É impossível ser cidadão sem entender os serviços públicos

A imagem mostra uma pessoa enterrada sob uma pilha de papéis, com uma expressão de desespero no rosto, enquanto estende a mão para fora da pilha.

A Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei que obriga o Poder Público a usar Linguagem Simples nas comunicações com o cidadão.

A Linguagem Simples reúne técnicas para que as pessoas consigam encontrar, entender e usar as informações sem precisar ler duas vezes nem pedir explicação a um especialista.

A aprovação do projeto vai aumentar a compreensão dos serviços públicos nos sites, aplicativos, notícias, roteiros de telefonia, e-mails, cartas e notificações.

O texto teve o apoio de mais de cem entidades, com as mais variadas atuações, como a Cátedra em Políticas Públicas da Unesco, a Transparência Brasil, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, a Associação Brasileira de Comunicação Pública e a Rede Brasileira de Inclusão das Pessoas com Deficiência. E há recomendações similares em diversos países, como Estados Unidos, Colômbia, Suécia e Austrália.

Ainda assim, o projeto sofreu resistência na Câmara e não foi uma pauta consensual. Um pequeno grupo de deputados alegou o “empobrecimento da Língua Portuguesa”, em uma clara distorção do escopo da proposta.

As controvérsias são fruto de ilusões e disfarces, pois o texto combate exclusivamente os ruídos de informação nos serviços públicos. Não abarca artigos científicos, livros didáticos, sentenças judiciais, leis, nem mesmo este artigo.

Entre as diversas mudanças feitas no projeto, os deputados acrescentaram a proibição do uso de linguagem neutra como se fosse uma técnica de Linguagem Simples. Além de não ser, essas pautas não têm nenhuma interseção. Foi o chamado “jabuti” na lei, que mais repercutiu na Imprensa.

Pena que a Imprensa também não se atentou para o fato de que retiraram, discricionariamente, sete diretrizes previstas na técnica. Excluíram, por exemplo, a recomendação de “evitar redundâncias e palavras desnecessárias”, reforçando a enrolação do burocratês.

Ora, Linguagem Simples não é questão de preferência. É uma técnica amparada por norma internacional ISO e por estudos da psicolinguística, neurolinguística e design da informação. A tradução do ISO já está sendo feita pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).

E é preciso, sim, regulamentar procedimentos, pois não se trata de um saber intuitivo. Se assim o fosse, o Ministério da Saúde não diria em seu site que alguns sintomas da Covid são “ageusia e anosmia”; nem a carta de serviços do Governo diria ao imigrante recém-chegado ao Brasil que ele deve “proceder à solicitação de registro no prazo de noventa dias sob pena de aplicação da sanção prevista no inciso III do caput do art. 307 do Decreto 9.199/2017.

Um dos grandes méritos da proposta é reconhecer que não há cidadania sem compreensão. Por isso, o saldo da votação é positivo. Ainda que imperfeito, o projeto mostra empatia da Câmara dos Deputados para questões de transparência e cidadania.

Afinal, todos merecemos entender informações fundamentais para exercermos nossos direitos, como tirar carteira de identidade, abrir microempresa, averbar tempo de serviço no INSS, marcar consulta no SUS, e mais aquilo que você precisava entender, mas não conseguiu.

Artigo de Patricia Roedel publicado na Folha de S. Paulo em 05/01/24

Patricia Roedel integra os núcleos gestores da Rede Linguagem Simples Brasil e do Linguagem Simples Lab; o grupo da ABNT que normatiza a Linguagem Simples; e a Plain Language Association International.

Fonte: https://medium.com/@roedelp/%C3%A9-imposs%C3%ADvel-ser-cidad%C3%A3o-sem-entender-os-servi%C3%A7os-p%C3%BAblicos-158ab14ccb98

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *