grifos meus).

Parece-me ser exatamente desta mudança de identidade que os Shawn se esquivaram. Os Shawn preferiam seguir se comparando aos Kennedy. É forte o estigma da deficiência intelectual, especialmente para uma família altamente intelectualizada. Para não se adaptarem, para não redefinirem a própria identidade de forma a tornar Mary parte dos Shawn, para não se tornarem a família de uma pessoa deficiente, os Shawn optaram por proceder à deserdação simbólica de Mary, a seu exílio, a seu apagamento.

Em uma comparação que talvez desse gosto ao Shawn pai, mas que faço em chave obviamente não lisonjeira, os Shawn seguiram os passos de Arthur Miller. O genial autor de “A Morte do Caixeiro Viajante” e “As Bruxas de Salem”, ex-marido de Marilyn Monroe, teve um filho com Síndrome de Down, Daniel Miller, de seu terceiro casamento. Daniel foi institucionalizado ainda criança. Miller não o visitava e não o mencionava. Daniel sequer consta de sua autobiografia, “Timebends”.[1] Mais um homem genial e bem sucedido, reverenciado, mas incapaz da humanidade de um Oe.

Voltando aos Shawn. Seguindo em suas memórias, Allen Shawn narra o declínio físico da mãe com o passar do tempo. E comenta: “ em certo momento, me dei conta de que Mary era então muito mais verbal e interativa do que nossa mãe. ” A despeito desta constatação, a mãe estava em casa, sendo cuidada pela família. Não foi alijada como Mary, mesmo tornando-se “menos verbal e interativa” que a filha. Uma das fontes de meu incômodo com “Gêmeos” é o silêncio do autor sobre por que não tomou qualquer iniciativa, já adulto, de resgatar a irmã. De buscar reinseri-la na família. Em nenhum momento do livro Shawn divide com o leitor essa pergunta – mas não posso crer que ele não tenha formulado esta indagação a si mesmo. É como se o intuito de Allen Shawn fosse ser permanentemente visto pelo leitor como aquela criança desempoderada, de quem a irmã gêmea foi arrancada por decisão dos pais.

“Gêmeos “ foi publicado em 2011, quando há muito tempo a visão do autismo, e os recursos disponíveis para as famílias, já eram outros. Shawn tinha então 61 anos. Músico e professor de sucesso. E Mary seguia, como seguiu, internada.

A parte do livro em que eu chorei foi quando o autor narra um dos almoços anuais de aniversário de Mary. Os pais, Mr. e Mrs. Shawn, NUNCA permitiram que Mary voltasse ao apartamento da família depois de sua internação, aos oito anos. Alegavam que Mary poderia “se perturbar demais”. Com o pai já falecido, e a saúde da mãe em franco declínio, os rapazes Shawn decidem fazer o almoço no apartamento de Manhattan, face à impossibilidade da mãe se deslocar até a instituição que Mary habitava, em Delaware. No dia do almoço, Mary chega em casa. Fica feliz. Reconhece tudo, vai ao banheiro sozinha – lembrava e reconhecia o apartamento, tantos anos depois. Mary não apenas come o menu que invariavelmente se servia nesses almoços, devido à tendência à repetição da aniversariante autista, como também mostra interesse em provar o que inadvertidamente havia sido preparado de fora do script pelos cuidadores da Sra. Shawn. Ao final do almoço, Mary declara: “a festa estava maravilhosa”. As lágrimas escorriam pelo meu rosto, ao vislumbrar a vida em família que Mary poderia ter tido e que lhe foi negada, pelo mero fato de ela ser quem era: uma menina autista.

A propósito: o livro de Kenzaburo Oe, “A Healing Family” (em tradução livre, uma família convalescente, ou uma família em processo de cura), não tem tradução brasileira.

 

(Ana Nunes é mãe de uma menina autista e autora de “Cartas de Beirute – Reflexões de uma Mãe e Feminista sobre Autismo, Identidade e os Desafios da Inclusão”)


[1] http://www.nytimes.com/2007/08/30/arts/30iht-miller.1.7317269.html

 

 

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