A inconstitucionalidade do Decreto 9546/2018 e a urgente necessidade de sua revogação

Adriana Monteiro da Silva

 

 

“Todo mundo é um gênio. Mas, se você julgar um peixe por sua capacidade de subir em uma árvore, ele vai gastar toda a sua vida acreditando que é estúpido.”

A frase acima circula na Internet sendo erroneamente atribuída a Albert Einstein.  Essa sentença, de forma inesperada, ganhou sua tradução jurídica no Decreto nº 9.546, publicado em 31 de outubro de 2018.

O novo decreto exclui a previsão de adaptação das provas físicas para candidatos com deficiência e estabelece que os critérios de aprovação dessas provas poderão seguir os mesmos critérios aplicados aos demais candidatos. Resumindo: dá uma base jurídica para a exclusão dos candidatos com deficiência física de concursos públicos.

Evidentemente, o decreto foi publicado sem a escuta e participação dos prejudicados apesar de afetar diretamente a vida das pessoas com deficiência.

Lembre-se que a Lei 8.112 de 1990, já previa reserva de 20% das vagas oferecidas no concurso às pessoas com deficiência. Essa lei e outras normas têm sofrido regulamentações ao longo dos anos, sempre com o objetivo de trazer autonomia, protagonismo e cidadania às pessoas com deficiência.

Em 2007, o Brasil assinou, juntamente com 192 países, a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. Em 2009, foi publicado o Decreto 6949, que elevou a Convenção Internacional ao status de Emenda Constitucional por força da Emenda 45 – passando a Convenção a ser lida como se na Constituição estivesse.

A Convenção revolucionou toda perspectiva de inclusão dessa população, adotando o lema “Nada sobre nós sem nós”, onde as pessoas com deficiência exigiam que nada que lhes dissesse respeito fosse discutido sem sua participação ativa.

Nesse sentido, o artigo 27 da Convenção Internacional que trata do direito ao trabalho e emprego prevê que os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência ao trabalho, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas e que tal direito abrange o direito à oportunidade de se manter em ambiente de trabalho que seja aberto, inclusivo e acessível a pessoas com deficiência. Consequentemente, os Estados que a assinaram  se comprometem a proibir a discriminação baseada na deficiência com respeito a todas as questões relacionadas ao mundo do trabalho e se comprometem, também, a empregar pessoas com deficiência no setor público.

A Convenção é a base da Lei Brasileira de Inclusão de 2015 e tem como objetivo a remoção das barreiras que impeçam ou prejudiquem a participação social da pessoa com deficiência em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas.

O artigo da mesma lei ainda define que é vedada a restrição ao trabalho da pessoa com deficiência seja antes da relação de trabalho (nas etapas de recrutamento, seleção, contratação e admissão) assim como na permanência no emprego e ascensão profissional. A Lei proíbe também a exigência de aptidão plena.

Resgatado tal histórico de construção de direitos, salta aos olhos a inconstitucionalidade e ilegalidade do Decreto 9546/2018 que vão em sentido contrário ao dito acima.

O inciso IV do artigo 3º do Decreto citado estabelece:

 

(…) VI – a previsão da possibilidade de uso, nas provas físicas, de tecnologias assistivas que o candidato com deficiência já utilize, sem a necessidade de adaptações adicionais, inclusive durante o curso de formação, se houver, e no estágio probatório ou no período de experiência.”

A oração “que o candidato já utilize, sem necessidade de adaptações adicionais” compromete a inclusão de muitos e a igualdade de oportunidades, já que nem sempre as adaptações de vida cotidiana abrangem as adaptações necessárias no momento do certame. O inciso também isenta o Estado e as instituições organizadoras de sua obrigação de adaptar individualmente o concurso.

Assusta ainda mais o prescrito no parágrafo 4º do artigo 4º do Decreto em discussão:

 “Art. 4º (…)

 

 § 4º. Os critérios de aprovação nas provas físicas para os candidatos com deficiência, inclusive durante o curso de formação, se houver, e no estágio probatório ou no período de experiência, poderão ser os mesmos critérios aplicados aos demais candidatos, conforme previsto no edital.”

Ao ignorar a deficiência do candidato, o Decreto cria uma situação de concorrência desleal, adotando os mesmos critérios para pessoas com e sem deficiência. O decreto, assim, acaba com o direito de acesso.

É importante salientar que as vagas destinadas às pessoas com deficiência já pressupõe cargos compatíveis com a deficiência do pretendente. Não se pode confundir a prova em si com o exercício do cargo e a norma deixa claro que essa avaliação se dá durante o estágio probatório.

Os incisos acima citados ferem de morte o direito ao acesso e violam as normas da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, que possui status de norma constitucional e contrariam a Lei Brasileira de Inclusão.

Não temos o direito de retroceder em conquistas tão árduas. Cada passo para trás aumenta a exclusão, a marginalização e a invisibilidade das pessoas com deficiência. Cada retrocesso, não fere apenas as pessoas com deficiência, fere a cada um de nós enquanto humanidade.

 

 

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Adriana Monteiro da Silva é advogada e proprietária do escritório Adriana Monteiro Advocacia Jurídica, sediado em Brasília. É conselheira da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa com Autismo da OAB/DF.

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