Por Navi Pillay
Alta comissária das Nações Unidas para os direitos humanos
Vemos a intolerância emergir em novas formas, como o tráfico humano; o estigma sobre os refugiados é cada vez maior, e a xenofobia ascende
Na cidade americana de Jackson, em junho, adolescentes brancos espancaram, atropelaram e mataram um negro de 49 anos. A razão para tamanha brutalidade? De acordo com os promotores, o grupo estava em missão para “encontrar e ferir uma pessoa negra”. Câmeras registraram o incidente assustador.
Esse é apenas um dos muitos casos de violência racista cometidos diariamente. Apesar de décadas de luta, dos esforços de diversos grupos e nações e da evidência do terrível custo do racismo, ele persiste. Nenhuma sociedade está imune.
Nesta quinta-feira, líderes mundiais terão a oportunidade de estimular o combate ao racismo ao comemorar o décimo aniversário da adoção da Declaração e Programa de Ação de Durban (DDPA), aprovada por consenso na Conferência Mundial Contra o Racismo, em 2001. Os Estados-membros concordaram em combater a xenofobia, a discriminação contra imigrantes, povos indígenas, ciganos e afrodescendentes, além daquela baseada na ascendência.
Em 2009, os países reavaliaram o caminho estabelecido pela DDPA, revigoraram e expandiram suas promessas em um documento que fortalecia a agenda antirracismo e reafirmaram a necessidade de situar a discussão dentro do contexto da lei internacional dos direitos humanos.
Em muitos países, o quadro e o processo estabelecidos pela DDPA têm sido fundamentais para a melhoria das condições de muitos grupos vulneráveis. Mas a implementação dos compromissos ainda é irregular e insatisfatória.
Hoje, vemos a intolerância emergindo em novas formas, como o tráfico humano. Refugiados, solicitantes de asilo, trabalhadores migrantes e imigrantes sem documento são cada vez mais estigmatizados, quando não criminalizados. A xenofobia está em ascensão.
Em sua pior faceta, a manipulação da diversidade tem alimentado conflitos armados, bem como o surgimento de enfrentamentos comunais violentos.
Na condição de ex-juíza e presidente do Tribunal Penal Internacional para Ruanda, vi como comunidades podem ser aniquiladas pelo ódio. Mas também me deparei com magníficos atos de bravura.
Um episódio está profundamente gravado em minha memória. Ele ocorreu no noroeste de Ruanda, quando hutus atacaram uma escola e ordenaram aos alunos que se separassem em grupos de etnia hutu e tutsi. Os estudantes se recusaram a identificar sua etnia para não trair seus colegas. Dezessete meninas foram mortas como resultado de sua corajosa atitude.
Como podemos ser dignos dessas crianças? Acredito que precisamos trabalhar juntos para alcançar um ambiente de respeito e promoção da igualdade, da justiça e da não discriminação.
Esses imperativos estavam em minha mente quando fui a Yad Vashem durante minha passagem por Israel, em fevereiro. Essa visita ofereceu um lembrete poderoso de que o ódio racial, os crimes contra a humanidade e o genocídio nunca devem ser tolerados, e que o Holocausto nunca deve ser esquecido. A DDPA contém tal apelo. Ela exorta ao uso da memória do Holocausto como força transformadora e a colocar seu legado a serviço de um futuro livre do racismo.
Um mês depois, visitei a ilha Goree, no Senegal. Trata-se da infame “porta sem retorno” pela qual inúmeros africanos foram enviados acorrentados às Américas. A ONU dedica o presente ano à população afrodescendente, mas nunca poderemos fazer plena justiça aos milhões de vítimas do preconceito e da intolerância -e a seus descendentes, que ainda enfrentam o legado da discriminação. O que podemos é assegurar que seu sofrimento seja um apelo para enfrentar o sofrimento dos outros, hoje e no futuro.
Fonte: Afrobrás