Deficiência, Coronavírus e Políticas de Vida e Morte

logo anpocs.Boletim n. 35 | Cientistas sociais e o coronavírus

Diversidade de corpos, deficiências, políticas de vida ou morte, tecnologias e saberes são as ideias que permeiam as discussões colocadas no Boletim n.35. Enquanto Patrice Schuch e Mário Saretta (UFRGS) apontam para a realidade de vulnerabilidade e desigualdades experimentadas por pessoas com diferentes formas de deficiências, agora intensificadas no contexto da pandemia e do colapso dos sistemas de saúde, Carolina Ferreira (Unicamp) e Pedro Lopes (Escola da Cidade) falam sobre as experiências sociais que são as doenças, problematizando o capacitismo que permeia políticas públicas, tecnologias e saberes científicos, ressaltando a importante contribuição no enfrentamento à pandemia que pessoas deficientes podem nos trazer a partir de suas experiências.

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Deficiência, Coronavírus e Políticas de Vida e Morte

 

Por Patrice Schuch e Mário Saretta

 

Entre políticas explícitas e práticas ordinárias, a pandemia do coronavírus expõe de modo contundente decisões sobre vida e morte que implicam considerações sobre futuros possíveis. Os efeitos da pandemia não dizem respeito somente à relação entre um vírus e os corpos em sua generalidade, mas são coproduzidos politicamente, a partir das condições e estruturas desiguais das vidas e das práticas, programas e políticas para sua consideração.
No caso das pessoas com deficiência, a pandemia do coronavírus evidencia o quanto a deficiência é politicamente engendrada a partir da interseção de marcadores sociais da diferença, os quais colocam essas pessoas em vulnerabilidade em relação à pandemia. Os dados mais recentes no Brasil, referentes ao Censo do IBGE de 2010, revelam que a deficiência não apenas é relacional e política, mas profundamente interseccional, configurada pela sobreposição das dinâmicas desiguais de gênero, classe e raça/etnia. Como várias pesquisadoras e pesquisadores da área das ciências humanas vêm insistindo, diante da pandemia do coronavírus as desigualdades são acentuadas e as condições e estruturas de vida fazem diferença, inclusive nas possibilidades de seguir as orientações mais generalistas de isolamento social, o #fiqueemcasa.
Para pessoas com deficiência que necessitam de cuidadores, por exemplo, tais orientações revestem-se de complexidades e tornam necessário ampliar as estratégias de controle, adequadas às necessidades particulares das dinâmicas do cuidado. Aquelas que devem seguir protocolos médicos que exigem hospitalização e/ou a frequência ao hospital, mesmo em período de crise sanitária, também se encontram em situação de risco acentuado, a qual precisa ser considerada. Já no que se refere às pessoas com deficiência cognitiva, as condições de isolamento podem elevar o sofrimento mental a níveis extremos. Nesse caso, a produção de espaços terapêuticos deve se coadunar com as políticas de distanciamento social, de modo a produzir políticas que efetivamente protejam as pessoas com deficiência, de acordo com suas especificidades. Na cidade de Tarragona, por exemplo, foi permitido que crianças com espectro autista pudessem circular com seus cuidadores em caso de necessidade, desde que respeitassem medidas de distanciamento social.
Frente à pandemia do coronavírus, a ausência de práticas e programas que trabalhem a partir das dinâmicas associadas às vidas das pessoas com deficiência implica uma dramática exposição à morte, mesmo que de modo indireto. Tal política, promovida pela ênfase em políticas generalistas que supõem uma espécie de sujeito da razão universal, autônomo e autossuficiente capaz de se higienizar, se distanciar e se proteger frente ao vírus, está presente, entretanto, em outras dinâmicas acionadas no contexto da difusão da Covid-19. A pandemia torna explícito outro risco, a existência de práticas de priorização da vida de uns grupos frente a outros, aos quais se aceita ou se condena à morte por serem consideradas vidas descartáveis ou improdutivas. Este é um risco adicional ao vírus, acentuado em um contexto de escassez de recursos hospitalares. Sendo assim, torna-se necessário destacar que as decisões sobre o uso de respiradores refletem valores e contratos sociais que devem prezar pelo valor da vida em sua multiplicidade, reconhecendo a equidade prevista pelos direitos humanos para abolir políticas de discriminação. Pessoas com deficiência devem ter reconhecido esse direito, mesmo em condições de colapso dos sistemas hospitalares devido à pandemia, e não podem ser destituídas de aparelhos médicos de uso crônico dos quais dependem suas vidas em favor da pretensa otimização de recursos para pacientes com complicações provenientes da Covid-19.

“A injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todo lugar” Imagem do Documentário “Crip Camp:
revolução pela inclusão”. Copyright Netflix. / Direção: Nicole Newnham, e James Lebrecht. EUA, 2020, distribuição: Netflix

Por este motivo, a “Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down (FBASD)” escreveu, no início de abril, uma nota de preocupação em relação ao protocolo a ser eventualmente adotado pelas autoridades e médicos brasileiros relativamente às pessoas com síndrome de Down ou outra deficiência, em hipótese de necessidade de cuidados intensivos hospitalares decorrentes da infecção pelo coronavírus. Como diz o texto, intitulado “Nota em Defesa da Vida Durante a Pandemia do Covid-19 no Brasil”, a denúncia de uma prática de recusa de tratamento médico adequado para paciente com síndrome de Down no Reino Unido e do preterimento de pessoas com deficiência em relação aos não deficientes, aventado em planos e protocolos de saúde nos estados americanos do Alabama, Arizona e Washington, devem ser consideradas cruéis autorizações explícitas de eugenia das pessoas com deficiência1.
No mesmo sentido, a “Rede Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência – Rede-In”, entidade que atua nacionalmente e congrega 17 organizações da sociedade civil, escreveu nota pública intitulada “Todas as Pessoas Importam”, atentando para o risco de exclusão no atendimento a pessoas com deficiência na pandemia de Covid-192. Além disso, a Rede-In recomendou várias medidas para a atenção das pessoas com deficiência no contexto da pandemia, percorrendo as dimensões comunicacionais, as situações de trabalho, aquelas referentes ao cuidado e à infraestrutura cotidiana necessária para a manutenção da vida e a inclusão nos auxílios assistenciais e emergenciais no cenário da crise pandêmica. Tais orientações também balizaram a nota escrita pelo “Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência (CONADE)”, que defendeu ainda a prioridade constitucional de atendimento às pessoas com deficiência em termos de proteção e socorro em quaisquer circunstâncias3.
Essas questões apontam para a conclusão de que se a disseminação do coronavírus generaliza o medo, também particulariza as estratégias de seu combate e enfrentamento. É o valor dado ao sujeito normativo ideal que está no centro das sugestões de não oferecimento de tratamentos de saúde adequados para pessoas com deficiência, em tempos de pandemia, sejam aqueles implícitos que insistem unicamente em políticas globais generalistas, sejam aqueles explícitos na recusa ou preterimento das pessoas com deficiência no acesso aos respiradores artificiais. Para as pessoas com deficiência, o funcionamento dessa eugenia moderna ordinária em Unidades de Tratamento Intensivo ou a desconsideração invisível das práticas de cuidado necessárias para a sua vida cotidiana equivalem a uma política da morte. Essa política de morte interdita futuros, mas não apenas aqueles das pessoas com deficiência; confisca também os futuros que apostem na variedade e na diversidade humana. Mais do que nunca, a epidemia do coronavírus é uma oportunidade de reafirmar nossas escolhas; não aquelas que privilegiam a eficiência sobre a equidade, mas aquelas que privilegiam os futuros da equidade, da não discriminação e do valor de todas as pessoas.
Patrice Schuch é doutora em Antropologia, professora no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS e pesquisadora pelo Grupo de Estudos Antropologia e Deficiência (PPGAS-UFRGS).
Mário Eugênio Saretta é doutor em Antropologia pelo PPGAS/UFRGS, diretor do documentário “Epidemia de Cores” e pesquisador pelo Grupo de Estudos Antropologia e Deficiência (PPGAS-UFRGS).
Este texto foi escrito a partir das discussões e debates realizados junto ao Grupo de Estudos Antropologia e Deficiência (GEAD) do PPGAS/UFRGS: https://vivendocomdeficiencias.com/pt-br/gead/

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1 O texto em questão pode ser encontrado no site da FBASD: http://federacaodown.org.br/index.php/2020/04/03/nota-em-defesa-da-vida-durante-a-pandemia-de-covid-19-no-brasil/

A nota da Rede-In encontra-se no seguinte link: http://www.ampid.org.br/v1/manifestacoes/

3 A nota do CONADE pode ser acessada através do link: http://coexistir.com.br/conade-nota-publica-as-autoridades-para-atencao-as-pessoas-com-deficiencia/

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