Conceição Oliveira
http://mariafro.wordpress.com/2009/03/23/toda-crianca-precisa-de-atencao-especial/
Para o Coca e a Dona Terezinha que me ensinam sempre.
Para a Luisa e a Cris que terão outro destino.
Eu tenho um irmão cadeirante com um monte de problemas de saúde, mas cá pra nós, eles poderiam ser reduzidos e menos danosos se a vida dele tivesse tido mais vida, mais emoção, mais solidariedade, mais direitos garantidos.
Ser pobre e ser cadeirante é quase desumano, porque a pobreza não consegue driblar os obstáculos socialmente construídos responsáveis pela desumanização (no sentido de retirar ou boicotar as possibilidades das delícias de viver o que é pra se viver daquele que não tem a liberdade de ir e vir).
Ontem lembrei muito do meu irmão. Lembrei de todo o esforço que tentei concentrar quando eu era ainda púbere pra ajudar a minha mãe e ao meu irmão. À época ele ainda tinha alguma locomoção, e eu, com meu corpo frágil, carregava-o de ônibus atravessando a orla pra ir à Casa da Esperança levá-lo para hidroterapia. Ele precisava de tratamentos intensivos de fisioterapia e de uma sociedade mais humanizada para aceitá-lo em suas diferenças. Ele não teve nem uma coisa, nem outra.
Por isso, mesmo com nossos esforços constantes, mas sem condições dignas para enfrentar tantos desafios impostos, ele sucumbiu.
Se a escola até hoje com todas as leis importantes para garantir o respeito à diversidade e à diferença pode ser excludente com as crianças sem capital financeiro, cultural e racial, (leia-se as não brancas, de classe média e com acesso a bens culturais que as preparem para o habitus escolar), imaginem o que era tentar entrar e permanecer na escola em fins da década de 1970 sendo pobre, negro e com deficiência motora.
Meu irmão foi excluído de uma escola excludente, porque não era igual as demais crianças que tinham equilíbrio e coordenação motora, foi excluído pela falta de transporte adequado e nenhuma política pública decente, foi excluído porque professores, diretores, coordenadores, com raríssimas exceções, tinham e continuam a temer os desafios que a diferença trás para os muros intraescolares.
Meu irmão foi socialmente condenado a viver enclausurado, a depender dos esforços familiares pra dar uma volta no estuário de vez em quando; a contar com a solidariedade de um vizinho ou parente pra emprestar um carro ou dar carona até um pronto socorro quando sua saúde se agravava.
Meu irmão foi se resignando, embora ele tivesse brilho nos olhos e uma paixão pela música e uma memória absurda para as letras e melodias das canções, embora ele tivesse uma mente ágil, tivesse humor, tivesse condições suficientes para aprender, escolarizar-se e construir sua autonomia.
Meu irmão sempre perguntava dos meus amigos, até mesmo sobre aqueles que ele não conhecia pessoalmente, mas que me ouvia falar com carinho. O Coca tinha todos os equipamentos emocionais pra se socializar, para viver uma vida digna, mesmo com a limitação motora. Mas a ele foi negado o direito de vivê-la com dignidade.
A relação simbiótica do meu irmão com a minha mãe o mantém vivo, com uma péssima qualidade de vida para ambos: ela aos 68 anos carrega um homem com 35 anos para o banho e lhe dá banho, ferindo sua intimidade para que ele possa sobreviver; ela o carrega com o seu corpo frágil para a cama onde, às vezes, ele defeca e urina. Meu irmão vem apresentando uma depressão profunda: não dorme à noite, não quer mais conversar, está perdendo a sua capacidade de controle emocional e fisiológico, enclausura-se no seu quarto e no seu próprio mundo.
No niver de 35 anos do Coca e a mamãe, dona Terezinha.
Meu irmão nunca se relacionou sexualmente, embora tenha sua libido em perfeita ordem, nunca namorou, nunca saiu pra farrear com os amigos e cometer um deslize. Ao meu irmão foi negado o direito de ser criança, de ser jovem, de se relacionar para um mundo maior, além do familiar.
Na minha infância eu cansei de sair no braço quando as crianças pouco educadas para a diferença e acostumadas a tratar os diferentes com escárnio resolviam tirar sarro dele. E fomos todos nos cansando diante de tantos, tantos desafios, sem nenhum apoio da sociedade, dos governos.
Foi a Cristiana Soares, autora de “Por que Heloisa”? que me trouxe, ontem à tarde, a memória desta trajetória tão triste. Cris luta para que sua filha Luisa, com paralisia cerebral, não tenha o mesmo destino de meu irmão e para que outras crianças que não têm acessibilidade possam ter direito a viver socialmente. Cris milita pela causa da inclusão, por uma escola inclusiva, por uma cidade inclusiva, por uma sociedade humanizada que não veja com a naturalidade que vê a desumanização.
Ela me fala com generosidade, sem revoltas, mas com uma vontade inesgotável de transformar uma sociedade hipócrita e cruel, que condena povos que exterminam seus diferentes, mas que não é capaz de olhar o mundo a seu redor. Ela acha que as para-olímpiadas são, do modo como estão organizadas, uma forma preconceituosa de tratar os deficientes. E ela tem razão, se ela fosse ouvida os deficientes competiriam em suas categorias junto com os não deficientes, nas olimpíadas, num mesmo evento bonito de se ver, em um acontecimento no qual a idéia de superação de nossos limites é central.
Cris não sabe como enfrentar todos os desafios (e ela é PHD no enfrentamento), mas sabe que o princípio deve orientar as ações e, o princípio é não excluir. Os desafios pra vencer a exclusão é um trabalho de toda a sociedade.
Assim, seria bom que todos aqueles considerados ‘normais’ se mobilizassem contra a crueldade de parques infantis sem acessibilidade, de escolas amedrontadas em receber crianças portadoras de necessidades especiais, de caçadas e praças sem guias rebaixadas, de equipamentos urbanos sem rampas, sem elevadores, de concessões públicas televisivas que não cumprem a lei para tornar os programas de tevês acessíveis aos deficientes visuais ,por meio da audiodescrição, da carência absurda de centros de tratamento e reabilitação para cadeirantes, amputados, deficientes visuais, auditivos etc.
A Cris é uma mulher de fibra como a minha mãe, mas essas mulheres não podem lutar sozinhas contra um mundo todo cego, surdo, mudo e imobilizado diante das diferenças. Leis já existem, mas a gente tem de fazer com que elas sejam cumpridas.
Em fevereiro do ano passado fraturei o maléolo. Durante um mês usei talas, pois o pé inchou tanto que não dava pra engessar; depois permaneci mais 45 dias de gesso e muletas e, finalmente, enfrentei três meses de fisioterapia pra voltar a me aproximar da mobilidade que tinha antes do acidente. Durante esses meses subi de bunda as escadas, pulei feito saci pela casa e contei com a solidariedade do pai da filha pra levá-la à escola, dos amigos para me visitarem fazerem, compras e me carregarem à clínica ortopédica. Sair de casa naquele período era um desafio incomensurável.
A experiência do convívio com meu irmão me mostrava que viver como ele não era nada fácil, mas nada como você sentir literalmente na pele o que é não ter todos os equipamentos necessários para viver em um mundo que não foi feito para você. Por isso, para mim, nada como um exercício empático a ser praticado pelos “normais” para que descubram o que é bom pra tosse.
Dá uma olhadinha nas sugestões que faço aqui e aqui. Experimente andar em Sampa ou em qualquer outro grande centro urbano desumanizador de cadeira de rodas; faça um breve exercício com olhos fechados e experimente fazer as coisas mais comuns do seu cotidiano; tampe os ouvidos diante da tv, experimente ajoelhar-se em um supermercado ou em um banheiro público e tente fazer compras ou lavar e secar as mãos.
Talvez você descubra um pouquinho sobre os desafios que os portadores de necessidades especiais têm de vencer cotidianamente e talvez você entenda por que a Cris e todos os militantes da acessibilidade e inclusão lutem tanto. Talvez você entenda por que o Clodoaldo, que nunca foi ao estádio ver o seu time do coração jogar, tenha resolvido migrar para dentro do seu próprio mundo e talvez você ajude as Luisas do nosso mundo a não terem este mesmo destino.
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PS1: Em tempo, fiquei sabendo que blogueiros de aluguel tiveram a coragem de criticar funcionários da TV Brasil por desenvolver a matéria Vida Adaptada, na série Caminhos da Reportagem. Estupidez tem limites, leia a resposta da Helena Chagas a estes energúmenos, aqui e aproveita para ver por que a tevê pública é algo tão necessário à cidadania, dando uma espiada aqui e aqui.
PS2: Se você se convenceu que precisa se sensibilizar para o tema não deixe de ver Metaforfose; Criaturas que nasciam em segredo, No meio do caminho
PS3: A BBC- Brasil de hoje noticia um documentário inglês sobre a luta de uma mãe para que seu filho possa vivenciar sua sexualidade, clique aqui
Olá queridos faltou o link para a postagem original: http://mariafro.wordpress.com/2009/03/23/toda-crianca-precisa-de-atencao-especial/