Mulher no volante

Via Política - link abrirá em uma nova janela.

por Clarissa Barreto

Taxista por acaso, Andréia virou xerife do ponto mais movimentado de Porto Alegre.

Num sábado quente de primavera, Andréia suava enquanto saracoteava por todo o pequeno salão de festas da sede do PMDB municipal, em Porto Alegre, recepcionando as mulheres que chegavam, distribuindo bebidas, cobrando no celular os pratinhos descartáveis que uma das convidadas ficara de trazer. À moda das reuniões dançantes de antigamente, cada participante levou um prato de salgado ou doce, mas sem os pratinhos para servir ficaria difícil levar a festinha adiante.

Não que as cerca de 20 mulheres de todas as idades espalhadas pelas cadeiras do salão estivessem lá pela comida. A maior parte delas estava queria discutir questões ligadas à profissão: motorista de táxi. O segundo encontro das mulheres taxistas trazia no convite a pauta: condições de trabalho, dupla jornada, Lei Maria da Penha e saúde. Andréia diz que o fato de ser na sede do PMDB não significa que haja identificação partidária das meninas. “Foi o lugar que me emprestaram”, dá de ombros.

Andréia Aparecida Ribeiro Terres, 38 anos, a organizadora deste e do primeiro encontro das mulheres taxistas, só assumiu o volante do táxi registrado em seu nome desde 2000 há apenas três anos. O registro havia sido feito pelo então marido, que já tinha um táxi e não poderia ser dono de outro. Na divisão dos delicados do divórcio, Andréia bateu pé e levou o bólido praticamente zero-quilômetro, um sedã Siena, marca Fiat, já pintado na cor-de-laranja dos carros de praça porto-alegrenses, trespassado por uma faixa azul. O ex-marido ficou furioso. “Ele faz ponto no mesmo local que eu e passa sem me cumprimentar. Engraçado, já que ele casou de novo, né? Era para estar bem”, diverte-se.

Até o divórcio, aos 35 anos, Andréia se dividia entre as tarefas do lar e de dona de um mercadinho, que funcionava em sua casa no Morro Santa Tereza, dividida com uma escadinha de quatro filhos – 14, 17, 19 e 21 anos, além de um neto a caminho. Com a partida do marido e a filharada para criar, a ex-mulher e filha de taxista precisava se virar. Fechou o mercadinho por medo de assaltos e decidiu encarar o volante. “Já tinha carteira de habilitação e o ‘carteirão’ (documento de identificação obrigatório para motoristas de táxi, afixado no painel), já tinha o táxi. Por que não experimentar?”

Nos dois primeiros dias, contou com a paciência dos fregueses, já que só conhecia a Zona Sul e adjacências. “Mas virei craque nos mapas, sou capaz de abrir imediatamente na página de um bairro, uma rua”, gaba-se. No terceiro dia, não teve a mesma sorte. “Um cliente entrou no táxi e pediu pela rua Ijuí (Zona Leste da capital gaúcha). Avisei que não sabia onde ficava e ele ficou furioso, disse que era um absurdo um motorista de táxi não conhecer todas as ruas”, conta. “Na hora, consegui manter a pose. Mas cheguei em casa e desabei, chorei, não queria mais dirigir”, lembra. Foi a filha mais velha que a chamou à realidade: “Mãe, tu nunca desististe de nada, vai ficar com medo agora? Levanta e trabalha”. E assim foi e continua sendo, cinco vezes por semana, das 5h às 15h40. Até 16h, o carro já está nas mãos do funcionário que guia o veículo no turno da tarde.

A estreia – e os três anos de carreira – de Andréia se deram logo no mais movimentado ponto fixo de táxis da cidade, a Estação Rodoviária de Porto Alegre. Na bagunça organizada, são 358 carros autorizados e 940 motoristas – entre cada turno e folguistas. Visto de cima, é um verdadeiro formigueiro cor-de-laranja, três fileiras de veículos que se entrelaçam em frente à rodoviária. Difícil coibir a malandragem. A maior delas é a piçada, assim mesmo, uma corruptela usada para designar o ato de furar a fila. Com o tempo, a taxista Andréia foi ganhando o respeito dos homens que dominam a rodoviária. Tanto que virou uma espécie de xerife, para exigir o cumprimento de regras. “Há infrações que podem ser punidas com a expulsão do ponto”, alerta a “coordenadora de ética”, que se gaba de só ter registrado três infrações de trânsito que viraram multa em três anos.

Mesmo com a responsabilidade e a dura vida no trânsito, a motorista não perdeu nem doçura nem vaidade. Está sempre distribuindo sorrisos – seja no evento que reúne as motoristas, seja quando, após uma hora na fila, pega uma corridinha curta. Andréia gosta de combinar. Batom, unha e blusa estavam roxos no encontro das taxistas, e roxos de novo na manhã chuvosa de trabalho. Dentro do carro, a cor é vermelha: tapetes que combinam com o painel e com o luminoso do cd player. Nas caixas de som, rola de tudo um pouco.

Nos últimos tempos, o campeão de audiência é um CD da banda de forró Calcinha Preta, que ela conheceu nas andanças como taxista. “Fiz uma corrida para Charqueadas e parei em um posto de gasolina para esperar a chuva passar. Lá estava o ônibus da banda. Entrei para olhar e acabei ganhando o CD”, comemora. Estas histórias é que a realizam. “Dirijo táxi com prazer. Não foi o que sonhei para a vida, mas hoje acho ótimo, dirigir me desestressa e posso conhecer gente nova, até celebridades. O André Marques (apresentador do Video Show, da TV Globo) já andou aqui atrás, sabia?”

6/12/2009

Fonte: ViaPolítica/A autora Link abrirá em uma nova janela ou aba.

A jornalista e videomaker Clarissa Barreto, que assina esta produção exclusiva para ViaPolítica, dirige a Cartola – Agência de Conteúdo, em Porto Alegre.E-mail: contato@cartolaconteudo.com.br O vídeo e a reportagem “Mulher no volante” podem ser livremente reproduzidos, na condição de que seja respeitada sua integridade e citados o autor e as fontes. Da série Brasil Anônimo, produções exclusivas para Via Política e a VPTV, veja e leia também as reportagens e vídeos:

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