Mecanismo Independente Já: Lições do CONADE frente ao Decreto 10.502/2020

grupo de pessoas com e sem deficiencia com camiseta preta escrito acessibilidade.

Votação da Convenção no Congresso

Izabel de Loureiro Maior

Professora da Faculdade de Medicina da UFRJ aposentada, ex-secretária nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência e ativista do movimento de luta desde 1977

 

A reunião plenária virtual do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência – CONADE, realizada em 6 de outubro, despertou reações apaixonadas, de rejeição e de apoio à votação do Decreto 10.502, de 30 de setembro de 2020. Nada de muito novo ou diferente acontece nesse país todas as vezes que se pretende debater a educação das pessoas com deficiência, pois são as exceções que vem à tona, os exemplos positivos sendo combatidos com os negativos, tudo personalizado e transformado em algaravia.

Em minha visão de jurássica de mais de quarenta anos de luta no movimento e como médica fisiatra, o passado assombra alguns e se perpetua trazendo a visão capacitista como máxima e preconiza a “definição de critérios de identificação, acolhimento e acompanhamento dos educandos que não se beneficiam das escolas regulares inclusivas, de modo a proporcionar o atendimento educacional mais adequado, em ambiente o menos restritivo possível” (inciso III, art. 9º do recente decreto). A escolha da família não se sustenta.

O que aconteceu no CONADE, que não foi convidado para a festa dos aplausos silenciosos e, como nós, não tinha conhecimento do texto da Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida – PNEE 2020, nada mais foi do que a reprise das falas carcomidas que ocorreram em 2005, com a edição da cartilha intitulada “O acesso de alunos com deficiência às escolas e classes comuns da rede regular”, patrocinada pela Escola Superior do Ministério Público da União e Fundação Procurador Pedro Jorge de Melo e Silva e outros parceiros. Alguns conselheiros do CONADE ainda são os mesmos e devem recordar os fatos aos quais me refiro.

Entre a cartilha de 2005 do Ministério Público Federal e o Decreto 10.502/2020, o Brasil ratificou em 2008, com equivalência constitucional, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – CDPD, da ONU, promulgada para efeitos internos mediante o Decreto 6.949/2009.

A CDPD será aqui nossa base para invocar o preâmbulo, que contextualiza a realidade: i) Reconhecendo ainda a diversidade das pessoas com deficiência, e j) Reconhecendo a necessidade de promover e proteger os direitos humanos de todas as pessoas com deficiência, inclusive daquelas que requerem maior apoio”.

Da mesma maneira cabe relembrar o art. 24 da CDPD, da Educação, o qual determina que “os Estados Partes assegurarão sistema educacional inclusivo em todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida” e no mesmo artigo estabelece que “as pessoas com deficiência não sejam excluídas do sistema educacional geral sob alegação de deficiência”.

Em 2008, o Ministério da Educação editou a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, a qual explica na apresentação: “Ao reconhecer que as dificuldades enfrentadas nos sistemas de ensino evidenciam a necessidade de confrontar as práticas discriminatórias e criar alternativas para superá-las, a educação inclusiva assume espaço central no debate acerca da sociedade contemporânea e do papel da escola na superação da lógica da exclusão. A partir dos referenciais para a construção de sistemas educacionais inclusivos, a organização de escolas e classes especiais passa a ser repensada, implicando uma mudança estrutural e cultural da escola para que todos os alunos tenham suas especificidades atendidas.”

O tempo de mudanças tão arraigadas como as mencionadas é demorado, requer investimentos em capacitação de recursos humanos e dotações orçamentárias contínuas e incrementais, sem os quais não se alcançam os resultados pretendidos. A educação inclusiva não se confunde com fórmula única, antes se trata de um grande leque de oportunidades para acolher a diversidade dos educandos com singularidades. A escola do sistema educacional inclusivo não pode ser uniformizadora, sob pena de voltarmos ao modelo biomédico da deficiência. Quaisquer semelhanças entre o texto do decreto atual e a integração são reais e perturbadoras, no meu entender.

O processo da retirada das barreiras ainda não foi concluído, a escola inclusiva está em franca construção e demonstra resultados surpreendentes quando vemos o aumento das matrículas, a conclusão do ensino médio, a entrada no ensino superior de alunos com deficiência e a formação completa de número crescente de profissionais com deficiência na pós-graduação. Os jovens que estão no Instagram e no Youtube, com milhões de seguidores, são influenciadores digitais que falam de suas conquistas e tratam as diferenças de seus corpos com a naturalidade que as gerações passadas não conseguem. É com elas e eles que vemos o bom resultado da educação inclusiva e encontramos a certeza de a CDPD apontar o caminho certo e exigente na educação e no mundo do trabalho.

Na outra face da moeda, existem abandono, descontentamento e resistência tanto de profissionais, como de famílias e de representantes de segmentos ainda não incluídos com a qualidade que a educação deve oferecer a todos os alunos. A solução não pode ser negar o progresso da inclusão e retornar à separação discriminatória. A verdadeira proposta está nos art. 27 e 28 da Lei 13.146/2015, Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência – LBI. Destacamos, o inciso IV do art. 28, “oferta de educação bilíngue, em Libras como primeira língua e na modalidade escrita da língua portuguesa como segunda língua, em escolas e classes bilíngues e em escolas inclusivas”, demonstrando que respeitamos e apoiamos as necessidades dos educandos usuários da Libras, ou seja, seu direito está na CDPD e na LBI, muito mais assegurado do que em um decreto sem amparo constitucional. O Decreto 10.502/2020 não regulamenta a LBI, omite a sua existência e retrocede ao texto da Lei 9.394/1996 como se não estivéssemos em evolução segundo a primazia da LBI, com a educação inclusiva ser aprimorada e garantida aos educandos que necessitam de apoios em maior quantidade e qualidade. Não podemos aceitar que o desconhecimento se deu ao acaso, seria amnésia coletiva no MEC e na Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência – SNDPD. O lançamento do Decreto 10.502/2020 desconsiderou o CONADE e entidades representativas das pessoas com deficiência, salvo as lideranças da comunidade surda usuária da Libras.

Não preciso esclarecer que esse decreto é inconstitucional e deve ser revogado, pois para isso existem inúmeros pareceres jurídicos e Projetos de Decreto Legislativos – PDL em tramitação no Congresso Nacional, assim como o partido REDE apresentou Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF ao Supremo Tribunal Federal. O PDL 344, apresentado pelo deputado federal Felipe Rigoni, obteve mais de 257 assinaturas e o Requerimento 2549/2020, com o pedido de apreciação do PDL 344 em regime de urgência conta com 294 em 11/10 (mínimo de 257 assinaturas já superado).

Para a reunião do CONADE de 6 de outubro, constava na pauta a apresentação da proposta da nova PNEE, mas a surpresa aconteceu em 30 de setembro, com a festividade de assinatura do decreto, embora o texto somente tenha sido conhecido na edição do Diário Oficial do dia seguinte. Avisada por um grande amigo, assisti o evento da primeira dama e demais, sentindo-me penetra aturdida e desconfortável. Entretanto, percebi minha preocupação crescendo com a reunião do CONADE, quando os inúmeros alertas de diversos conselheiros que perguntavam sobre o lema “Nada sobre nós, sem nós”, desconsiderado pelo MEC e pela SNDPD.

Convém destacar que no art. 4 da CDPD, Obrigações Gerais, consta: “Na elaboração e implementação de legislação e políticas para aplicar a presente Convenção e em outros processos de tomada de decisão relativos às pessoas com deficiência, os Estados Partes realizarão consultas estreitas e envolverão ativamente pessoas com deficiência, inclusive crianças com deficiência, por intermédio de suas organizações representativas.” Esses fundamentos não foram cumpridos pelo governo, nem sentidos por vários conselheiros.

Ouvi claramente as propostas de repúdio ao decreto, de solicitação de revogação, de formação de grupo de trabalho para aprimorar as questões da educação bilingue e, após sucessivas intervenções, duas propostas foram votadas: 1. Repúdio e revogação e 2. GT para aprimorar o decreto junto com o MEC. O placar foi: 13 x 9 com vitória da proposta 2. Para a composição do GT não houve surpresa, salvo a representante do MEC declarar que não participaria porque o decreto não precisava de aprimoramento, mas a suplente foi consultada e indicada para o GT. É um grupo de trabalho natimorto.

De tudo isso, tem-se a sensação de ter assistido mais uma encenação lamentável e desmoralizadora do CONADE contra sua própria razão de ser. Nenhuma surpresa no tabuleiro, com instituições tradicionais e representantes governamentais comandando o resultado. Alguns votaram assombrados pelo passado de exclusão e outros motivados pelos interesses pessoais.

Um outro grande amigo, bem como ecos vindos de diversas postagens nos aplicativos e plataformas digitais apontam para uma grande construção a ser feita com base na CDPD, artigo 33, Implementação e monitoramento, que, definitivamente, não pode ser exercido pelo CONADE, instância vinculada ao governo.

Precisamos de “um ou mais de um mecanismo independente, de maneira apropriada, para promover, proteger e monitorar a implementação da presente Convenção… a sociedade civil e, particularmente, as pessoas com deficiência e suas organizações representativas serão envolvidas e participarão plenamente no processo de monitoramento.”

Para concluir com uma mensagem propositiva, é possível que o decreto lançado ao arrepio da legislação tenha contribuído para nos dar impulso e iniciativa para finalmente nos libertarmos da submissão e colocar em prática o Art. 33 da Convenção. Já passou da hora!

 

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