Deficiências e deficientizações desencadeadas a partir da AIDS

Fita vermelha, símbolo da AIDSPor Sonia B. Hoffmann
Fisioterapeuta CREFITO 6159 F
Doutora em Ciências do Desporto e Educação Física

A epidemia da Aids, já considerada uma doença crônica, representa grande desafio para todos que com ela (con)vivem e para os governos das diversas nações. Desde seu surgimento, tem ocorrido profundas alterações quanto à elaboração de políticas de saúde pública e coletiva, ao seu tratamento e ao preconceito que ainda a envolve – apesar da quantidade de esclarecimentos.

Estas mudanças propiciaram a organização de novas e diferentes expectativas e perspectivas de vida na pessoa vivendo com AIDS, permanecendo, no entanto, a singularidade de cada condição e a individualidade de cada pessoa para administrar o estresse emocional, os efeitos das doenças oportunistas e as reações adversas ou resistência à medicação por múltiplos fatores. Em decorrência, muitos trabalhadores infectados permaneceram em sua atividade profissional; outros, ingressaram no mercado informal de trabalho e muitos não apresentam condição de cumprirem os compromissos e responsabilidades de uma atividade laboral em função da sobrecarga emocional, dos contínuos ou intermitentes paraefeitos da doença ou do tratamento. Porém, todos, de alguma forma, lutam isolada ou coletivamente pelo respeito aos direitos humanos.

No entanto, se novas abordagens e enfrentamentos a esta síndrome foram descobertos, novos desafios igualmente surgiram no dia a dia dos profissionais da saúde e, especialmente, na vida das pessoas infectadas pelo HIV. A adesão medicamentosa e ao tratamento em sua globalidade é o marco inicial de todo o processo de mudança da saúde fisiológica, psíquica e social da pessoa com AIDS, mas muitas delas não conseguem por motivos variados internalizarem esta conduta. A preocupação, a incerteza e a insegurança constantes com o surgimento de doenças oportunistas, hospitalizações, reações negativas ao tratamento e com a ocorrência de sequelas que limitem suas possibilidades e a aceitação pelos outros
são fantasmas rondando frequentemente seus pensamentos.

A falência da resposta afirmativa a e estes desafios provoca a deficientização, ou seja, a aparição de deficiências motoras, sensoriais, psíquicas e-ou mentais ao quadro #sindrômico vivenciado pela pessoa, individualizando-a e particularizando-a ainda mais. Deste modo, uma pessoa com AIDS e deficiência não pode ser considerada e tratada meramente como se tivesse somatórios de patologias, mas como alguém que apresenta um quadro específico, com características próprias e necessita de abordagens, atenção e acolhimento diferenciados.

O HIV afeta diretamente diferentes tipos de células do Sistema Nervoso Central e do sistema imunológico (linfócitos T4 e outros monócitos). A destruição destas células, em maior ou menor grau, e a perda da sua funcionalidade explica e esclarece sobre a maior parte das manifestações clínicas da enfermidade. O comprometimento dos linfócitos T4 produz severa imunossupreção, favorecendo a ocorrência de infecções oportunistas e de neoplasias.

O aumento progressivo das manifestações oftalmológicas, no globo ocular ou em seus anexos, evidencia-se como uma das deficiências sensoriais de grande relevância. A microangiopatia retiniana, a retinite por Citomegalovírus e a síndrome do olho seco são as causas mais frequentes de deficiência visual associada a AIDS. Mas seja a alteração ocular que for, o diagnóstico de uma patologia visual na pessoa com AIDS pode ter efeito devastador e paralisante, danificando sua saúde mental, seu ajuste psicossocial, sua autonomia e independência pessoal, sua inclusão na sociedade e suas expectativas ou planejamento de futuro. Com isto, não raro ela anula-se ou apresenta grande dificuldade para a possível adaptação a sua nova condição, à adesão aos tratamentos ou ao seu desejo ou vontade de seguir vivendo.

As lesões neurológicas constituem outras possíveis e severas alterações presentes com a AIDS, manifestando-se a qualquer tempo, pois o HIV é um vírus neurotropo, ou seja, localiza-se preferencialmente no sistema nervoso após o início da infecção. Consequentemente, existe a possibilidade de aparecer comprometimentos e deficiências motoras e-ou cognitivas debilitantes. Com o avanço da enfermidade e a agudização da síndrome, o complexo demência-AIDS se intensifica, conjugando-se os prejuízos motores, cognitivos e comportamentais.

Outras manifestações clínicas, de caráter neurológico, que frequentemente surgem com a AIDS são as encefalites por Toxoplasma, Linfoma Cerebral Primário e Leucoencefalopatia Multifocal Progressiva, assim como os acidentes Cerebrovasculares (AVCs ou AVEs). Geralmente, os sintomas ou efeitos das lesões neurológicas evidenciam-se através da alteração do processo de memória, da dificuldade de concentração, da lentidão do pensamento ou raciocínio e dos distúrbios da linguagem. Os tremores, lentidão, ligeira perda de coordenação e debilidade nos membros inferiores, da mesma forma que a apatia, o isolamento, a sonolência e as mudanças bruscas de humor convertem-se em sinalizações de danos a serem tratados e administrados.

O preconceito e as reações sociais e culturais do outro são os fatores principais que agravam o processo de adaptação à AIDS e vulnerabilizam mais acentuadamente quem a apresenta, pois a sociedade ainda atribui um significado bastante estigmatizante a esta síndrome e principalmente a quem com ela (con)vive. Com o tempo e os constantes enfrentamentos emocionais, surge um cansaço ou estresse crônico a tal ponto que as reações às adversidades normais ou forjadas socialmente podem não acontecerem com o mesmo ímpeto, coragem e ânimo. Assim, gradativamente, algumas pessoas passam do desconforto emocional para o isolamento, para a marginalização e os recursos pessoais internos e terapêuticos tornam-se escassos para a sua restauração e apropriação como ser humano.

Infelizmente, nem sempre o outro considera este processo de deficientização como mais um importante movimento da AIDS e como uma severa manifestação não somente de doenças oportunistas, mas do preconceito e do uso contínuo e de efeitos adversos da própria medicação específica ou dos antirretrovirais. Muitos não se dão conta da complexidade desta síndrome, do seu caráter estressor, da sua natureza crônica, das incertezas que se iniciam desde o seu diagnóstico, do estigma que acompanha a pessoa pela vida e das profundas e severas limitações motoras, sensoriais, emocionais e mentais possíveis de se estabelecerem. Informações sobre a AIDS temos suficientemente circulando pela mídia, nas escolas, nas campanhas e pelos diversos espaços por onde alguém se encontra. No entanto, a qualidade das abordagens, das estratégias de atenção e acolhimento, da sobrecarga de sentimentos e de posturas parecem constituir os indicadores mais graves para que muitos ainda não preocupem-se em usar o preservativo, em compartilharem objetos perfurocortantes… enfim, de não prevenirem-se “porque já existe o coquetel”.

Alertem-se, seres mortais. Leiam e reflitam mais sobre a AIDS, sobre a deficiência e empoderem-se com estes conhecimentos e suas implicações no cotidiano de cada um e da rede social. Violência, acidentes, transtornos fisiológicos e tantas e tantas outras condições podem trazer a deficientização: inclusive a AIDS e o coquetel.

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Fonte: Diversidade em cena

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