Heloisa Fischer
O tema da palestra de abertura do Seminário Internacional de Acessibilidade Cultural colocou-se em forma de pergunta, “Comunicamos para quem?”, e isso não foi à toa. A fala da museóloga e gestora cultural portuguesa Maria Vlachou lançou muitos questionamentos. Dada a sintonia entre o ponto de vista da palestrante e a minha perspectiva sobre a escrita difícil de entender, inicio esta reflexão dialogando com alguns pontos que foram ali levantados.
Vlachou compartilhou a sua estranheza com o fato de muitas organizações artísticas usarem uma linguagem fria, institucional e sem expressão de sentimento ao se dirigirem ao público. “A falta de sensibilidade e a falta de vida neste tipo de linguagem chega quase a chocar”, resumiu. Sinto semelhante desconforto e concordo que escrever sobre cultura e arte é exprimir o que existe de mais íntimo em nós. Concebo a falta de vida em um texto como manifestação da falta de empatia com o leitor.
Mas ocorre que a escassez de empatia ultrapassa a escrita das instituições culturais: é um mal social sistêmico. Grande parte das informações que orientam consumidores e cidadãos parecem ter sido redigidas sem ter em mente os leitores a que se destinam. Quando a dimensão do outro é sufocada, um texto não consegue respirar. Falta-lhe vida. “A comunicação cultural deve se dirigir a quem não é especialista”, ressaltou Maria Vlachou, ressentindo-se da regra ser pouco seguida.
Compartilho de sua visão. Trago o exemplo da comunicação de música clássica, que costuma preferir um linguajar mais apropriado a conversas entre músicos profissionais do que a informes para públicos heterogêneos. Privilegiam-se termos técnicos, palavras em outros idiomas e expressões específicas do universo dos concertos. É comum esquecer que o público não é formado apenas por especialistas.
O mesmo ocorre em muitos outros setores, inclusive na administração pública. Profissionais altamente especializados que atuam em governos tendem a escrever orientações à população usando jargão, termos técnicos, siglas e outros elementos linguísticos próprios do gênero textual burocrático. Sabe-se que o estilo dicionarizado como “burocratês” (HOUAISS e VILAR, 2001, p. 532), uma subvariedade da linguagem jurídica, traz dificuldade de leitura mesmo para leitores altamente escolarizados (FISCHER ET AL, 2019).
É curioso observar como o burocratês se estabeleceu enquanto matriz textual de comunicações institucionais, instrutivas e mesmo informativas. Se o burocratês é um estilo onipresente na redação de variados setores, por que o setor cultural estaria a salvo da burocratização de sua escrita?
Mas a justificativa não reduz a inquietação com as consequências de tal expressão escrita. Vlachou lembrou que muitas pessoas têm dificuldade em compreender os textos em exposições de arte e pensam: “Se eu não estou entendendo, então a arte não é para mim.” A pesquisadora crê que tal pensamento prejudique a formação de novas plateias.
Estou de acordo com a perspectiva, porque, na maior parte das vezes, o problema está no texto e não da pessoa que lê. Seja por falta de empatia com leitores ou por excesso de elementos linguísticos que dificultam a leitura, os textos podem assumir um caráter segregador e provocar exclusão social pela linguagem.
Temos aí um problema a ser enfrentado com urgência, especialmente nas informações de interesse coletivo. Quantas pessoas deixam de entender uma informação escrita em linguajar desnecessariamente complexo e se afastam, creditando a si mesmas o problema que, na verdade, é do texto? Eis uma chaga social que precisa ser sanada.
A palestrante portuguesa também questionou a falta de reciprocidade na relação entre quem faz e quem consome cultura. Este desequilíbrio se manifestaria em uma postura excludente e arrogante, manifestada na forma de comunicar. O problema que Vlachou chama “arrogância” eu classifico como “desejo de diferenciação”. Creio ser a mesma característica, com nomes distintos.
Se eu falo ou escrevo de um jeito que você não entende, demonstro saber algo que você desconhece e isso me diferencia. O estilo textual torna-se, então, um instrumento de poder (PIEPER, 1992), capaz de impor barreiras no acesso ao conhecimento e, assim, alimentar a arrogância. Uma característica indesejável à relação de organizações culturais com o seu público.
As questões levantadas por Maria Vlachou me remeteram a um pioneiro estudo dos anos 1980 sobre textos do setor público brasileiro serem desnecessariamente complexos. A autora Neide Rodrigues de Sousa Mendonça construiu o seu estudo a partir de uma visão crítica sobre a linguagem com a qual governos comunicam-se com cidadãos: “Escrever mal é desumano e antidemocrático porque desrespeita um direito fundamental do leitor: compreender os textos que regulam a sua vida de cidadão” (MENDONÇA, 1987).
Se semelhante perspectiva pudesse ser aplicável ao setor cultural, então seriam considerados desrespeitosos os textos difíceis de entender que regulam as relações com espectadores, visitantes ou leitores. Importante destacar que minhas reflexões sobre simplificar a linguagem estão circunscritas à comunicação de informações, sem jamais questionar os estilos da expressão artística. A arte é o campo por excelência da liberdade. À criatividade não cabe qualquer intervenção restritiva. Jamais deve-se impor limites formais à expressão criativa.
No entanto, toda manifestação artística requer esforços de comunicação que alcancem públicos heterogêneos, de modo a sensibilizá-los a conhecer a obra em questão. É este texto informativo que ganha vida ao ser escrito em Linguagem Simples.
O que é Linguagem Simples
O termo Linguagem Simples vem do movimento internacional Plain Language. Consiste em uma causa social e uma técnica de comunicação. Em inglês, a palavra plain significa simples, direto, sem rodeios. No português do Brasil, a tradução de Plain Language vem se consolidando como Linguagem Simples. Em Portugal, usa-se a tradução Linguagem Clara. Outro termo também associado ao movimento Plain Language é Linguagem Cidadã. Como causa social, presente em alguns países desde os anos 1940, inicialmente nos Estados Unidos e no Reino Unido, vem mobilizando servidores públicos, cidadãos e consumidores em prol do direito de entender informações que orientam o cotidiano (FISCHER, 2018).
O movimento global ampliou-se a partir da década de 1970. No final dos anos 1990, o vicepresidente americano Al Gore afirmou: “Ser informado de forma clara por seu governo é um direito civil” (PLAINLANGUAGE.GOV, s/d). Nos anos 2000, a transformação digital e consolidação dos programas de transparência de informações impulsionou a causa da Linguagem Simples na comunicação pública.
A meu ver, uma informação só estará acessível se for fácil de entender. Informar de um jeito complicado praticamente equivale a não informar. Como técnica de comunicação, a Linguagem Simples tem o propósito de elaborar textos e documentos que sejam fáceis de ler. O objetivo é a pessoa localizar rápido a informação, entendê-la e usá-la a seu favor – quantas vezes nós já nos prejudicamos devido à má compreensão de informações?
A Associação Internacional de Linguagem Simples (Plain Language Association International – PLAIN) formula a seguinte definição, já traduzida para o português, usando a tradução do termo em Portugal: “Uma comunicação está em Linguagem Clara quando o texto, a estrutura e o design são tão claros que o público-alvo consegue encontrar facilmente o que procura, compreender o que encontrou e usar essa informação.” (PLAIN, s/d). Esta definição sinaliza que a técnica compreende mais do que a redação do texto, incluindo estrutura da informação, design e usabilidade.
A técnica sendo usada por organizações dos setores público, privado e terceiro setor em diversas nações. Segundo dados da associação internacional, o movimento está presente em 30 países e 15 idiomas (PLAIN, s/d). Quanto aos aspectos textuais, a Linguagem Simples busca minimizar a incidência de elementos linguísticos que dificultam a leitura, como períodos longos, orações em ordem indireta, orações intercaladas, nominalizações, voz passiva, termos pouco familiares ao leitor e palavras com mais de duas sílabas. Tais elementos exigem maior custo de processamento mental mesmo em pessoas altamente escolarizadas (FISCHER, MONT’ALVÃO e RODRIGUES, 2020).
Considere-se ainda a baixa escolaridade da nossa população – só 12% conseguem ler e compreender textos extensos e complexos (INAF BRASIL, 2018) – e o número significativo de pessoas com algum tipo de deficiência: de acordo com o Censo 2010, 23,9 % da população têm deficiências visual, auditiva, motora, mental ou intelectual (IBGE, 2012). O uso de Linguagem Simples tem o potencial de ampliar o acesso de dezenas de milhões de pessoas a informações que, de outra forma, estariam a elas interditadas, seja por baixo letramento ou por deficiência.
A técnica facilita a leitura de textos e agiliza todo o processo de comunicação das informações. Além de reduzir dúvidas, minimizar retrabalho e economizar tempo, tem o potencial de aumentar a participação cidadã e ampliar o controle social.
Imagine como seria o impacto de uma lei escrita em Linguagem Simples nas etapas relacionadas à sua implementação, divulgação e fiscalização? No Brasil, é um tema novo que desperta interesse crescente. O país já tem um município com Política de Linguagem Simples aprovada. É São Paulo, cidade que vem desempenhando um papel de protagonismo nesse campo. A Lei 17.316, de autoria do vereador Daniel Annenberg (PSDB), está em vigor desde 06/03/2020.
Na Câmara Federal, está em tramitação um projeto de lei semelhante ao do legislativo paulistano, propondo uma Política Nacional de Linguagem Simples em órgãos e entidades da administração pública. A autoria do projeto de lei nacional é dos deputados Erika Kokay (PT-DF) e Pedro Augusto Bezerra (PTB-CE).
No âmbito estadual, o governo do Ceará tem se mobilizado para instituir uma política de Linguagem Simples na comunicação com os cidadãos. O projeto cearense está a cargo do Íris – Laboratório de Inovação e Dados, ligado à Casa Civil.
UM EXEMPLO DE APLICAÇÃO DA TÉCNICA DA LINGUAGEM SIMPLES
O folheto informativo sobre prevenção a infecção hospitalar exemplifica uma reescrita de texto em Linguagem Simples. Foi produzido para o Hospital Federal da Lagoa, no Rio de Janeiro. (Figura 1).
Figura 1: Exemplo de documento antes (esq.) e depois reescrito em Linguagem Simples. Fonte: Comunica Simples – comunicasimples.com.br.
Descrição da imagem: À esquerda, um documento só com blocos de texto, sem título nem imagens. À direita, o mesmo documento após intervenção de Linguagem Simples.
O texto foi reescrito e diagramado, recebendo imagens de apoio. A versão original do folheto era distribuída pelo hospital público carioca em 2016, ano em que lá fui voluntária. O texto tinha as características do burocratês – tanto o linguajar como o visual remetiam a ofícios administrativos. Usava muitos termos técnicos e médicos.
O folheto não dialogava com quem mais precisava ler e entender as informações: amigos e familiares que visitavam os doentes internados. Grande parte dos pacientes atendidos pelo hospital tem baixa escolaridade. A informação sobre como prevenir infecção hospitalar estava disponível, mas será que o público-alvo entendia?
Propus a reescrita do texto e sugeri mudanças visuais àqueles blocos de texto justificado, pouco convidativos à leitura. O folheto ganhou título (“Xô, infecção hospitalar!”) e subtítulo (“Dicas para ajudar o paciente e proteger você”). As informações foram divididas em blocos curtos, com palavras de uso corrente. Foram inseridas algumas imagens coloridas. Após diversas etapas de validação técnica, o folheto reescrito passou a ser distribuído no hospital.
DIRETRIZES DA TÉCNICA DE REDAÇÃO LINGUAGEM SIMPLES
Como técnica de redação, a Linguagem Simples vem sendo construída por diversas partes interessadas, em diversos países, desde os anos 1940. É mais informada pela prática do que por evidências científicas. Profissionais que atuam no setor costumam constituir os próprios conjuntos de regra que utilizam – vale destacar o minucioso trabalho de sistematização de diretrizes feito pelo britânico Martin Cutts (2013).
No caso da comunicação pública, cada governo costuma estabelecer o seu próprio escopo de orientações. A investigação dos impactos da técnica na compreensibilidade de textos é ainda incipiente. São raros os autores de referência – vale destacar a pesquisadora americana Karen Schriver (2017). A escassez de estudos científicos gera críticas dentro da própria comunidade internacional de praticantes, que vem recomendando a realização de trabalhos investigativos (SCHRIVER E GORDON, 2010).
A pesquisa que desenvolvo no mestrado em Design da PUC-Rio pretende contribuir com este corpo de conhecimento. O estudo articula conceitos do Design da Informação, da Ergonomia Informacional e da Psicolinguística para investigar a compreensibilidade textual de serviços públicos digitais. Sou orientada pela professora Claudia Mont’Alvão (Departamento de Artes e Design) e coorientada pela professora Erica dos Santos Rodrigues (Departamento de Letras).
A Associação Internacional PLAIN indica algumas diretrizes de redação em Linguagem Simples. Quanto ao tom do texto, recomenda-se que seja dialógico, com uso de pronome pessoal (nós, você). Isso não significa escrever na forma de diálogo ou usar gírias, mas assumir que, do outro lado da página ou da tela, existe uma pessoa com quem o texto conversa cordialmente.
Quanto à escolha de palavras, a PLAIN orienta os praticantes preferirem a palavra mais simples. Por exemplo, entre os verbos comprar e adquirir, é melhor usar comprar, pois termos corriqueiros são compreendidos mais rápido. A Associação também orienta evitar o uso de jargão e minimizar o uso de termos técnicos. Caso seja necessário usar palavras técnicas, é preciso explicá-las.
Com relação ao tamanho de frase, nos vários idiomas onde a Linguagem Simples está presente, parece haver consenso com a extensão média entre 15 e 20 palavras. Recomenda-se não exceder 30 a 35 palavras. A PLAIN também alerta que frases na voz ativa tendem a facilitar a leitura de textos.
Venho desenvolvendo um método de escrita em Linguagem Simples fundamentado em estudos dos últimos quatro anos. A metodologia considera as boas práticas do movimento internacional Plain Language e a realidade social brasileira. O Método de Escrita Comunica Simples propõe vinte diretrizes.
As diretrizes são compostas por valores éticos, atributos de Design da Informação (abreviado como InfoDesin) e condutas para auxiliar na avaliação de materiais. Os atributos de InfoDesign compreendem diretrizes de Organização (estrutura, hierarquia e visual) e diretrizes de Texto (palavras, frases e parágrafos). O método tem uma representação gráfica, em constante aprimoramento. (Figura 2).
Figura 2: Representação gráfica do Método de Escrita Comunica Simples em Junho 2020. Fonte: Comunica Simples – comunicasimples.com.br.
Descrição da imagem: Figura geométrica composta por três cores. Na área vermelha, está escrita a palavra “Ética”. Na área azul, está escrita a palavra “InfoDesign”, que uma sigla para Design da Informação. Dentro da área azul, há dois círculos com as palavras “Organização” e “Texto”. No círculo “Organização”, constam três formas achatadas, cada uma com as palavras “Estrutura”, “Hierarquia” e “Visual”. No círculo “Texto”, há outras três formas achatadas, cada uma com as palavras “Tom”, “Palavra” e “Frase”. Na área preta, está escrita a palavra “Avaliação”.
Se a técnica da Linguagem Simples facilita a compreensão de quem lê e agiliza os processos de comunicação decorrentes do conteúdo original, ela demanda mais tempo para redigir. Estimo que um texto escrito em Linguagem Simples, sintético, sem elementos linguísticos que compliquem a leitura e com todas as informações necessárias à comunicação, pode levar o triplo de tempo escrever.
É válido ponderar que o tempo investido na elaboração tende a ser compensado no ganho de agilidade das ações posteriores. Ou seja, um material produzido em Linguagem Simples tem o que chamo de “efeito dominó de acessibilidade”: agiliza trabalhos como tradução e interpretação em Libras, legendagem para surdos e ensurdecidos, audiodescrição e o Leitura Fácil (Easy Read ou Easy-to-read).
LINGUAGEM SIMPLES E EASY READ: ALGUMAS DIFERENÇAS
Gostaria de pontuar que Linguagem Simples e Leitura Fácil são recursos distintos. A Leitura Fácil surgiu para atender, prioritariamente, as necessidades de pessoas com deficiência (IFLA, 2010). Este perfil demográfico não é priorizado pela Linguagem Simples, que tem a missão de aumentar a compreensibilidade de textos para leitores com distintos níveis de alfabetismo. Apesar de haver afinidade de propósito e diretrizes entre os dois recursos, há características significativas que os diferem. É o caso do uso de imagens para facilitar a compreensão das informações.
A comunidade internacional de Linguagem Simples recomenda os elementos visuais, mas não os classifica como suporte essencial para garantir a compreensibilidade de uma mensagem, como aconselham as recomendações de Easy Read. O folheto para o Hospital Federal da Lagoa exemplifica a diferença: algumas informações receberam o apoio de imagens, enquanto outras ficaram sem suporte visual.
Outra diretriz não compartilhada diz respeito à escrita em letras maiúsculas (caixa-alta). Há conteúdos em Easy Read com textos totalmente redigidos em caixa-alta e validados pelos usuários a que se destinam. Essa é uma prática contraindicada nas orientações de Linguagem Simples.
Matausch e Nietzio (2013) fizeram uma boa investigação sobre semelhanças e diferenças de ambos recursos. No que diz respeito à estrutura de frases, as diretrizes de Easy Read determinam uma ideia por sentença, mas esta recomendação costuma ser secundária nas boas práticas de Linguagem Simples. E se no Easy Read a etapa de validação do conteúdo com usuários é essencial, na Linguagem Simples tal prática costuma ser flexibilizada.
APLICANDO A LINGUAGEM SIMPLES NO COTIDIANO: UMA ATITUDE E TRÊS DIRETRIZES
Aprender a escrever em Linguagem Simples assemelha-se ao aprendizado de idiomas estrangeiros: exige tempo, muitos exercícios para fixar o conteúdo e a orientação de alguém experiente. Etapas iniciais desenvolvem a habilidade de traduzir o pensamento. Em estágio adiantado, espera-se que as ideias já nasçam formuladas na nova linguagem. Ou seja, dominar a escrita em Linguagem Simples requer dedicação e continuidade.
Mas se tal nível de proficiência cabe apenas a uma minoria que busca a especialização, como disseminar a Linguagem Simples? Mais do que uma causa e uma técnica, considero a Linguagem Simples uma maneira de agir e pensar que pode ser praticada em vários níveis, do mais básico ao mais proficiente.
Entre os caminhos rápidos para a inserir a Linguagem Simples no cotidiano, recomendo uma mudança de atitude e três diretrizes de escrita. Quanto à atitude, sugiro que você passe a receber os textos áridos e desnecessariamente complicados que informam o seu dia a dia com acolhimento e crítica fraterna.
Sugiro acolhimento por reconhecer que o burocratês é o que o sociólogo Emile Durkheim chama de “fato social”. Em estudo anterior, defendi a linguagem burocrática como fato social já que “exerce coerção por constituir uma realidade exterior aos indivíduos, que não conseguem impedi-la de existir e com ela se conformam” (FISCHER, 2018, p. 10).
Há muitos séculos, em muitos países e em muitos idiomas, esta forma de comunicação é socialmente aceita. Precisamos aceitar essa condição, antes de criticá-la. Sugiro exercer a crítica fraterna no sentido que o filósofo e teólogo Zeca de Mello utiliza o adjetivo quando fala em “provocações fraternas”.
Em suas aulas, o professor carioca destaca a importância de questionamentos afetivos e cuidadosos na construção dos laços de confiança. A partir de agora, quando você ler um texto difícil de entender, não acate a situação passivamente, mas procure analisar e questionar o que pode ser melhorado, sempre de forma cuidadosa.
Quanto às três diretrizes de escrita, proponho que você preste atenção ao tom do texto, à familiaridade das palavras e ao tamanho das frases. Observe se o tom do texto é humano e amigável. Por exemplo, em vez de redigir uma placa de sinalização com o texto “O Museu agradece a presença dos visitantes”, considere dirigir-se a quem vai ler: “Agradecemos a sua visita!”.
Observe se as palavras escolhidas são familiares do público-alvo. Será que os termos são corriqueiros? Ou exigem um vocabulário mais amplo? Questione-se sempre. Por fim, monitore o tamanho de suas frases. Se tiverem mais de 20 palavras, elimine termos desnecessários, divida em frases menores ou reformule.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Textos informativos difíceis de ler e entender são um problema multifacetado e antigo, que traz consequências negativas. Um dos desdobramentos indesejáveis é o agravamento da exclusão social. Grande parte da ação cultural é intermediada por meio de informações e instruções escritas, daí a importância de usar um linguajar que públicos heterogêneos compreendam. O texto só será acessível se todos, incluindo as pessoas com menos escolaridade e com deficiência, conseguirem entender.
Como causa social e técnica de comunicação, a Linguagem Simples acumula mais de 80 anos de história, em diversos países. Colabora para aumentar a compreensibilidade textual em diversos setores e mitigar a exclusão social pela linguagem. É uma grande aliada dos recursos de acessibilidade.
No Brasil, o tema vem conquistando espaço na agenda pública, com grande potencial de mobilização e aplicação. A escrita deve ser uma ferramenta a serviço da compreensão de processos sociais e culturais complexos. Se o estilo de redação complicar o entendimento de realidades já previamente complexas, prejudicando a participação e o engajamento, deve-se reconhecer o problema, acolhê-lo e buscar caminhos de mudança. O instrumental da Linguagem Simples tem muito a colaborar.
REFERÊNCIAS
CUTTS, Martin. Oxford Guide to Plain English. Oxford: Oxford University Press, 2013.
DURKHEIM, Emile. As regras do método sociológico. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2002.
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Fonte: Acessibilidade cultural : atravessando fronteiras – http://guaiaca.ufpel.edu.br:8080/handle/prefix/6550