O Conselho Nacional de Procuradores-Gerais do Ministério Público dos Estados e da União (CNPG) publicou nota pública criticando pareceres n.º 50 e 51 do Conselho Nacional de Educação e reforçando apoio à educação inclusiva.
O Conselho chama pela participação social na produção de atos normativos, consolidação do modelo social de deficiência e da Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva, antes de eventual e futura homologação de pareceres pelo Ministério da Educação.
Leia a íntegra da nota:
NOTA PÚBLICA CNPG/GNDH/COPEDUC Nº 01/2024
Objeto: “Nota Pública sobre os Pareceres CNE/CP n.º 50 e 51”.
O Brasil tem extenso arcabouço normativo para a garantia da
educação especial inclusiva. Desde normas constitucionais (CF, art. 205 e 208
e Convenção Internacional Sobre Direitos da Pessoa com Deficiência, art. 24,
item 2), compromissos internacionais (Declaração de Salamanca sobre
Princípios, Políticas e Práticas na Área das Necessidades Educativas
Especiais1, itens 6 a 8), legislação infraconstitucional minuciosa (Lei
13.146/2.015, arts. 27 e 28 Decreto Federal 7.611/2011, arts. 1º e 2º, Lei nº
12.764/12, Decreto nº 8.368/2014 e Resolução CNE 4/2009). Conta, ainda,
com uma política nacional consistente, aderente ao ordenamento jurídico
vigente e em progressiva consolidação, a Política Nacional de Educação
Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva – PNEEPEI, publicada pelo
Ministério da Educação (MEC) em 2008.
A Jurisprudência nacional também já tem posicionamento
consolidado sobre ser a educação plenamente inclusiva um dos princípios
basilares da educação brasileira, o que pode ser constatado na ADI 5.357-DF
(decisão cujos fundamentos são também vinculantes, conforme nova teoria dos
fundamentos determinantes – CPC, art. 988, incisos III e IV e § 4º) e na ADI
6590 MC/ DF.
A referida legislação e o entendimento assentado pelo egrégio
Supremo Tribunal Federal afirmam a educação inclusiva como decorrência do
modelo social de deficiência, impondo-se, pois, que toda e qualquer norma
infraconstitucional reconheça a diferença em si de cada sujeito, para além de
qualquer categorização diagnóstica, e assegure direitos educacionais a partir
da eliminação de barreiras nos sistemas e instituições de ensino.
Por tais razões, e cumprindo sua missão constitucional, o
Ministério Público Brasileiro vem atuando de forma pujante na defesa da
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educação inclusiva, tendo este Conselho Nacional de Procuradores-Gerais
dos Ministérios Públicos dos Estados e da União – CNPG, através da
Comissão Permanente de Defesa da Educação do Grupo Nacional de Direitos
Humanos, já se manifestado sobre a questão nos Enunciados COPEDUC n.º
03/21 e 22/221, bem como em notas públicas.
Nessa esteira, o Conselho Nacional de Procuradores-Gerais
dos Ministérios Públicos dos Estados e da União – CNPG faz pública sua
preocupação a respeito do teor do Parecer CNE/CP nº 50/2023, que trata de
orientações específicas para o público da Educação Especial: Atendimento de
Estudantes com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e do Parecer CNE/CP nº
51/2023, que trata de orientações específicas para o público da Educação
Especial: Atendimento dos Estudantes com Altas Habilidades/Superdotação.
Consigne-se, de início, que pareceres exarados pelo Conselho
Nacional de Educação e homologados pelo Ministério da Educação possuem
força normativa, não se tratando de meras orientações de atenção facultativa
para os sistemas de ensino. Por tal razão, aliás, o próprio Supremo Tribunal
federal reconheceu, na ADPF 292 – DF, a importância da expertise do
Conselho e da expedição de suas normas quando amparadas em “ampla
participação técnica e social, em respeito à gestão democrática do ensino
público (art.206, da CRFB).
No mesmo sentido, ensina o ilustre professor Carlos Roberto
Jamil Cury que a função normativa do Conselho de Educação se “dá por meio
de Pareceres e Resoluções e, para tanto, ela deve ter previsão legal e sua
intencionalidade é a de executar o ordenamento jurídico que lhe dá
fundamento.”2
É diante dos sérios impactos normativos vinculantes e indutores
de políticas públicas, bem como da organização dos sistemas de ensino e do
1 https://www.cnpg.org.br/grupo-nacional-de-direitos-humanos-gndh/2-uncategorised/6627-
enunciado.html
2 Cury, Carlos Roberto Jamil. Conselhos de Educação: fundamentos e funções. Disponível em :< https://seer.ufrgs.br/index.php/rbpae/article/view/18721>. Acesso em: 19.3.2024
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cotidiano escolar que esta nota pública conclama por cautela e ampliação do
diálogo em torno dos temas.
Preocupa, de início, que tenham sido editados, em sequência, os
Pareceres 50 e 51 de 2023 e que ambos tragam claramente em seus títulos o
objetivo de fragmentação da educação especial por critérios diagnósticos.
Segmentam a educação especial não a partir da reorganização da escola e da
identificação e eliminação de barreiras, fortalecendo a autonomia e os saberes
educacionais e os laços humanos concretamente estabelecidos entre sujeitos
com biografias incomparáveis em contextos escolares também singulares, mas
sim de supostas características comuns que poderiam categorizar
determinados grupos e apontar padrões de intervenções a partir de tais
descrições.
O Parecer CNE/CP nº 50/2023 é objeto de fortes e relevantes
críticas consignadas em diversos documentos, cartas abertas, moções e
manifestações públicas contrárias à sua homologação, produzidas por
diferentes universidades, centros de pesquisa, sindicatos, associações e
organizações da sociedade civil representativas dos movimentos de pessoas
com deficiência, a saber: Associação Brasileira para a Inclusão das Pessoas
Autistas (AUTISTAS BRASIL); Associação Brasileira para Ação por Direitos
das Pessoas Autistas (ABRAÇA); Associação Nacional das Defensoras e
Defensores Públicos (ANADEP); Campanha Nacional pelo Direito à Educação
(CNDE); Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED);
Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down; Fórum
Permanente de Educação Inclusiva do Espírito Santo (UFES); Instituto Alana;
Instituto Cáue; Instituto Mais Diferenças; Instituto Rodrigo Mendes; Laboratório
de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença (LEPED/UNICAMP); Vidas
Negras com Deficiência Importam; e outros.
Uma das moções contrárias à homologação de citado parecer,
submetida pela Coalizão Brasileira pela Educação Inclusiva, com o apoio de
mais de 20 entidades de representação nacional, como a Associação Nacional
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de Política e Administração da Educação (Anpae), CNTE (Confederação
Nacional dos Trabalhadores em Educação), Ubes (União Brasileira dos
Estudantes Secundaristas), UNE (União Nacional dos Estudantes), Uneafro,
Fineduca (Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação)
e Associação Nacional para Inclusão de Pessoas Autistas (ANIABR), foi votada
e aprovada em plenária na Conferência Nacional de Educação – CONAE, que
aconteceu no início deste ano.
Os documentos citados apontam, em especial, que o parecer
reforça o ultrapassado modelo médico de compreensão da deficiência,
preocupação, aliás, já explicitada em nosso Enunciado COPEDUC/GNDH n.º
22/22. De fato, ao instituir protocolos de conduta e ao criar o plano educacional
individualizado, o parecer denota possível desvirtuamento do disposto no
Comentário geral no. 4, da Organização das Nações Unidas e desconsideração
do já existente Plano Individual de Atendimento Educacional Especializado,
documento que, a partir de estudo de caso, investiga e organiza serviços para
eliminação de barreiras enfrentadas por um sujeito que não é limitado por
critérios diagnósticos.
Ao retomar, ao menos em alguma medida, a concepção médica
da deficiência, o Parecer supramencionado fragmenta os saberes e práticas
educacionais a partir de critérios diagnósticos e intervenções clínico-
terapêuticas e, em grande medida, desconsidera a autonomia escolar e dos
profissionais de educação em relação às abordagens teórico-metodológicas
que melhor correspondam ao projeto político pedagógico da instituição e aos
interesses e desejos dos sujeitos envolvidos no singular processo de ensino
em contextos concretos e específicos.
Questiona, a sociedade civil organizada, também, a falta de
participação daqueles diretamente interessados no tema para a elaboração do
mencionado parecer. São princípios gerais constitucionais da educação o do
planejamento participativo (artigo 214 da CF) e o da Gestão Democrática do
Ensino (artigo 206 da CF).
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No caso das pessoas com deficiência, citado princípio ganha
ainda o reforço do artigo 4º.3. da Convenção Internacional sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência:
3.Na elaboração e implementação de legislação e políticas
para aplicar a presente Convenção e em outros processos de
tomada de decisão relativos às pessoas com deficiência, os
Estados Partes realizarão consultas estreitas e envolverão
ativamente pessoas com deficiência, inclusive crianças com
deficiência, por intermédio de suas organizações
representativas.
Vislumbra-se, pois, considerando as informações disponíveis e,
inclusive, consignadas no Parecer 50 —ausentes registros das exigidas
consultas e participação de organizações representativas de pessoas com
deficiência, possível potencial para questionamentos sobre a
inconstitucionalidade e/ou inconvencionalidade do procedimento de elaboração
do parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE).
Ressalte-se, em acréscimo, que a participação da comunidade na
formulação de políticas públicas voltadas para as pessoas com transtorno do
espectro autista e controle social da sua implantação, acompanhamento e
avaliação é uma das diretrizes da Política Nacional de Proteção dos Direitos da
Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, conforme expressamente
consignado no artigo 2º, II, da Lei 12.764/2012 (Brasil, 2012).
A mesma ausência de participação social e debate público se
verifica na edição do Parecer 51. Ainda que, no caso, pessoas com
superdotação ou altas-habilidades não sejam consideradas pessoas com
deficiência, tal não afasta o princípio geral de participação e gestão
democrática da educação.
Vale consignar, aliás, que em sistemas e escolas efetivamente
inclusivas, qualquer normativa ou ação afetará o conjunto da comunidade
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escolar. Nesse sentido, também o parecer 51 adota a lógica da segmentação
de grupo no interior da educação especial, distanciando-se da estrutura que
sustenta a política nacional de educação especial em perspectiva inclusiva,
preocupada em transformar a escola, com identificação e eliminação de
barreiras em seus espaços, fazeres e atitudes.
Preocupa-nos, também, o crescente fenômeno de juridificação da
educação, com a excessiva proliferação de normas e, no caso da educação
inclusiva, agravada pelo pouco cuidado terminológico, multiplicidade de termos
equívocos e excessiva burocratização dos fazeres educacionais, apostando-se
em aparentes soluções jurídico-administrativas para problemas e falhas na
política pública que já contam com suficiente arcabouço normativo e que
demandam, em verdade, compromisso ético e investimentos para solução.
A simples leitura dos pareceres em análise é demonstração do
referido fenômeno, impondo aos sistemas de ensino inúmeros protocolos,
registros, rotinas, avaliações, intervenções obrigatórias do campo da saúde, em
um processo burocratizante que, com a intenção de supostamente abarcar
todas as necessidades de determinado grupo de alunos — identificados a partir
de diagnósticos médicos ou multidisciplinares — acaba por esvaziar o
protagonismo da função educativa e pedagógica, atribuindo à equipe escolar
funções de rastreamento, anamnese e de perícia em bases psicobiomédicas.
Os citados pareceres, portanto, nada obstante o respeito aos
profissionais envolvidos em sua elaboração, podem fomentar não apenas
intervenções indevidas do campo da saúde no ambiente escolar, mas também
a judicialização e ingerência também do sistema de justiça, fragilizando o
trabalho pedagógico e o protagonismo de profissionais da educação e
estudantes nas instituições escolares.
Ainda que absolutamente desejável o trabalho intersetorial e de
garantia de direitos em rede, há que se ter cautela para que as normas não
acabem por induzir, indevidamente, invasão dos espaços e saberes próprios do
setor educacional.
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A homologação dos Pareceres CNE/CP N. 50/2023 e 51/2023,
sem a necessária ampliação do debate, assegurando-se participação de
espectro mais amplo da comunidade científica, escuta e participação das
comunidades escolares, das pessoas com deficiência e/ou de suas entidades
representativas, das pessoas autistas e daquelas com altas
habilidades/superdotação contraria a praxe histórica do próprio CNE, no debate
de temas sensíveis, como se pode observar, por exemplo, do processo de
elaboração da Resolução CNE/CP n.º 02/17.
No caso da educação inclusiva, como já destacamos, o diálogo e
participação devem ser ainda mais amplos, considerando que o que se
pretende, em última análise, é a transformação da instituição escolar, para que
seja efetivamente para todos e para cada um.
É preciso destacar, ainda, que os pareceres em questão são
publicados quando a sociedade civil acaba de realizar a Conferência Nacional
de Educação e prepara o planejamento decenal constitucionalmente exigido,
não nos parecendo prudente que aqueles tramitem e sejam eventualmente
homologados em atos divorciados de tal construção democrática.
Destarte, não há como desprezar o posicionamento firmado na
moção aprovada em plenária da Conferência Nacional de Educação, máxime
em respeito à densidade democrática da referida CONAE para o processo de
formação normativa do direito educacional brasileiro.
Assim, o Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos
Ministérios Públicos dos Estados e da União – CNPG, através da Comissão
Permanente de Educação do Grupo Nacional de Direitos Humanos, vem a
público reforçar o teor de referida moção, aprovada em Conferência
democrática de âmbito nacional e, pelas razões expostas, fazer públicas
suas preocupações sobre as consequências possivelmente negativas dos
Pareceres CNE/CP 50 e 51/2023 — seja no âmbito da consolidação da
política nacional de educação especial em perspectiva inclusiva, seja no
âmbito da ampliação de litígios no sistema de justiça. Expõe, outrossim,
sua posição pública a respeito da desejável ampliação dos estudos e
debates, assegurando a participação social constitucionalmente exigida e
a cautela sempre desejável na produção de atos normativos, garantindo-
se aprimoramentos que de fato consolidem o modelo social de deficiência
e a Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da Educação
antes de eventual e futura homologação pelo Ministério da Educação.
CÉSAR BECHARA NADER MATTAR JÚNIOR
Procurador-Geral de Justiça do Estado do Pará
Presidente do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais do Ministério Público
dos Estados e da União – CNPG
Procurador-Geral de Justiça do Estado do Amazonas
Presidente do Grupo Nacional de Direitos Humanos – GNDH/CNPG
*Nota pública aprovada pelo Colegiado CNPG em abril/202