Quando a Automação Encontra a Acessibilidade

Texto de Francis Guimarães

O Desafio da Inclusão nos Testes de Qualidade

Nos últimos anos, falar sobre automação de testes virou tendência entre profissionais de qualidade. Frameworks como Cypress, Playwright e Selenium revolucionaram a forma de validar funcionalidades, garantindo agilidade, redução de custos e maior cobertura de cenários. Mas quando o assunto é acessibilidade digital, especialmente envolvendo leitores de tela, o cenário muda completamente.

A automação consegue identificar aspectos estruturais, como contraste de cores, hierarquia de títulos, rótulos de botões e uso correto de atributos ARIA. Ferramentas como axe-core, Lighthouse e Pa11y são excelentes nesse ponto, porque apontam falhas no código e sugerem correções. O problema é que elas não chegam até o ponto essencial da experiência: a navegação real de quem depende de tecnologia assistiva.

Essas ferramentas veem o código, mas não ouvem a tela. Não percebem se o leitor de tela está repetindo informações, se a ordem de foco está confusa ou se o conteúdo faz sentido quando é falado em voz alta. Elas enxergam o que está escrito, mas não compreendem como é viver a experiência.


O paradoxo da automação inacessível


Há uma contradição muito forte nesse cenário. Enquanto falamos sobre incluir testes de acessibilidade no ciclo de qualidade, a maioria das ferramentas de automação não é acessível para profissionais com deficiência visual.

Painéis cheios de gráficos, resultados visuais sem descrição e interfaces que não funcionam com leitores de tela acabam afastando justamente quem deveria estar no centro do processo. A pessoa cega que trabalha com qualidade, muitas vezes, não consegue usar as ferramentas que medem a acessibilidade. É como construir uma ponte bonita, mas sem rampa para chegar até ela.


O papel essencial do profissional com deficiência visual


Mesmo com tantas barreiras, o profissional com deficiência visual tem um papel
insubstituível na garantia da acessibilidade. Ele é o elo entre a técnica e a experiência humana.

Somente quem usa o leitor de tela todos os dias percebe se a navegação é lógica, se o texto é compreensível e se a leitura é fluida. Além disso, esse profissional pode definir o que deve ser testado manualmente e o que pode ser automatizado, direcionando o time com base no impacto real.


Ele também ajuda a criar padrões e requisitos técnicos mais assertivos. A experiência prática de quem vivencia barreiras todos os dias ajuda a construir soluções que, no futuro, poderão ser automatizadas de forma mais fiel à realidade do usuário.


O limite cognitivo da automação


Ferramentas automatizadas analisam estruturas e presença de elementos, mas não entendem o conteúdo. Elas verificam se há um rótulo em um botão, mas não se a palavra está escrita corretamente.

Se o rótulo de um botão estiver como “Envar” em vez de “Enviar”, o relatório de acessibilidade marcará como correto. A automação identifica que o campo existe, mas não sabe que o erro ortográfico vai confundir o leitor de tela e o usuário final.

O mesmo acontece com imagens e gráficos. Se uma imagem tiver um “alt” genérico, como “imagem” ou “teste”, o relatório também considera correto. Mas para a pessoa cega, essa descrição não comunica nada. A automação confirma que há voz, mas só o ouvir humano confirma se essa voz comunica algo.

A linguagem simples como parte da acessibilidade

A linguagem é uma das maiores barreiras digitais e, ainda assim, raramente é testada. Mesmo com código perfeito, se o conteúdo não for claro e compreensível, a acessibilidade falha.

Não basta que o leitor de tela leia um botão, é preciso que o usuário entenda o que esse botão faz. A linguagem simples beneficia a todos, pessoas com deficiência intelectual, quem tem baixa escolaridade, quem está cansado, quem usa um celular pequeno ou quem não domina o idioma.

Nenhuma automação é capaz de avaliar clareza, ambiguidade ou confusão textual. Automação sem compreensão é como uma porta automática que abre, mas dá direto num muro. Funciona, mas não serve.

A experiência vivida como ferramenta de teste

Os testes de acessibilidade tentam reproduzir a interação real entre o usuário e a tecnologia. Só que existe uma diferença enorme entre aprender a usar um leitor de tela e precisar dele todos os dias para estudar, trabalhar e viver.
Saber usar é diferente de precisar. E essa diferença muda tudo.
O profissional com deficiência visual percebe coisas que escapam aos olhos de quem enxerga: pausas estranhas na leitura, ruídos sonoros, ordens de foco confusas e descrições incoerentes. É esse olhar que transforma o teste em verdade e o relatório em realidade.

Nada sobre nós sem nós: o fundamento da qualidade


A Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência consagrou a frase “Nada sobre nós sem nós”. Ela não é apenas um lema político, é um princípio técnico e ético. A experiência vivida é também uma forma legítima de conhecimento. Quem sente as barreiras todos os dias entende o impacto que elas causam de uma maneira que ninguém de fora poderia compreender.
Por isso, a presença de profissionais com deficiência nos testes de acessibilidade não é apenas inclusão simbólica. É um requisito de qualidade. São eles que mostram a distância entre o que o sistema promete e o que realmente entrega. São eles que tornam o processo fiel e o resultado humano.

Conclusão


Automação, padrões e métricas são importantes. Mas sem o envolvimento direto das pessoas com deficiência, os testes de acessibilidade continuam sendo apenas uma simulação incompleta. A automação garante eficiência, o olhar humano garante verdade.
A acessibilidade não se mede pela conformidade técnica, mas pela possibilidade de uso real. E como ensina a Convenção da ONU, nada sobre nós sem nós. Não apenas para garantir participação, mas porque o conhecimento nascido das experiências vividas é o que mais valor traz à construção de um mundo verdadeiramente acessível.

A imagem mostra um homem negro cego trabalhando em um escritório moderno e iluminado. Ele usa óculos escuros, fones de ouvido grandes e um Apple Watch no pulso esquerdo, digitando em um notebook prateado sobre uma mesa de madeira clara. Ao lado do notebook, há um smartphone, um caderno e uma xícara branca. No fundo, é possível ver outras pessoas desfocadas conversando em um ambiente de trabalho colaborativo, com janelas amplas que deixam entrar luz natural. Elementos visuais translúcidos, como ícones de acessibilidade, engrenagens e gráficos,
aparecem sobrepostos, representando tecnologia, automação e inclusão.

Fonte: LinkedIn

Francis Guimarães é QA Analyst, Analista de Testes de Acessibilidade Web & mobile, Pedagogo e especialista em Tecnologias Assistivas.

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