Humanos e pós-humanos: os novos desafios da bioética

Rapaz com braço biônico e segurando copo na outra mão.
Rapaz com braço biônico e segurando copo na outra mão.

Afirmando o direito à modificação do corpo, põe-se a questão da igualdade. Reconhecida a legitimidade de uma construção artificial, todos devem ter acesso a ela em condições de paridade, sob a pena do nascimento de uma sociedade de castas.

A análise é de Stefano Rodotà, professor de direito civil da Universidade de Roma La Sapienza e ex-deputado do Parlamento italiano. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 11-06-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

A espécie humana, única, se encaminha para ser substituída por uma multiplicidade de espécies, com uma passagem do singular ao plural que se tornou inevitável por um conhecimento que nos aproxima sempre mais do pós-humano?

Entrando nesse mundo novo, mais do que a referência habitual à utopia negativa de Aldous Huxley, vale a recordação daquilo que Günther Anders escrevia, perguntando-se ainda em 1956 se o homem era antiquado: “Como um pioneiro, o homem desloca as suas fronteiras sempre mais para lá, se afasta sempre mais de si mesmo; se ‘transcende’ sempre mais – e mesmo que não voe para uma região sobrenatural, no entanto, assim que cruza os limites congênitos da sua natureza, passa para uma esfera que não é mais natural, no reino do híbrido e do artificial”.

Palavras nas quais se pode captar o eco das Magnalia naturae, descritas em 1627 por Francis Bacon no apêndice à Nova Atlântida: “prolongar a vida; retardar o envelhecimento; curar as doenças consideradas incuráveis; aliviar a dor; transformar o temperamento, a estatura, as características físicas; reforçar e exaltar as capacidades intelectuais; transformar um corpo em outro; fabricar novas espécies; efetuar transplantes de uma espécie à outra; criar novos alimentos recorrendo a substâncias não usadas hoje”.

Distantes no tempo, essas duas posições refletem modos muito diferentes de olhar para o “transcender-se” da pessoa, com uma passagem do olhar otimista lançada sobre o futuro por Bacon a uma reflexão sobre a qual incumbe a bomba atômica, que marca dramaticamente a saída da guerra, mas hipoteca de modo também dramático o futuro. Hoje, realisticamente, o destino do gênero humano aparece confiado a ciência e técnica, que o imergem na história, o libertam progressivamente do acaso e da necessidade, até se despedir da natureza.

Diante da radicalidade dessa passagem da descontinuidade que ela descreve, a ética volta prepotentemente a campo, a política se divide, o direito de interroga sobre o seu papel. Palavras novas nos acompanham – biopolítica, a bioética, biodireito. E, com elas, a humanidade parece querer “sair de si mesma”, no sentido pelo menos de se desvincular da pura lógica darwiniana, confiando-se a uma evolução totalmente relacionada a uma técnica diretamente governada pelas pessoas.

Ao redor do corpo de cada um, adensam-se as possibilidades incessantemente oferecidas pela biologia e pela genética, pela inovação informática, pelas neurociências, pelas nanotecnologias. O corpo está prestes a se transformar justamente em uma “nano-bio-info-neuro-máquina”, última versão daquele “homme machine” do qual La Mettrie e D’Holbach falavam no século XVIII?

Corpo, campo de batalha

O corpo, portanto, o lugar por definição do humano, nos aparece como o objeto onde se manifesta e se completa uma transição que, de um lado, parece querer desapossar a pessoa do seu território, justamente da corporeidade, fazendo-o “reclinar” ao virtual; e, de outro, modifica suas características de forma que, não de hoje, faz falar de pós-humano e de trans-humano (termo este cuja introdução é atribuída a um escrito de Julian Huxley, em 1927).

O corpo nos aparece, assim, como um campo de batalha planetário, onde se enfrentam bioconservadores e trans-humanistas. Tenazmente comprometidos, os primeiros, a restaurar os direitos da natureza. Guardiães, os outros, de uma nova liberdade, a de justamente usar sem limites o novo poder de que estamos investidos.

Mas essa polarização não dá nenhuma indicação verdadeira sobre como governar a fase inteiramente nova na qual a humanidade já entrou. É ilusão pensar que o direito, com suas regras artificiais, possa reconstituir as situações naturais profundamente modificadas pela ciência. E a ilimitada abertura à utilização de qualquer nova oportunidade parece, ao contrário, confirmar a tese de quem vê na técnica o único poder do nosso tempo, ao qual seria inútil tentar pôr obstáculos.

Mas a realidade não pode ser encerrada em contraposições abstratas; exige distinções para captar as verdadeiras questões. Em 2008, Oscar Pistorius, um corredor sul-africano, privado da parte inferior das pernas, substituída com implantes de fibra de carbono, teve reconhecido o direito de participar das Olimpíadas. Assim, não cai apenas a barreira entre “normodotados” e portadores de próteses. Prospecta-se uma nova noção de normalidade, que não é mais apenas a naturalmente determinada, mas sim a artificialmente construída.

Inspirando-se nesse episódio, outra atleta paraolímpica, Aimée Mullins, afirmou que “modificar o próprio corpo com a tecnologia não é uma vantagem, mas sim um direito. Tanto para quem faz esporte em nível profissional, quanto para o homem comum”.

Ao afirmar, no entanto, o direito de toda pessoa à modificação tecnológica no corpo, põe-se imediatamente a questão da igualdade. Como estamos na presença de extraordinárias possibilidades de melhorar o desempenho físico e intelectual, uma vez reconhecida a legitimidade de uma construção artificial específica, todos devem pode ter acesso a ela em igualdade de condições, sob a pena do nascimento de uma sociedade de castas, na qual só quem dispõe de recursos adequados pode obter vantagem da tecnologia. Mas devemos ir além do próprio princípio inevitável da igualdade. Uma diferenciação das espécies entre humanos e pós-ou trans-humanos faz com que nasça imediatamente o problema de duas legitimações diferentes, de um duplo padrão, de duas qualidades diferentes do humano.

Guerra entre humanos e trans-humanos

Aqui o conflito entre pessoas geneticamente programadas e pessoas com uma patrimônio genético natural – do qual o filme Gattaca, de Andrew Niccol, falou – se transformaria em uma concreta e generalizada “guerra entre humanos e trans-humanos”. Enquanto, de fato, as diferenças entre as pessoas determinadas pela sua natureza levavam a uma aceitação social sua e ao nascimento daquela solidariedade entre os favorecidos e os desfavorecidos da qual Etienne de la Boétie nos falou no seu Discours de la servitude volontarie, a diversificação tecnológica se inverte na percepção individual e social de uma exclusão, portanto, na raiz de um conflito, que só pode ser evitado reconhecendo a todos uma igual dignidade. A dignidade do corpo e no corpo é o outro problema grande e inevitável, que encontramos nas palavras que abrem a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia: “A dignidade humana é inviolável”. A pessoa, portanto, inseparável da sua dignidade.

Mas de qual pessoa, de qual corpo estamos falando? Quando se afirma que o direito de recorrer às tecnologias refere-se às decisões relativas a si mesmo e à própria descendência, equiparam-se situações profundamente diferentes entre si. A autodeterminação, ligada ou não ao uso da técnica, deve receber o máximo reconhecimento quando os efeitos das decisões da pessoa se produzem na esfera do interessado. Não é assim, ao contrário, quando se quer construir corpo e vida de outros, violando a sua “liberdade existencial”, protegida pelo seu consentimento, que, portanto, não pode ser substituído pela vontade de outros, sujeitos privados ou poderes públicos.

As imagens do corpo se multiplicam. Mostram-no modificado tecnicamente para “reparar” seus defeitos ou “melhorar” seu desempenho; descrevem-no através das construções das relações entre cérebro e computador. As fronteiras se deslocam para formas de integração entre pessoa e máquina, e nascem interrogações novas e mais radicais. Um sistema biônico híbrido é uma pessoa que pode ser considerada como titular de direitos e deveres? Os componentes humanos de um sistema biônico híbrido são a mesma pessoa antes e depois de se tornarem a interface de componentes artificiais?

Perguntas novas, mas que remetem a temas antigos, ao navio de Teseu, a partir do qual se perguntava se a sua identidade original persistiria mesmo depois que, gradualmente, todas as suas peças fossem alteradas.

Fonte: Instituto Humanitas

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *