Banalizar, não, dizem os cientistas. Durante dois dias, num encontro no Palácio de Mateus, em Vila Real, pessoas de diferentes ramos reuniram-se para falar sobre o «Uso da informação genética». Um programa preparado por Sousa Lobo, presidente do Instituto da Casa de Mateus, Jorge Sequeiros (IBMC, Porto) e Jorge Soares, da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, pôs em confronto geneticistas, microbiologistas, filósofos, sociólogos, representantes comerciais, agentes de seguros, entre outros. Uns defendem, outros refutam a partilha pública destes dados. Foi uma intensa discussão começada a 1 de Maio, Dia do Trabalhador, em que se «trabalharam» os 23 códigos do destino, que é como quem diz os 23 pares de cromossomas por que se distribui o genoma humano.
Madame Rose, hipotética vidente, vê na sua bola de cristal uma previsão do futuro: com quem vai casar, quantos filhos vai ter, etc.. Terá esta espinhosa missão intuitiva uma leitura conclusiva para os crentes?
Já o antropólogo Rabinow previu que a Biologia seria usada para mudar a sociedade. Parece, no entanto, que a sociedade quer interferir com a Biologia e usá-la para prever o futuro.
As empresas “direct-to-consumer” podem ser vistas como as novas videntes sofisticadas dos nossos dias. Estas companhias vendem testes genéticos a título particular e quase recreativo e é possível partilhá-los via internet. A comunidade científica, preocupada com as implicações, apela para uma regulamentação.
Sousa Lobo e Jorge Soares (clique para ampliar)
Quem quiser saber as probabilidades que tem de tender para a obesidade, para doenças cancerígenas, para a diabetes ou outras poderá encomendar um kit pela Internet, por 399 dólares a estas empresas e quando este chegar bastará derramar saliva para o interior de um tubo e enviá-lo para o laboratório.
A empresa garante o resultado disponível entre seis a oito semanas. A partir daí, bastará um registo, entrar com uma palavra passe e acedemos ao nosso genoma. Segundo o conselho de bioética, a informação não deve ser vendida ao público em geral para satisfazer uma mera curiosidade, já que não tem a capacidade de interpretar a informação convenientemente.
Este mercado já chegou a Portugal com a promessa de revolucionar o meio e permitir ao paciente/cliente tornar-se num “utilizador” da genética personalizada.
Testes predictivos
Os cientistas entendem que estes dados precisam de contextualização, seja familiar, pessoal ou ambiental. O aconselhamento genético considera-se necessário e útil em caso de diagnóstico clínico, mas predictivamente muito baixo.
Jorge Sequeiros, geneticista do Instituto de Biologia Molecular e Celular da Universidade do Porto (IBMC), defende “implicações na qualidade da informação já que apenas se baseiam numa previsão e os erros são frequentes”. O investigador questiona, inclusivamente, a possibilidade de uma paciente/cliente interromper uma gravidez mediante uma previsão errada.
Michel Renaud, Constantino Sakellarides e Kathy Hudson (clique)
Refere que os estudos só devem ser realizados quando houver utilidade médica comprovada, já que apenas dois a cinco genes é que estão associados a doenças e um resultado antecipado poderá provocar ansiedade e prejudicar a saúde sem razão.
Já Paolo Radice, investigador italiano na área de doenças cancerígenas, explica e divide a sua tese em utilidade e limitações dos dados. Se na interpretação dos resultados há variantes que devem ser classificadas como neutrais ou causativas de cancro e facultar alívio psicológico, existe uma complexidade na mutação desses genes e paira a incerteza.
Na área de seguros de saúde vendem-se contratos e expectativas de segurança. Contudo, como é que poderão estas empresas precaver-se e estabelecer um valor? Pelo aspecto físico? Manuel Penha Graça, profissional da área, considera que a informação genética prévia é uma peça fundamental na avaliação de quem se candidata ao seguro, embora se necessitem de «experts» em lei e medicina para não se aceitarem riscos ou recusar potenciais clientes.
Para Penha Graça é necessário estratificar a sociedade segundo uma base científica já que se não podem basear em selecção adversa e informação assimétrica.
Os investigadores discordam terminantemente e relembram a imprevisibilidade da informação e as implicações se esta for posta a público – falsos diagnósticos e falta de privacidade.
António Amorim (de pé) durante o debate (clique para ampliar)
Kathy Hudson, microbiologista da Universidade John Hopkins, EUA, alerta para “uma descriminação genética europeia”, no caso de esta se tornar pública, podendo ser usada incorrectamente por agentes de seguros e empregadores para avaliar funcionários.
Defende ainda uma linha ténue entre o uso desses dados para propósitos médicos e para proveito próprio num contexto financeiro. E acredita que a democratização da informação genética poderá levar companhias de seguradoras a recusarem cobrir seguros de saúde porque testes preliminares acusam a possibilidade de uma mulher poder ter uma criança com a síndrome de Down, por exemplo (vulgo momgolismo).
Quadro genético
O que pensaria o quinto morgado da casa de Mateus se em vez de ver o seu retrato pintado na parede se confrontasse com um quadro do seu código genético? A StabVida, empresa ‘direct-to-consumer’ portuguesa, faculta informação genética ao consumidor e comercializa ainda telas com a recriação do genoma.
Orfeu Flores, representante da companhia, defende que esta informação funciona como o futuro cartão de identidade onde se concentrará todo o perfil genético do cidadão e que poderá ter grande utilidade para identificar pessoas desaparecidas e traçar um historial familiar, por exemplo. O próprio aludiu a um teste pessoal em que defendia raízes chinesas e marroquinas, divertindo a plateia.
Imagem de um dos debates de Mateus (clique para ampliar)
A StabVida não comercializa o genoma completo, apenas testes individuais. Por exemplo, uma análise genética para a obesidade custa 80 euros. Orfeu Flores propugna por uma genética personalizada, confidencial e não invasiva (já que apenas se usa saliva), mas anui perante os cientistas quando defendem apenas previsões.
Barbara Prainsack, cientista política do Kings College, Reino Unido, fala de “uma larga escala de fenótipos medicalmente relevantes”, como a variante MAO no cromossoma X dos homens e que, segundo um estudo, quem a tivesse teria probabilidade de desenvolver comportamentos criminosos.
Nesta perspectiva, que limites éticos e legais se poderiam estipular? Barbara Prainsack alerta, contudo, para a responsabilidade social, decisões racionais e a normas que regulam o nosso estilo de vida. “O DNA pode ser um veículo de informação – dependendo do genótipo – mas tem de ser visto no contexto familiar”. A resposta às nossas origens poderá interferir com testes de informação genética.
Francisco Corte-Real, do Instituto Nacional de Medicina Legal da Universidade de Coimbra, explica que para o uso forense uma base de dados genética poderia facilitar a exclusão criminal. Pode ser um importante meio na resolução de crimes sexuais ou homicídios. Em vários países já surge a ideia da possibilidade de uma base de dados genética de toda a população. Contudo, há sempre a ter em conta a questão da privacidade.
O DNA permite certeza na exclusão de suspeitos, mas apenas 98 por cento de identificação. Poderia ajudar mais rapidamente a resolver casos de corpos não identificados, por exemplo.
O uso da informação genética extrapola fronteiras que vão para além do entendimento pessoal e divide cientistas, activistas, pacientes, filósofos, agentes de seguros, entre outros. A recriação de um mapa genético moderno que funciona como guia por uma viagem pelo nosso corpo, como um horóscopo que prediz o futuro, pode servir para nos precavermos de uma possível doença fatal ou acarreta riscos relativos, absolutos e pode até funcionar como a lotaria?
Uma investigação conjunta das universidades de Cornell (EUA) e de Queesnland (Austrália) avançou recentemente que os genes têm um papel importante na escolha do príncipe encantado. E mais, têm mesmo um peso relevante quando o resultado pende para o vilão.
Poderiam, então, as mulheres ter a possibilidade de escolher o homem perfeito para pai dos seus filhos? No entanto, considerando que em estudo apenas se verificam testes predictivos, as aspirantes podem sempre ser confrontadas com a eventualidade de o príncipe se transformar em sapo.