Deficiências e adoecimento crônico: permanências e atualizações trazidas pelo coronavírus

Deficiências e adoecimento crônico: 
permanências e atualizações trazidas pelo coronavírus

Por Carolina Branco Ferreira e Pedro Lopes

Como as experiências de adoecimento e/ou de limitações e diferenças corporais modificam a subjetividade das pessoas, particularmente daquelas que as vivem? Como esse processo produz cidadãos e cidadãs? Na “guerra” contra o vírus, está-se mirando a doença ou quem está doente? Neste texto, articulamos dinâmicas relacionadas a epidemias no Brasil, tidas como “controladas” ou “erradicadas”, às que estamos vivendo com a COVID-19. Consideramos como a categoria analítica de deficiência, bem como as experiências de pessoas que se reconhecem em relação a ela, opera em práticas sociais utilizadas para lidar e conter a pandemia. Essas dimensões analíticas e fundamentalmente políticas têm sido negligenciadas no debate e nas formas de enfrentamento do coronavírus.

 

As epidemias de poliomielite e de aids também foram consideradas um problema de saúde global ao longo do século XX. Elas foram “combatidas”, a despeito de suas diferenças e particularidades, por meio do acúmulo e da inovação de conhecimentos científicos, articulados à mobilização, à pressão e ao impacto de práticas coletivas e de organizações da sociedade civil, engajadas em momentos históricos diferentes, no processo de democratização da saúde no Brasil. Além disso, é importante considerar as conexões que aproximaram o país de agendas globais de controle de ambas as epidemias, as quais permitiram suporte técnico, científico e financeiro, conferindo ao Brasil o status de modelo internacional de erradicação e controle delas.

 

Qual a relação entre poliomielite, aids e o coronavírus? Nosso primeiro ponto é notar que os efeitos de uma epidemia/pandemia continuam a operar socialmente mesmo quando elas são consideradas controladas e/ou erradicadas segundo os critérios das agências de saúde global. A poliomielite, o adoecimento por aids e os casos que já têm sido reportados de COVID-19 aproximam-se também no sentido de que produzem corpos socialmente significados como deficientes. Deficiência é uma categoria polissêmica e que navega por distintos registros sociais, mas é fato que pessoas adoecidas por aids, pessoas acometidas pela pólio e, crescentemente, pessoas que se recuperam de casos graves de COVID-19 experimentam transformações em seus corpos, tanto no que se refere à sua interpretação social via estigma, quanto no que concerne às formas e funções encarnadas que podem ou não desempenhar. A covid-19, como foi o caso da pólio, da aids e de outras doenças epidêmicas como o vírus Zika, produz corpos com deficiência, ao mesmo tempo em que produz experiências sociais que se enquadram pela categoria da deficiência – seja na arregimentação de coletivos, seja na reivindicação de direitos, ou na dimensão compartilhada do cuidado. Nestes casos, pensar sobre os modos de operação do capacitismo, a discriminação e violência contra corpos com deficiência, ajuda a enquadrar o debate. Tal noção tem sido empregada na reflexão sobre deficiência, e renovada por redes acadêmicas, ativistas e artísticas na atualidade. A categoria capacitismo oferece uma perspectiva crítica às estruturas sociais de desigualdade e exclusão, produtoras, de maneira sistemática e reiterada, do que se entende e supõe como a “normalidade” dos corpos, desconsiderando sua diversidade de formas e funcionalidades.
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Criança afetada por pólio respira por meio de máquina conhecida como “pulmão de aço”.

Descrição da imagem: Foto em preto e branco de uma criança branca de cabelos loiros, que lê uma revista em quadrinhos presa por fivelas a uma prancheta. A criança está deitada de barriga para cima e seu corpo, baixo do pescoço, está coberto por uma máquina cilíndrica, o “pulmão de ferro”, que mantém sua respiração. A prancheta está presa à máquina.

Fonte:https://www.washingtonpost.com/news/wonk/wp/2015/05/04/a-horrifying-reminder-of-what-life-without-vaccines-was-really-like/ (Hulton-Deutsch Collection/CORBIS).

 

 

Pensar o capacitismo ajuda a levantar perguntas acerca de quais vidas supostamente merecem tratamento de saúde e, eventualmente, merecerão luto. As situações de pessoas idosas, com doenças crônicas e deficiências aqui se aproximam: segundo imaginários sociais capacitistas, esses sujeitos teriam corpos improdutivos e vidas menos dignas de serem vividas ou salvas, como ficou evidente na fala recentemente divulgada do novo Ministro da Saúde. Muitas respostas à pandemia, em diferentes escalas e por diferentes agentes, têm ressemantizado esses imaginários capacitistas, compreendendo a experiência da deficiência pela chave da produtividade e não da falta. Muitas pessoas que nunca tiveram seus corpos marcados ou interpretados como deficientes passam a compartilhar com pessoas com deficiência de experiências sociais de capacitismo, ou seus efeitos. Além disso, novas práticas sociais, vinculadas ao combate à epidemia, trazem ainda renovadas formas de exclusão.

 

A quarentena tem produzido um deslocamento de sentidos nos ambientes em que ela tem sido vivida. Se, por um lado, ela evidencia desigualdades em termos de raça, classe, gênero, deficiência e geração, relacionadas aos mercados de trabalho (“públicos” e “domésticos”) e ao acesso a direitos em tempos de precarização trabalhista e intensificação de discursos de ódio, por outro, ela pode nos chamar a atenção aos saberes de pessoas com familiaridade com a experiência do isolamento físico e da restrição de locomoção. A história dos movimentos de pessoas com deficiência, em suas plurais lutas por inclusão, reconhecimento e acesso, produziu uma série de tecnologias de acessibilidade que ora são experimentadas por corpos não marcados por deficiência, idade avançada ou adoecimento. Agora, as tais “necessidades especiais” parecem se generalizar, não sem ambiguidades.

 

Um exemplo diz respeito a ferramentas que foram desenvolvidas visando a democratização do acesso, como formas de ensino à distância (é verdade que já há muito instrumentalizadas no sentido da precarização), que têm sido vividas como renovadas experiências de desigualdade. Não era raro que, em cursos de Ensino Superior presencial, recorrêssemos a metodologias de ensino à distância para contemplar casos de discentes sem acesso físico ao ambiente universitário, “casos especiais”. O giro que tem sido experimentado com a quarentena parece ser que os “casos especiais” são os que agora restam à margem dos procedimentos didáticos virtuais. O que eventualmente era experimentado como ferramenta de inclusão e democratização tem se tornado, conforme improvisamos sua generalização, como um obstáculo ao acesso.

 

O Ministério da Saúde lançou, em março, o aplicativo Coronavírus-SUS, visando difundir informações sobre a epidemia. Rapidamente, pessoas cegas e que utilizam ferramentas de leitura de tela no celular reportaram que o aplicativo era inacessível. Essa experiência, contudo, não está isolada, ou é “excepcional”. Se, por um lado, ferramentas digitais, prometem um futuro de plenos acessos, o presente é evidentemente clivado por desigualdades. Ao fazer um aplicativo cuja interface impede a interação por pessoas que usam o leitor de tela, o recado é nítido: não são suas vidas que se pretende preservar.

 

Recentemente, máscaras têm se popularizado como equipamentos de proteção individual. Até então, elas eram apenas usadas como tecnologias de segurança para equipes de saúde. O que acontece quando há esse deslizamento? Uma das questões que têm sido apontadas, e Anahi Guedes de Mello o fez desde muito cedo, é que o uso público de máscaras impede o procedimento de leitura labial, expediente comunicacional fundamental para muitas pessoas.

 

Os deslizamentos de sentido vindos com a quarentena também afetam percepções ampliadas sobre o direito à cidade. A experiência de restrição de locomoção é amplamente conhecida de muitas pessoas com deficiência, assim como foi pauta de importantes protestos nas cidades brasileiras. A quarentena coloca em evidência que as demandas por acessibilidade em espaços públicos dizem respeito não somente ao desenho técnico da malha urbana, mas à possibilidade bastante concreta de sair de casa ou nela ficar em confinamento.

 

Se eventos críticos parecem convidar uma excitação discursiva ao uso de metáforas capacitistas, “estamos às cegas”, “uma conversa entre surdos”, a impossibilidade de se “ver o futuro”, eles também sinalizam que deficiência e adoecimento crônico são temas que nos abrem reflexões não somente sobre nossos presentes, mas também sobre nossos futuros. Se o capacitismo tem sido experimentado em escala nacional, e por corpos não literalmente já marcados por deficiência, deixemos efetivamente de lado a “compaixão” cínica que tem historicamente marcado esse debate e a vida de muitas pessoas com deficiência. Neste momento, precisamos de políticas de justiça, e não de mais desigualdades. Faz sentido que as respostas ao coronavírus sejam também buscadas junto a sujeitos com ampla experiência nas dinâmicas que ele atualiza, que neste momento recaem sobre tantas outras pessoas – e as fazem notar que a condição de interdependência e, no limite, de vulnerabilidade, é de todos os corpos, de todos e todas nós, em nada um “caso especial”. Talvez, por aí, possamos compartilhar melhores caminhos.

 

Carolina Branco Ferreira é mestre e doutora em Ciências Sociais, Pós-Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS) – Unicamp/CAPES, professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Unicamp, membro do Comitê Deficiência e Acessibilidade da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu/Unicamp.

 

Pedro Lopes é mestre e doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, professor da Escola da Cidade – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, membro do Comitê Deficiência e Acessibilidade da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e do Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença (Numas/USP).


Agradecemos a Paulo Victor Leite Lopes pela leitura e interlocução.

 

Fonte: http://www.anpocs.com/index.php/ciencias-sociais/destaques/2349-boletim-n-35-cientistas-sociais-e-o-coronavirus

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