Educação inclusiva e a transição da escola especial

foto de estante de livros em formato de cabeça de perfil.

A convivência em classes comuns e o trabalho complementar em salas de apoio à inclusão favorecem o desenvolvimento dos alunos com Deficiência Intelectual

• Roseli Olher* e Laura M. F. F. Guilhoto**

*Serviço de Apoio à Inclusão Escolar da APAE DE SÃO PAULO, São Paulo, SP. **Instituto APAE DE SÃO PAULO, São Paulo, SP.

Escola especial e inclusão do aluno com Deficiência Intelectual são temas que, apesar de não serem tão novos, despertam controvérsias entre especialistas e a sociedade. Qual a melhor forma de propiciar crescimento individual, social e instrucional a estes alunos? A história destas conquistas tem um longo percurso dentro do movimento de inclusão social da pessoa com deficiência tanto em nosso país como no cenário mundial. Neste relato, expomos uma análise da transição a partir de 2007 da escola especial na APAE DE SÃO PAULO para a educação inclusiva, por meio da comparação do desempenho dos alunos que per- maneceram em outras instituições especializadas com aque- les que foram efetivamente inseridos em escolas regulares.

Educação e a Escola Especial

Até a década de 1990, a grande maioria das escolas que rece- biam as pessoas com Deficiência Intelectual era constituída por ambientes especializados para este atendimento em locais específicos e segregados. A Declaração Internacional de Salamanca, promovida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) em 1994, sustentou que a escola regular com orientação inclusiva era o meio mais eficaz de combater atitudes discrimina- tórias, de criar comunidades acolhedoras, edificar uma sociedade inclusiva e conseguir educação para todos.

O aspecto inovador da Declaração de Salamanca consistiu na retomada de discussões sobre o encaminhamento de diretrizes básicas para a formulação e reforma de políticas e sistemas educacionais e suas consequências, como a ampliação do conceito de necessidades educacionais especiais e a importância da inclusão da própria educação especial dentro da estrutura de “educação para todos”. O quadro 1 apresenta principais marcos legais da educação inclusiva no Brasil.

A educação inclusiva proposta pela UNESCO implica um processo contínuo de melhoria da escola, com o fim de utili- zar os recursos disponíveis, especialmente os humanos, para promover a participação e aprendizagem de todos os alunos, no ambiente de uma comunidade local.

A primeira década do século XXI é marcada por intenso debate sobre o papel social e educativo das escolas especiais, que surgiram e se estruturaram em um período histórico anterior, no qual não havia uma política pública de atendimento às pessoas com deficiência, e elas representavam a única forma de garantir o direito à escolaridade desta população.

APAE DE SÃO PAULO – O Caminho da Educação Especial ao Apoio à Inclusão

Desde sua fundação, em 1961, a APAE DE SÃO PAULO desenvolveu diversas ações no sentido de atender às demandas das pessoas com Deficiência Intelectual. Ao longo dos anos, alguns destes serviços foram desativados e/ou reestruturados para melhor atender às suas necessidades.

Em 1981, a escola especial da APAE DE SÃO PAULO foi regulamentada pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo para atender alunos com Deficiência Intelectual. Em 2000 foi criado o projeto-piloto “Uma proposta inclusiva”, que deu origem ao atual Serviço de Apoio à Inclusão Escolar (SAIE), criado oficialmente em 2004 com o objetivo de incluir alunos com Deficiência Intelectual na rede regular de ensino, oferecendo subsídios e apoio técnico às escolas envolvidas a fim de se tornarem referências, formando agentes multiplicadores de um processo de inclusão escolar.

Em 2004, o Instituto APAE DE SÃO PAULO realizou o Projeto Inclusão em Ação, em escolas da rede municipal de ensino que tinham Salas de Atendimento aos Portadores de Necessidades Especiais (SAPNE), serviço que antecedeu as Salas de Apoio e Acompanhamento à Inclusão (SAAI). Nesse projeto, foram realizadas atividades de diagnóstico das unidades de ensino, ações de mobilização e sensibilização social e formação de agen- tes de educação inclusiva. No ano seguinte, em 2005, a área de Educação desenvolveu o “Projeto Entorno”, com o objetivo de oferecer subsídios e apoio técnico às esco- las públicas (municipal e estadual), do entorno da região da Vila Clementino, para que se tornassem referência no processo de educação inclusiva.

Em 27 de novembro de 2007, o conselho administra- tivo da APAE DE SÃO PAULO, em respeito e apoio às novas diretrizes educacionais do Ministério da Educação, decidiu manter a escola especial apenas para os 109 alunos que frequentavam a instituição na ocasião, até que todos fossem inseridos na rede regular de ensino ou em espaços de educação não formal, em um período de tempo de dois anos. Assim, no fim de 2009, a escola especial encer- rou suas atividades. A organização realizou, desde então, o monitoramento de todos os ex-alunos por uma pedagoga (Roseli Olher), após a sua transferência para outros serviços de educação.

Quadro 1 . Marcos legais da educação inclusiva no Brasil.

Década de 1970: institucionalizada a educação especial no sistema educacional público brasileiro.

Constituição Federal de 1988: “O dever do Estado com a Educação será efetivado mediante a garantia de atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino”.

Parâmetros curriculares nacionais (1998): adoção de currículos nos quais as propostas sejam diversificadas e flexíveis para atender à demanda de alunos. Sendo assim, devem se adequar às necessidades, capacidades e diferenças individuais.

Decreto no 6.571/2008 e Art. 1o da Resolução CnE/CEB no 4
de 02 de outubro de 2009: “… os sistemas de ensino devem matricular os alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação nas classes comuns do ensino regular e no Atendimento Educacional Especializado (AEE), ofertado em salas de recursos multifuncionais ou em Centros de Atendimento Educacional Especializado da

rede pública ou de instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos”.

Decreto no 7.611, de 17 de novembro de 2011: dispõe sobre a educação especial, o atendimento educacional especializado e dá outras providências.

 

Frente aos novos paradigmas em 2009, a APAE DE SÃO PAULO suspendeu as atividades do Serviço Especializado de Educação (“Escola Especial”) e iniciou o SAIE, que oferta o Atendimento Educacional Especializado (AEE) de forma complementar ou suplementar à formação do aluno por meio da disponibilização de recursos de acessibilidade e estratégias que eliminam as barreiras para a sua plena participação na sociedade, além do desenvolvimento de sua aprendizagem.

A APAE DE SÃO PAULO, por ser referência para o município no atendimento à população com Deficiência Intelectual, propõe, em parceria com a equipe dos Serviços de Educação, um trabalho de sistematização de processos e avaliação dos resultados, visando ao aprimoramento constante das práticas no campo da educação inclusiva, no sentido de modificar o quadro atual.

Evolução dos Alunos após Encaminhamento a Escolas Regulares

Analisamos a evolução dos alunos com Deficiência Intelectual de grau leve a moderado que frequentavam a Escola Especial da APAE DE SÃO PAULO em 2007 encaminhados à escola regular. Foram também comparados os resultados obtidos pelos alunos matriculados em classes comuns da escola regular com aqueles que se mantiveram em outras instituições especializadas.

Após o encaminhamento dos alunos da Escola Especial da APAE DE SÃO PAULO às escolas regulares foram feitas duas visitas ao ano em cada unidade escolar por uma pedagoga (RO), que realizou registros escritos durante três anos. Foi realizada uma avaliação retrospectiva dos relatórios dos alunos matriculados na Escola Especial da APAE DE SÃO PAULO em 2007 com diagnóstico de Deficiência Intelectual, tentando-se agrupar e classificar as respostas à ferramenta utilizada — Instrumento de Sondagem, que tem como objetivo mensurar de forma qualitativa e quantitativa o desempenho dos alunos nas seguintes áreas: 1) Identidade e Autonomia; 2) Socialização; e 3) Comunicação e Expressão – Linguagem Receptiva e Linguagem Expressiva. A cada uma dessas áreas foi estabelecida uma nota graduada ou conceito conforme a pontuação obtida pela sua soma.

Dos 109 alunos, 62 tinham 2 relatórios de avalia- ções nas áreas de Identidade e Autonomia, Socialização e Comunicação e Expressão, com intervalo mínimo de 1 ano em cada área observada, sendo que 40 alunos, dos quais 23 tinham síndrome de Down (SD), frequentavam classes comuns da rede regular de ensino (grupo 1) e 22 (15 com SD) permaneceram em instituições especializadas ou classes especiais (grupo 2) por opção das famílias, como mostra a Figura 1.

Os alunos matriculados em escolas com educação inclu- siva (grupo 1) apresentaram maior variação na pontuação entre a primeira e a segunda avaliação em todas as áreas quando comparados àqueles que frequentaram Instituições Especializadas (grupo 2) como mostra a Figura 2. A variação individual foi maior no grupo 1 quando comparado ao grupo 2 em todas as áreas, especialmente na área de comunicação e expressão, ilustrado na Figura 3.

Quando analisamos os subgrupos de alunos com e sem SD, a variação foi maior no grupo de Educação Inclusiva, assim como analisado previamente no agrupamento geral (com e sem SD). O ganho neste grupo foi maior também na área de expressão e comunicação.

mapa mostrando números do texto.

 

Educação em Rede Regular e Apoio à Inclusão x Instituição Especializada
No nosso estudo foi observado que os alunos que passaram a frequentar as escolas comuns do ensino regular apresenta- ram aumento nas pontuações globais nas áreas analisadas da sondagem pedagógica (Identidade e Autonomia; Socialização; Comunicação e Expressão – Linguagem Receptiva e Linguagem Expressiva), observada em duas avaliações, com intervalo de um ano. Não temos conhecimento de registro semelhante em nosso meio.

Os alunos apresentavam Deficiência Intelectual de grau leve a moderado, o que facilitou o processo de inclusão, a qual pode ser de maior dificuldade de aplicação e exigir planejamento diferenciado em indivíduos com comprometimento mais grave ou com comorbidades, como as de natureza psiquiátrica ou motora. Deve-se lembrar que em todas as deficiências, quer de natureza bio- lógica, social ou devido à má interação entre essas duas esferas, há um espectro de gradações em relação à gravidade, mas que não invalida o propósito da inclusão, que requer ações específicas e planejamento a curto, médio e longo prazo.

A abordagem quantitativa utilizada neste estudo auxi- lia a verificar tendências de evolução que podem ainda não estar claras e sistematizadas ao observador. A partir das visitas às unidades escolares e às instituições especializadas com o objetivo de comparar o desenvolvimento destes alunos ao longo de três anos de acompanha- mento, também foram identificados os seguintes aspectos qualitativos:
• Trabalho complementar: observou-se durante o acompanhamento realizado nas escolas regulares que os alunos que frequentaram o AEE, de forma complementar à classe comum (tanto na APAE DE SÃO PAULO, como em salas multifuncionais dentro da própria unidade escolar), apresentaram avanços significativos em termos de autonomia, independência, relacionamento interpessoal, postura de estudante e comunicação receptiva e expressiva. Esses alunos demonstram e expressam seus desejos e interesse pelas atividades propostas, mostrando-se questionadores em alguns momentos das aulas. Em relação à independência, os mesmos já são capazes de se locomover pelas dependências das escolas, dirigindo-se ao banheiro, bebedouro, refeitório, servindo-se e alimentando-se adequadamente no horário de recreio. No que diz respeito à comunicação e expressão, a maioria consegue transmitir suas ideias e se fazer entender por meio de gestos ou imagens, quando ainda não se faz presente a comunicação oral.

números no texto.

Percebe-se, na maioria das escolas visitadas, uma mudança em curso em termos de conhecimento, atitudes e organização, em decorrência da presença desses alunos nas mesmas. Os profissionais (diretores, coordenadores e professores) têm buscado conhecimento, por meio de formações e grupos de estudos dentro das próprias escolas (Jornada Especial Integral de Formação), bem como por trocas de experiências entre os mesmos, para propor- cionar conteúdos flexibilizados que atendam às necessi- dades de todos os alunos, pois estes profissionais se sentem preocupados e incomodados por não saberem o que fazer e como lidar com a “diversidade” que tem crescido a cada dia dentro da realidade escolar.
• Desenvolvimento dos alunos: Em relação ao desenvolvimento dos alunos que permaneceram em escolas especiais, ou instituições especializadas, foram identificados poucos avanços quanto à autonomia, aprendizagem e comportamento social, comparando aos alunos que estão inseridos em uma proposta de educação inclusiva. Os alunos permaneceram com atitudes infantilizadas, comportamentos inadequados, dificuldades para enfrentar e resolver conflitos, vocabulário restrito e fora de contexto quando soli- citados para exporem suas ideias e se fazerem entender perante os colegas e adultos, demonstrando pouco interesse e iniciativa frente às propostas apresentadas. Em relação à independência e autonomia, ainda necessitam de um profissional que os acompanhem pelas dependências da instituição (banheiro, refeitório, salas ambientes, outros).

Do ponto de vista do aluno com Deficiência Intelectual, há evidências de que a convivência apenas em ambientes segregados não favorece e não estimula o desenvolvimento integral dos mesmos da mesma forma que os ambientes educacionais inclusivos. Portanto, tanto a vivência na classe comum quanto o trabalho complementar na rede regular de ensino potencializam o desen- volvimento desses alunos, conforme observado por meio do monitoramento e acompanhamento durante os três anos em visitas às unidades escolares. Além disso, sabe- mos que a aquisição e desenvolvimento da linguagem são resultados de um processo de interação entre o sujeito e o meio em que está inserido, o que torna a inclusão escolar algo fundamental e importante, uma vez que é nesse contexto que o aluno interage com os seus pares e com o professor.

A prática da educação inclusiva aponta para uma nova direção em termos de funcionamento, organização e vivência de valores.

O nosso levantamento mostrou evidências de melhoras quantitativas e qualitativas no desenvolvimento integral dos alunos com Deficiência Intelectual de grau leve a moderada que frequentavam a Escola Especial da APAE DE SÃO PAULO e passaram a frequentar a escola comum do ensino regular.

A inclusão, no entanto, ainda apresenta alguns obstá- culos em nosso meio. Apesar da aceitação por setores da sociedade, ainda existem barreiras e preconceitos nesta área. Professores por vezes mostram-se contrários à educação inclusiva e relatam a necessidade de mais investimentos na garantia de condições políticas, técnicas e materiais para a implementação de políticas nessa área.

Outro ponto crítico é a inclusão do aluno com deficiência no sistema educacional inadequado no setor público e privado, em que mundialmente há desafios materiais e ideológicos, mesmo para crianças típicas, especialmente nos países em desenvolvimento e com populações numerosas. Deve-se, no entanto, ser mencionado que a inclusão promove a convivência entre alunos típicos e com deficiência, e isso certamente promoverá nas próximas gerações maior entendimento desta situação e por sua vez discussão vivenciada do tema e com menor preconceito a partir de amplo material para discussão pública.

A proposta de educação inclusiva significa mudanças de mentalidade na sociedade como um todo, pois implica necessariamente a criação de um entorno de compreensão e valorização dos direitos humanos. Para o sucesso da inclusão, é necessário considerar alguns componentes essenciais, como treinamento e capacitação de recursos humanos, ambiente estruturado e adaptado às neces sidades de cada um, abordagem de ensino que facilite o seu aprendizado e flexibilização curricular, fatores que não devem ser utilizados unicamente para os alunos com deficiência, mas para todos que necessitem de um currículo adequado à sua individualidade.

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Fonte: https://www.ijc.org.br/pt-br/sobre-deficiencia-intelectual/publicacoes/PublishingImages/revista-di/artigos_pdf/DI%20-N4-5.pdf

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