Eu tive contato com crianças com deficiência na escola. O meu Jardim de Infância Bárbara Ottoni, no Maracanã, Rio de Janeiro incluía crianças com deficiência desde a década de 1960. Hoje é o Espaço de Desenvolvimento Infantil Bárbara Ottoni e vai completar 100 anos. Era uma escola pública modelo, onde as vagas eram disputadas a tapa.
Lá minha mãe era bibliotecária. Fazia teatrinhos, dramatizações e encorajava as crianças a contarem suas próprias histórias. Crianças sem os braços, crianças que moravam em abrigo, crianças de todas as cores e classes. Crianças. Uma escola maravilhosa da qual tenho as melhores recordações. Foi lá que eu vi pela primeira vez uma menininha com síndrome de Down. Primeira e última, por muitos anos.
Depois fui para uma escola particular onde todos eram iguaizinhos. Tive uma única amiga preta – uma das minhas melhores amigas até hoje. Muitos anos mais tarde nasceu minha filha com síndrome de Down e eu levei um susto. Não esperava, não conhecia, não entendia.
Só fui entender minha reação quando saiu a pesquisa da FIPE, em 2009, sobre preconceito no ambiente escolar. Ela indicava que 98,9% queriam distância de pessoas com deficiência intelectual (na época dizia-se deficiência mental). Quando eu li isso, comecei a chorar e entendi o tamanho do meu preconceito – não só meu, mas de todos ao meu redor. Escrevi o texto – Preconceituosa, eu? Terminava o artigo com a seguinte frase: “A inclusão não é mais apenas um direito. Nem só uma questão de bom senso. É nossa única saída.”
Em 2019, dez anos depois do lançamento da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, o Instituto Alana publicou uma pesquisa para conhecer as percepções da população brasileira em relação à educação inclusiva. Os números mostram o quanto avançamos: 86% achavam que as escolas se tornam melhores ao incluir crianças com deficiência e 76% concordavam que crianças com deficiência aprendem mais estudando junto com crianças sem deficiência.
O último censo escolar registrou cerca de 90% dos estudantes com deficiência incluídos em escolas regulares. Na semana passada foi decretado o retorno à segregação de “educandos que não se beneficiam de escolas regulares inclusivas”. Quem seriam esses educandos? Quem tem o poder de definir qual o critério? Com que régua isso vai ser medido? Qualquer reducionismo é uma violação à Constituição, à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência à Lei Brasileira de Inclusão e ao direito humano.
Na época em que eu ainda não entendia isso, eu também pensava assim. Achava natural começar a inclusão pelos “bonitinhos” para abrir as portas para “os que babam”. Essa minha atitude era capacitista. Capacitismo é como o preconceito contra pessoas com deficiência passou a ser chamado. Assim como temos aprendido que o racismo e o machismo são estruturais, porque crescemos dentro deles e aprendemos a normalizá-los, o capacitismo também é.
E assim como não devemos nem mesmo considerar a revogação da abolição da escravatura, também não podemos permitir a volta das crianças com deficiência para trás dos muros das instituições especiais. O Decreto 10.502 precisa ser revogado.
Lugar de criança com deficiência é na escola!
Patricia Almeida – Jornalista, mestre em Estudos da Deficiência, cofundadora do Movimento Down e Membro do Conselho da Down Syndrome International.
Preconceituosa, eu? http://www.inclusive.org.br/arquivos/9011
Fipe: http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/diversidade_apresentacao.pdf
Alana: https://alana.org.br/pesquisa-datafolha-educacao-inclusiva/
Decreto 10.502 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10502.htm