Não mexam com os mais pobres

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Desconstruindo os argumentos do governo para alterar o BPC das pessoas com deficiência e dos idosos no bojo da nebulosa Reforma da Previdência

 

Izabel Maior*

 

Não se aceitam os argumentos e as modificações no Benefício Assistencial de Prestação Continuada (BPC), conforme apresentados na chamada Reforma da Previdência (PEC 287/2016). A exposição de motivos da tecnocracia da Casa Civil e do Ministério da Fazenda utiliza premissas absolutamente tendenciosas para desvincular o valor desse benefício do salário mínimo e alterar os critérios da concessão, inclusive elevando a exigência da idade mínima para 70 anos. Tudo isso recairá sobre dois segmentos populacionais muito pobres, já que é preciso que cada membro da família da pessoa com deficiência ou do idoso disponha de menos de R$ 7,80 por dia para ser elegível ao BPC.

 

BPC não retira recursos dos trabalhadores

Deve-se logo esclarecer que a fonte de recursos do BPC não é a Previdência e sim o COFINS, uma das contribuições das empresas, e, portanto, não concorre com recursos para aposentadorias e pensões previdenciárias e, obviamente, nada é subtraído dos trabalhadores. Essa informação não é prestada pelo governo.

A primeira grande inverdade é dizer que os brasileiros deliberadamente deixam de realizar a contribuição previdenciária por contar como certo que receberão o BPC aos 65 anos, na regra atual, prejudicando o contribuinte. Sabe-se que não são as mesmas pessoas: há aqueles que, por diversas razões, não contribuíram e os muito pobres, que não conseguem contribuir em hipótese alguma. Essa separação é verificada pela aplicação dos critérios de renda e de condições de vida exigidas para participar da política de Assistência Social. Somente se torna elegível para o BPC quem estiver em condições de pobreza, junto com a família igualmente muito empobrecida.

 

Governo não seguiu a determinação do Supremo Tribunal

Outro argumento dos reformistas é o aumento dos benefícios após decisão do STF, que não aceita o limite de ¼ do salário mínimo como único parâmetro da renda e assim provocou a judicialização do BPC. É bom esclarecer que cabe ao governo regulamentar o conjunto de critérios para a aferição das condições de pobreza como determinou o Supremo Tribunal. Entretanto, isso não foi feito, deixando-se a decisão para os juízes, evento que agora é criticado e usado como motivo para deixar em aberto e sonegar os direitos constitucionais.

 

BPC é um acerto da Constituição de 1988

A proposta de alteração do art. 203 da Constituição utiliza-se novamente de mensagem que confunde a opinião da população e de muitos parlamentares, ao estabelecer comparações com a realidade dos países da OCDE (Organização de Cooperação e do Desenvolvimento Econômico). O Brasil não faz parte da OCDE, pois não tem o patamar elevado de IDH e PIB per capita de países desenvolvidos, como Finlândia, Noruega, Suécia, França, Alemanha e outros. Nesses países, não se encontram a imensa desigualdade social e a pobreza que ocasionam a necessidade do benefício assistencial daqui. Mesmo assim, sem existirem suecos pobres, o governo de lá repassa benefícios sociais para assegurar que nada faltará a seus cidadãos. Assim, não há que se comparar alhos com bugalhos e insistir em mais uma argumentação falaciosa da proposta.

 

BPC é assistencial, não é aposentadoria

É importante ter em mente que o BPC não é aposentadoria da Previdência, é passível de revisão e interrupção e não gera décimo-terceiro nem pensão. O BPC é um benefício assistencial para garantir a subsistência dos brasileiros muito pobres, quer sejam pessoas com deficiência que, dada a discriminação e falta de acessibilidade, não tiveram iguais oportunidades de ir à escola e de inserção no mercado de trabalho, quer sejam idosos acima de 65 anos que sobrevivem sem renda ou com renda ínfima. Esses segmentos não tiveram condições para ser contribuintes. Ainda como mecanismo de combate à distorção, o governo deveria realizar, e não está fazendo, as revisões das concessões do BPC, como determinado na lei, a cada dois anos, de forma sistemática e constante.

 

Mais pobres vivem menos

A PEC 287/2016 pretende corrigir possíveis problemas de financiamento da Previdência, alegando que o BPC é um escoadouro dos recursos e, por isso, deveria ser desvinculado do salário mínimo (a reforma não anuncia quanto seria o novo valor), bem como a idade mínima para concessão deveria passar para 70 anos (silenciando sobre o fato de que pessoas muito pobres vivem menos que a média nacional). Além disso, o governo menciona que em décadas anteriores, a idade era superior à atual. Não são iniciativas comparáveis, pois a antiga renda mensal vitalícia, após a Constituição de 1988, deixou de ser concedida dando lugar ao novo benefício assistencial, de caráter provisório e com critérios de idade, em conjunto com a situação de pobreza. Por tudo isso, deve ser mantida a idade limite de 65 anos.

 

BPC é conquista do movimento social

Para concluir, enfatiza-se que o BPC é uma conquista do movimento social, conseguida por emenda popular na Assembleia Nacional Constituinte, portanto um direito social constitucional imprescindível para evitar que pessoas com deficiência e idosos, em situação de dupla vulnerabilidade pessoal e social, vivam desprotegidas, sem as condições mínimas para manter alimentação, moradia, medicamentos, roupas e tudo mais que lhes confere dignidade inerente à pessoa humana.

Com as alterações pretendidas para o BPC, deliberadamente, o governo brasileiro estaria empurrando para a condição de extrema pobreza cerca de 4,4 milhões de pessoas (e suas famílias) atualmente assistidas.

Nossa posição é repudiar as mudanças e insistir na supressão do art. 203 dessa controversa reforma que utiliza números de forma desumanizada.

 

*Membro dos conselhos municipal e estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Rio de Janeiro, médica fisiatra, ex-secretária nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência/SDH

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