Revista de História da Biblioteca Nacional
01/02/2007
Como ensinar uma disciplina de conceitos abstratos e invisíveis às pessoas que têm na visão o principal sentido?
Danielle Sanches
Ensinar História não é tarefa amena. Um professor de escola regular já é dominado por uma dúvida crucial: que método adotar para a plena apresentação de um conteúdo tão distante da realidade atual? Com os avanços constantes da informática, os jovens de hoje estão inseridos em uma sociedade de velocidade acelerada, onde a máxima é tempo real. Imagine, então, se os alunos desse professor forem surdos.
Surdos são os indivíduos que têm perda total ou parcial na percepção do som. Mas a impossibilidade de ouvir e de pronunciar palavras sonoramente perfeitas não quer dizer que eles não falem de alguma forma. Existe uma língua, uma linguagem e uma cultura própria que os une – perspectiva que se afasta da expressão “deficiente auditivo”, usada principalmente de forma técnica na área da saúde e, algumas vezes, em textos jurídicos. Esta expressão não reflete as implicações socioculturais que surgem com a surdez.
Os surdos têm, portanto, dois idiomas: o de sinais e o português, considerado uma segunda língua. Assim, o ensino de qualquer disciplina para alunos surdos deve ser realizado por meio do bilingüismo. Ou seja, o professor deve utilizar a LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais) em sala de aula ou recorrer a um intérprete dessa linguagem para que sua matéria seja plenamente compreendida pelos alunos. A união do português falado com a LIBRAS tem duas vantagens: respeita a cultura e a identidade do aluno surdo ao mesmo tempo em que o insere no ambiente e na língua dos ouvintes. O uso desta linguagem recebe o respaldo da Lei 10.436, de 24/04/2002, que a reconhece como um sistema lingüístico de natureza visomotora, com estrutura gramatical própria, como meio legal de transmissão de idéias e fatos das comunidades de pessoas surdas no Brasil.
A LIBRAS incorporou alguns sinais da Língua Americana de Sinais (EUA) e da Língua Gestual Francesa. Sua gramática não tem preposição, artigo e conjugação verbal, o que exige que o professor tenha sensibilidade para o texto produzido por alunos surdos e conhecimento, mesmo que básico, da primeira língua deles.
Em relação ao ensino de História para alunos surdos, as mudanças ocorridas na educação fazem com que os professores se deparem com uma realidade calcada na interdisciplinaridade (isto é, a relação entre disciplinas) e na contextualização, ou seja, o professor deve sempre ligar um fato histórico a algum acontecimento presente, pois, para os surdos, o fato presente, real, associado à visão, é mais bem compreendido do que a conjuntura histórica isolada em seu tempo, que requer uma capacidade de abstração considerável. É essencial que haja um diálogo constante entre professor e aluno, para que o conhecimento seja construído de forma coletiva. Para o surdo, é muito difícil simplesmente assistir a uma aula de História e lembrar de fatos e datas importantes, como fazem alguns alunos ouvintes. É impossível gravar o que o professor diz. Então, como fazer este aluno compreender os fatos históricos?
Em primeiro lugar, é preciso levar em consideração que a visão é muito importante para os surdos. Ou seja, o professor de História deve procurar diversos recursos visuais para que o aluno compreenda o que está sendo ensinado. No caso de uma turma inclusiva (para surdos e ouvintes), isto facilitará também a compreensão dos alunos que podem escutar.
Neste sentido, utilizamos como principal ferramenta a interpretação da História pelos próprios alunos surdos, ou seja, por meio do teatro. Entre outros recursos utilizados, este é o que os alunos mais absorvem, uma vez que eles são autores e participantes do processo de aprendizagem. Por exemplo: em uma aula sobre a vinda da família real portuguesa para o Brasil (1807-1808), os alunos têm como tarefa encenar esse fato histórico. Como professora, faço o papel de diretora, filmando todo o processo. O trabalho se desenvolve da seguinte maneira: é dada uma aula tradicional, em que os alunos aprendem as causas e conseqüências de todo o processo histórico; depois, um aluno fica responsável pela organização da turma e a distribuição dos personagens. O “texto da peça” é livre – os alunos interpretam com frases e atitudes que eles acreditam que os personagens poderiam ter feito ou dito. Após a gravação, esse material é exibido para os alunos, que se observam interpretando a história em LIBRAS.
Outro recurso que pode ser explorado com sucesso é a utilização de uma linha do tempo, porque a forma de organização do aluno surdo é visual. Conceitos abstratos dificultam a aprendizagem. É preciso que haja uma ponte com o mundo real. Assim, usamos um quadro que contém as seguintes periodizações: Antiguidade, Idade Média, Idade Moderna e Contemporaneidade. Quando se fala em Idade Moderna, por exemplo, muitos alunos se perguntam quando e o que foi isso. Com o quadro, percebem que essa época da História começa no século XIV e termina no final do século XVIII. As demarcações temporais são imprescindíveis para a compreensão. Para os alunos surdos, a crise do feudalismo, por si só, não faz sentido – a não ser que a direcionemos para o quadro cronológico, explicando que ela ocorreu no século XIV, trazendo conseqüências que inaugurariam a chamada Idade Moderna.
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O professor deve ter em mente que as informações não são simples para os surdos – chegam a eles com muito mais barreiras e dificuldades do que para os ouvintes. Muitos alunos não conseguem acompanhar a velocidade das legendas nos telejornais, e por vezes não fazem uso da leitura de jornais impressos. Além disso, alguns alunos demoram a ingressar no ensino regular e outros estudam em escolas que fazem uso apenas do português falado, sem a utilização da LIBRAS. Às vezes o professor fala de costas para a turma, escrevendo no quadro. Para um surdo, é o fim de qualquer possibilidade de aprendizado. Pensar que certas questões são evidentes porque todos os jornais abordam ou porque as pessoas comentam nas ruas é um erro crucial quando se fala em ensino para surdos. Todas as questões são importantes e precisam ser explicadas com detalhes em sala de aula; a abordagem do “óbvio” é fundamental. A discussão de qualquer tema – colocado em comparação com a realidade da comunidade surda – é fundamental para a compreensão. O professor deve estar atento à inclusão desses alunos, buscando entender um pouco de certos códigos próprios da cultura surda para que sua prática de ensino seja enriquecida e verdadeiramente aproveitada pelos alunos.
Danielle Sanches é mestranda em História Social na USP e professora do INES (Instituto Nacional de Educação de Surdos).
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