A socióloga Maria Angélica Fernandes não apenas defende a ampliação da licença paternidade mas também questiona o papel designado como único e exclusivo das mulheres em relação ao cuidado com os filhos. “Quando discutimos a questão do compartilhamento das responsabilidades, damos outros sinais e outras mensagens à sociedade no intuito de mudarmos essa ideia de que as responsáveis pelo cuidado para com os filhos são apenas as mulheres. O problema está, portanto, na construção social do que é ser mulher e do que é ser homem hoje”, responde ela durante a entrevista que concedeu à IHU On-Line, por telefone.
Maria Angélica Fernandes é subsecretária de Articulação Institucional e Ações Temáticas da Secretaria de Políticas para as Mulheres. É mestre e doutoranda em Ciências Sociais pela PUC-SP.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como a senhora avalia a Lei de Licença-maternidade atual?
Maria Angélica Fernandes – Nós temos duas leis: a de 120 dias e a de 180 dias. Elas permitem que a mãe tenha mais tempo para ficar com as crianças. Existe um debate que questiona se esse direito naturaliza/institucionaliza a responsabilidade da mulher pela criação das crianças. Seis meses é um tempo razoável de licença, mas ainda assim precisamos começar a discutir a ampliação da licença paternidade.
IHU On-Line – Que condições não tornaram possível a licença ampliada a todas as gestantes que trabalham no setor privado?
Maria Angélica Fernandes – Para que todas as mulheres tenham acesso a essa licença ampliada seria necessária uma mudança na Constituição, ou seja, seria preciso criar uma Proposta de Emenda à Constituição. No entanto, os empregadores resistem a essa ideia e discutem o quanto custa o posto de trabalho para uma mulher em comparação ao posto dos homens.
Esse debate é interessante porque ele aponta que, quanto mais direito as mulheres têm, mas isso gera custos adicionais. No entanto, quem paga a licença maternidade é o nosso Sistema Nacional de Seguridade. Os empregadores, por outro lado, dizem que isto aumenta o custo na medida em que você precisa treinar alguém para colocar no lugar.
Esse tema gera um debate importante sobre qual é o papel que a mulher ocupa no mercado de trabalho. Entra nessa discussão, além da licença maternidade, também a questão do direito à creche e a outros tantos benefícios que a mulher, como trabalhadora, tem de direito. Embora estes não tenham sido implementados ainda.
IHU On-Line – A senhora é a favor da ampliação da licença-paternidade? Como esse plano poderia ser implementado?
Maria Angélica Fernandes – Sim. Sou a favor da licença paternidade. Mas creio que o Brasil precisa evoluir, assim como outros países fizeram com a assim chamada licença parental. Esta licença faz com que a responsabilidade do cuidado seja igual para homens e para mulheres. Essa ideia precisa ser discutida. Infelizmente, não é algo que está na ordem do dia.
IHU On-Line – Os homens também querem se envolver mais com os cuidados dos filhos, independentemente da classe social?
Maria Angélica Fernandes – Há uma mudança na sociedade em relação a isso, mas não é ainda uma mudança que caminha a passos largos. Mas hoje há mais maridos, mais homens, mais pais, tomando conta e cuidando dos filhos. Isso pode ser devido ao fato de que as mulheres estão no mercado de trabalho e que, portanto, estão mais fora de casa.
IHU On-Line – Qual a importância da presença paterna nos primeiros meses de vida? Ela é tão importante quanto à presença da mãe?
Maria Angélica Fernandes – Pensando do ponto de vista biológico, qual o papel que a mãe tem nos primeiros dias de vida? É ela que amamenta. Por isso, precisa estar junto, porque tem um problema real e uma relação concreta. Exceto essa questão da alimentação, os demais cuidados podem ser feitos todos pela mãe ou pelo pai.
Os primeiros momentos após o nascimento da criança são duríssimos. Existem mil problemas, como descobrir a forma de fazer o cuidado e isso precisa ser dividido, compartilhado. Nós, mulheres, de alguma forma, fomos treinadas para fazer esse cuidado e ouvimos o discurso de que o homem não precisa participar porque não sabe lidar com esse momento. A questão real é que nós mulheres somos criadas para cuidar das crianças, nós ganhamos bonecas, brincamos de casinha.
Quando discutimos a questão do compartilhamento das responsabilidades, damos outros sinais e outras mensagens à sociedade no intuito de mudarmos essa ideia de que as responsáveis pelo cuidado para com os filhos são apenas as mulheres. O problema está, portanto, na construção social do que é ser mulher e do que é ser homem hoje.
IHU On-Line – Os homens ainda recusam ou duvidam da própria competência para o exercício da paternidade?
Maria Angélica Fernandes – O ser mulher e o ser homem é uma construção social bastante consolidada na cabeça das pessoas. Há muito é dado que a responsabilidade pelo cuidado dos filhos é feminina. Mesmo quando a mãe não está presente, o cuidado é delegado a uma mulher que pode ser a avó, a tia… Está embutida na construção de papéis sociais uma série de questões que a mulher é responsável pela reprodução social da vida e pela esfera privada. Quanto ao homem, delegam a responsabilidade da esfera pública.
Existem culturas onde não são só as mulheres as responsáveis pelo cuidado com os filhos. Quando se designa o papel social de cada um, de alguma forma vamos colocando os limites e os avanços. Por isso, não é que o homem duvide ou resista a essa função do cuidado. O caso é que culturalmente ele foi colocado num papel de resistir e de entender que não é capaz a cumprir essa função.
IHU On-Line – Que diferenças a licença-paternidade pode trazer à vida da mulher?
Maria Angélica Fernandes – Reduzir as tarefas relacionadas a cuidados com o recém-nascido. Quando o homem também cuidar dos filhos, quando estiver presente, a mulher trabalhará menos. Isso é um avanço e permite desnaturalizar esse processo do cuidado. Isso é uma contracultura. Existe um estudo que mostra que as mulheres gastam quase o dobro de horas dentro da casa em relação aos homens. A ampliação da licença paternidade significará mais tempo para que as mulheres façam outras coisas, e não apenas cuidar das crianças e da própria casa.
Assim como tivemos, na década de 1990, uma entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho, embora elas não tenham sido desoneradas do trabalho doméstico, temos que lutar hoje pela igualdade de responsabilidade em relação aos filhos. O Estado precisa ter um papel nessa desconstrução, na medida em que produz políticas públicas para que as mulheres possam sair do seu papel de subordinação. Discutir a licença maternidade é parte desse contexto. Isto porque, quando a mãe precisa voltar ao trabalho, normalmente é uma outra mulher que vai ficar com a criança. É preciso, além de ampliar as licenças, criar equipamentos para poder fazer com que a sociedade se responsabilize por essa criança também.
Fonte: Instituto Humanitas