Por Cláudio C. Monteiro Jr
-Meu vizinho é gay, vocês não vão prendê-lo ?
Este foi o teor de um telefonema (a voz era feminina) por mim recebido no então recém aberto Disque-AIDS[1]. Era o ano de 1984.
A associação aids/homossexualidade era tão direta quanto a certeza de um dia após o outro. Dias difíceis.
Se por um lado o recém florescente movimento gay brasileiro viu-se vulnerabilizado por uma doença que possuía o estranho tropismo por indivíduos com determinada orientação sexual historicamente estigmatizada, por outro, diversos setores da sociedade civil, ou simplesmente o (mau) senso comum, viu na AIDS a ratificação, divina ou natural, da condenação dos gays por seus pecados e desvios “contra a natureza”. Formadores de opinião não perderam tempo em expor o seu enfático “eu não disse? bem feito!” ostentando-o arrogantemente aos humilhados “pederastas” e “sodomitas”. Dom Eugênio Salles, então arcebispo do Rio de Janeiro assim o fez, como também o fez o Prof. Dr. Ricardo Veronezzi, Infectologista da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, ao defender a hipótese pela qual a imunodepressão devia-se ao acumulo de esperma no ânus, como se o sexo anal fosse prerrogativa dos gays, e não existisse desde que existe sexo.
A primeira reação da comunidade gay mediana frente à AIDS foi de descrédito e revolta. Dizia-se que tudo não passava de uma propaganda anti-gay (a palavra homofobia não estava ainda em voga), originada ou pelo Governo Reagan, ou pela TFP[2]. A isto se somava a refratariedade do empresariado “gay” (também a designação GLS não estava ainda em voga) ao tema AIDS, alicerçada no argumento de que falar em AIDS iria espantar a clientela.
Tal foi o esforço em se desomossexualizar a AIDS, por parte dos gays, que em determinada reunião do GAPA[3], discutiu-se a conveniência ou não, de rapazes que usassem brincos, falarem publicamente em nome da entidade. E isto quando a totalidade dos membros do GAPA eram oriundos do movimento gay, ou no mínimo, gays “assumidos”.
Se os gays viram-se como vítimas, a sociedade os via como culpados. E naturalmente, houve um trauma brutal no processo de fortalecimento dos gays enquanto segmento social atuante, na busca de seus direitos fundamentais, associado a um fortalecimento também brutal da homofobia, que não teve prurido algum em fazer-se pública, como no caso do radialista Afanásio Jazadi que aconselhava seus ouvintes a não tomarem cafezinho na região do Arouche[4], ou a não usarem mesmo elevador que um gay. E isto, quando há menos de dois anos, a repressão indiscriminada aos gays integrava o conjunto de medidas moralizantes propostas pelo então Secretário da Segurança Pública de São Paulo, o famigerado Erasmo Dias.
Tal panorama se fez extremamente propício não só a disseminação da AIDS como retardou, ou antes, intimidou o desenvolvimento de ações preventivas. Desenvolver uma cultura preventiva gay foi ainda mais difícil, pois o único insumo de prevenção disponível era (como ainda o é, embora não o único) o preservativo masculino, tradicionalmente um contraceptivo. Como associá-lo a um exercício de sexualidade que nunca exigiu ações de planejamento reprodutivo? Como resultado de tal cenário labiríntico, o número de casos de AIDS entre homossexuais masculinos no estado de São Paulo, passou de 1 (em 1981) para 865 em 1989[5], ano em que a incidência de AIDS entre os Usuários de Drogas Injetáveis superou a verificada entre os gays.
Associada a exacerbante expansão da epidemia em nosso meio, verificou-se também uma profunda mudança no perfil sócio epidemiológico, num espaço de tempo pouco superior a vinte e cinco anos. A análise das taxas de incidência evidencia a presença de três momentos (ainda que sobrepostos) da epidemia: do início ao fim da década de 1980 predomínio de casos novos entre homens que fazem sexo com homens (HSH)[6]. Do início a meados da década de 1990, explosão da epidemia entre os Usuários de Drogas Injetáveis (UDI). E, a partir do início deste século, as relações heterossexuais configuram-se enquanto a principal forma de disseminação. Enquanto as curvas de tendências epidemiológicas anteriores (HSH e UDI) ascendem, atingem seus ápices e declinam (o número de casos novos entre UDI atualmente, pouco impacta a epidemia), a curva dos heterossexuais (presente como as outras, desde os anos 80), encontra-se em constante e permanente ascensão.
Porém o exame cuidadoso destes mesmos indicadores epidemiológicos evidencia o crescimento do número de casos novos de AIDS entre os HSH notadamente a partir de 2002, o que nos leva a pensar e a considerar (apesar do neologismo inadequado) que estamos em pleno processo de “reomossexualização” da epidemia. A visibilidade de tal fenômeno é tal que os órgãos governamentais responsáveis pelo enfrentamento ao HIV o admitem, e propõem ações de enfrentamento.
E, quais os fatores que levam a isto? Por que a epidemia volta a crescer entre os gays, 30 anos depois?
O que estava sendo empiricamente observado, pelo movimento de gays jovens nos serviços de HIV/AIDS teve sua confirmativa no Relatório da Seção Especial da Assembléia Geral das Nações Unidas (UNGASS), Biênio 2008/2009, sobre a resposta do governo brasileiro à epidemia de HIV/AIDS:
Observa-se uma tendência de estabilização na proporção de casos de AIDS entre HSH a partir do ano 2000. No entanto, na faixa de 13 a 24 anos, verifica-se aumento na proporção de casos de aids nesse grupo populacional que passou de 35% em 2000 para 42,7 em 2008.
Ou seja, estamos falando, em primeiro lugar de novas gerações de gays. Gays que nasceram quando a epidemia já estava banalizada em nosso meio. Banalizada e invizibilizada, pois passara de doença de Vips a doença de pobres. E os pobres só estão na mídia convertidos e desumanizados em números, por ocasiões de catástrofes e tragédias coletivas. Gays que não tiveram amigos próximos ou companheiros dizimados pela AIDS. Gays que vivem 30 anos depois.
Outro fator está na banalização do risco, associado ao falso senso comum pelo qual “AIDS agora tem remédio, se pegar se trata”, quando a realidade é bem outra: não só o HIV ainda é a maior causa de morte entre adultos jovens no mundo, como o fato de ser portador do HIV coloca o individuo em posição de vulnerabilidade ampliada para óbitos de várias naturezas, como cardiopatias e neoplasias. Isto sem mencionarmos os efeitos adversos provocados por determinados medicamentos componentes da Terapia Antirretroviral, o popular coquetel, como as lipodistrofias e osteonecroses. Contra tal postura, há ainda o argumento infalível (ainda que monetarizante) da relação custo benefício: a política de acesso universal aos antirretrovirais (louvável conquista de todos nós) impõem aos cofres públicos um custo não inferior a R$1.500,00 ao mês por usuário, ao passo que o preservativo masculino é baratíssimo (mesmo para os cofres públicos).
Se formos circunscrever a situação apontada pelo Relatório UNGASS quanto ao crescimento da epidemia entre os gays jovens numa ótica mais ampla, cujo foco seja não a orientação sexual, mas a faixa etária, (13 a 24 anos, período que inclui a adolescência), veremos que nesta situação incluem-se também as mulheres, já que, neste período, a incidência é três vezes maior entre moças do que entre rapazes, sendo a faixa etária de maior feminização da epidemia. Há ai, portanto, um primeiro desafio: o fortalecimento das ações de prevenção para adolescentes através de ações que incluam o educar para a diversidade e a quebra de paradigmas heteronormativos,
Na contramão da penosa construção de uma cultura preventiva gay surgem dois tenebrosos zumbis: Bare Backing e Sperm Cult, ou seja, a adesão espontânea, de comum acordo e consciente ao sexo anal sem preservativo; e a crença pela qual o orgasmo só se completa quando há contato íntimo (em que pese a amplitude do termo “íntimo”) com o esperma do(s) parceiro(s). E como zumbis eficientes, estes assombram não somente os dark rooms das saunas e boites, os sex clubs, banheiros e cinemas pornôs, mas também os leitos de vários casais gays respeitáveis e “descentes”. E o terreno é extremante fértil a ambas aparições, pois o mercado sexográfico gay encontra-se sempre em expansão e diversificação, vindo a, obviamente, expandir o número de clientes.
Voltando-se o foco de nossa análise para a atual política de financiamento das ações de prevenção, pautada na premissa municipalista do Sistema Único de Saúde, esta prevê o repasse, do Fundo Nacional aos Fundos Estaduais e Municipais de Saúde (26 Estados e 456 Municípios, dos quais 145 no Estado de São Paulo[7]) do total de R$ 125,7 milhões ao ano, exclusivamente destinados ao enfrentamento às DST/AIDS. Ainda que tal repasse obedeça a regras muito bem definidas, condicionadas à pactuação de metas a serem alcançadas, não há garantia nenhuma de que o recurso recebido seja destinado ao fim pactuado. E, ainda que o sistema de financiamento preveja ações de monitoramento da utilização dos recursos financeiros[8], tais dispositivos raramente são observados.
A fragilidade do sistema de financiamento quanto à real execução das metas pactuadas tem sido alvo de produções acadêmicas[9], que demonstram o quanto o descumprimento das metas vem impactando negativamente os indicadores de saúde de determinados estados e municípios, assim como tem se refletido nos indicadores epidemiológicos. Claro que tais fatores comprometem sobremaneira execução das políticas de contenção do HIV, incluindo as voltadas ao público LGBT.
A nos pautarmos pela proposição foucaultiana que nos permite lançar sobre nossa história pregressa, não um olhar linear, mas em espiral, veremos que ainda que reomossexualizada, a epidemia de AIDS é outra assim como nosso momento é outro.
E neste outro momento histórico cumpre-nos resignificar relações historicamente desiguais quanto ao empoderamento de situações, cabendo à comunidade gay tomar a vanguarda na definição das políticas prevenção e protagonizá-las, para que estas não lhe sejam, eufemisticamente, ofertadas.
Neste caso, aprender com o passado é agir. E agir de modo incisivo. Se a timidez das ações desenvolvidas no início dos anos 80 resultou na explosão da epidemia, neste outro momento histórico, ações de intervenção que antes eram capitaneadas por poucos e estóicos ativistas, passam hoje a integrar a ampla relação dos problemas contemporâneos cujo enfrentamento implica em um amplo sentido de corresponsabilidade civil e governamental.
Basta-nos tão somente a ousadia.
A ousadia de tirar a tímida camisinha do “armário”[10] e colocá-la, assumidamente, no dark room.
Cláudio C. Monteiro Jr é bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo e mestre em Infectologia em Saúde Pública pelo Instituto de Infectologia em Emílio Ribas. Atua desde 1985 no enfrentamento ao HIV, em organizações governamentais e não governamentais, sendo membro da Pastoral da AIDS, CNBB.
Tecla SAP:
[1] Serviço de informações sobre AIDS por telefone, o primeiro do país, disponibilizado pela Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo em 1983.
[2] Tradição, Família e Propriedade. Organização Católica ultra conservadora, apoiadora da Ditadura Militar
[3] Grupo de Apoio a Prevenção da AIDS. A primeira organização não governamental de enfrentamento a AIDS do Brasil, fundada em São Paulo, em 1985.
[4] Largo localizado na região central de São Paulo, conhecido pela presença da comunidade gay.
[5] Fonte: Programa Estadual de DST e AIDS de São Paulo
[6] Optamos por, neste caso, usar a categorização epidemiológica geral que envolve nãos somente gays, bissexuais, travestis e transsexuais, como também a pratica eventual da homossexualidade em homens privados de liberdade ou constrictos.
[7] Sobre a Instituição da Política de Financiamento : Portaria Ministério da Saúde nº 2313/02 e 2314/02
[8] Sobre o Monitoramento dos Recursos Financeiros : Portaria Ministério da Saúde nº 1.679/04.
[9] Citaremos, entre outras, as dissertações de mestrado de Silva, FL e Taglieta, M., além de nossa própria dissertação.
[10] Em algumas saunas gay, os clientes encontram preservativos nos armários guarda-roupas.
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Fonte: Carga Viral