Por Ana Nunes
Adoro tatuagens. Em uma de minhas andanças pelo mundo cibernético, descobri uma página maravilhosa dedicada a tatuagens em homenagem a pessoas com autismo. Fiquei olhando fascinada, como quem escolhe o novo corte de cabelo em uma revista. Separei minhas tatuagens favoritas. E resolvi fazer uma delas em homenagem à minha filha.
Mas eu vivo dentro da minha cabeça. E comecei a refletir sobre qual significado que uma tatuagem como esta poderia ter.
Várias minorias discutem o conceito de “passing”, passar – em português, seria melhor falar “passar por”. Quando sua condição minoritária não é visível a olho nu, há pessoas que optam por esconder sua real identidade, por “passar por” um membro do grupo hegemônico. O protagonista de “The Human Stain”, de Philip Roth, constitui um exemplo clássico: um mestiço que, por não aparentar sua negritude, passa por branco a vida inteira. No lindo filme “Yentl”, Barbra Streisand dá vida a uma judia ortodoxa que, para poder estudar, se traveste e passa por homem. Outro exemplo seria a pessoa que tenha uma deficiência capaz de ser escondida,que lhe permita passar por pessoa sem deficiência. Ou o homossexual que vive no armário, passando por heterossexual.
Vários artigos e estudos discutem o “passing” e suas implicações. “Passar por” um membro do grupo dominante pode ser uma estratégia de inserção, capaz de permitir escapar às barreiras impostas pelo preconceito. Pode ser uma medida do preconceito internalizado, que impede a (re)valorização de sua identidade e faz optar por sua negação. Vários estudos apontam o alto custo psicológico de negar sua própria identidade e viver fingindo ser o que não se é – o que se soma ao medo constante de ver desmascarado o personagem cuidadosamente encenado sobre o qual se construiu a vida.
Às vezes, em interações com outras pessoas, me sinto como se estivesse “passing”. Porque a identidade da minha filha autista se tornou profundamente minha identidade, é um fato que condiciona de maneira definitiva minha inserção no mundo. Hoje, o primeiro dado que eu utilizaria para me definir é: sou Ana, mãe de autista. Depois vêm minha profissão, minhas outras identidades. Quando interajo com pessoas que não me conhecem, e seguimos em conversas mundanas sobre assuntos amenos, me surpreendo pensando o quanto aquela pessoa não sabe sobre mim – e o quanto ela certamente presume que eu levo uma vida “normal”. Sinto como se estivesse “passing”, representando o personagem de mim mesma – um eu que não sou mais.
Daí a ideia de fazer a tatuagem para minha filha. Diferente de minhas outras tatuagens, todas em lugares discretos, fáceis de esconder com o vestuário ou o cabelo, esta eu queria muito visível. Para afirmar, loud and proud, que sou uma mãe de autista. Para reclamar e revalorizar esta identidade, como afirmou Marcelo Yuka sobre a tatuagem que fez em sua perna paralisada. Para emular a sensação de fazer as pazes com o destino transmitida pela cena em que Marion Cotillard tatua seus membros mutilados no filme “Ferrugem e Osso”.
Mas há também a questão da privacidade. Um dos ensaios de Roxanne Gay em sua coleção “Bad Feminist” é dedicado ao ato político de “sair do armário”. Citando Garrett Keizer, autor de “Privacy”, Gay argumenta que as pessoas com privilégio têm mais acesso à privacidade.
A relação entre privilégio e privacidade se aplicaria não só ao privilégio econômico, de classe social, mas também ao privilégio de raça, gênero e sexualidade. E da ausência de deficiência, complemento eu (aliás, quando até autoras que se identificam como feministas esquecem de enumerar deficiência dentre as minorias discriminadas, percebemos a real dimensão de nossa invisibilidade.)
Gay comenta que a cada vez que um corpo apresenta algum tipo de diferença, sua privacidade é comprometida em alguma medida. Cita como exemplo a perda de privacidade inerente à gravidez: para a mulher grávida, sua condição é o atestado visível, a demonstração pública e inequívoca, de um ato de intimidade, e da opção personalíssima por formar uma família.
Outras condições médicas permitem um grau de privacidade que uma deficiência ou enfermidades como Parkinson ou esclerose múltipla negam. O paciente cardíaco pode assumir ou não essa condição; lhe é resguardado o direito de revelar seu estado de saúde somente se e a quem lhe aprouver. A quem tem uma condição visível, tal privacidade é negada.
A sensação de que não desfruto do mesmo direito à privacidade que as pessoas “normais” é o que me irrita quando fazem perguntas sobre a condição de minha filha. Ao perceber que, a despeito de sua boa aparência e da ausência de qualquer comprometimento motor, minha filha não fala e se comporta de maneira atípica, desconhecidos a olham com mal disfarçada curiosidade. Os mais afoitos sequer tentam desvendar o mistério sozinhos e vêm diretamente perguntar o que ela tem. Se sentem no direito de fazê-lo. Nesse momento, a limitação da minha privacidade, e da privacidade da minha filha, é lançada em meu rosto. Por causa da deficiência dela, temos menos privacidade que os demais. Não desfrutamos do privilégio de frequentar um parque ou um restaurante sem que alguém nos inquira sobre nosso histórico médico.
A curiosidade propriamente dita já é desconfortável o bastante; afinal, minha filha não é personagem dos freak shows de antigamente, não está no espaço público para satisfazer à curiosidade alheia. Ainda pior é saber que, travestido de curiosidade, está o desejo perverso de sentir-se melhor, relativamente. Está o mesmo impulso que faz as pessoas pararem para contemplar um acidente automobilístico à beira da estrada, em vez de virar o rosto e seguir adiante em respeitoso silêncio. Ao desejar saber detalhes da “desgraça” que se abateu sobre minha família, o desconhecido quer sentir-se melhor com a própria vida: sejam quais forem os problemas que ele está atravessando, o destino o poupou daquela condição terrível e incurável. Mais uma vez, manifesta-se o preconceito, a visão naturalizada da confluência entre deficiência e tragédia.
Por isso as perguntas me irritam. Às vezes, respondo simplesmente que ela tem autismo e me afasto do curioso. Em dias piores, resolvo exercer o pouco de privacidade que ainda me resta e retruco: não é da sua conta. Afinal, deveria ser meu direito, como de todas as pessoas, manter minha história médica em privado. Não respondo precisamente para impedir que esta pessoa, investida em sua posição de privilégio por não ter deficiência, invada ainda mais a já limitada privacidade de minha filha.
Minha timeline no Facebook trazia há alguns dias a história de uma mulher no metrô de Toronto. Cansada de receber olhares e recriminações por causa do comportamento de seu filho autista, ela optou por andar com um cartaz grudado na mochila do menino: “ele não é mal-educado, ele tem autismo. Por favor, tenham paciência.” Incrivelmente, a mãe cansada, por quem sinto toda a empatia, foi recriminada por rotular seu filho. Recriminada pela mesma sociedade que praticamente exige que andemos com o diagnóstico estampado no peito como uma letra escarlate. Pela mesma sociedade que não inclui, que prefere presumir que a criança é mal educada – e, portanto, filha de uma mãe “incompetente”.
Esse é o avesso, o lado B da questão da privacidade. Ao ser forçada pelos olhares e pela incompreensão alheia a abrir mão dessa privacidade, a mãe do metrô de Toronto foi criticada pela quebra de decoro, por lançar na cara da sociedade a verdade desconfortável da deficiência de seu filho. Já passei por situação similar. Em determinada situação no trabalho, me vi obrigada a falar, didaticamente, sobre o autismo da minha filha e sua gravidade, que condicionam alguns aspectos de meu exercício profissional. Meu interlocutor não conseguiu esconder seu desconforto; era como se eu tivesse aparecido nua, em público, na frente dele.
Este desconforto com a abordagem franca da deficiência, seus detalhes e limitações, não deixa de constituir outra face do preconceito: a ideia de que a deficiência de minha filha é um assunto privado, uma parte da vida a ser escondida por baixo da “roupa” da minha normalidade, da aparente normalidade de minha vida familiar. O desconforto é uma extensão da visão segundo a qual os deficientes deveriam ser mantidos em casa, longe do espaço público, longe dos olhos das pessoas sem deficiência. Para não ferir os pudores das pessoas “normais”. Afinal, cumpre manter “as vergonhas” – sejam elas partes pudendas ou uma deficiência na família – devidamente encobertas. A mesma sociedade que exige desnudar a deficiência ao sabor da curiosidade alheia também contraditoriamente exige encobri-la, em nome do decoro e do bom gosto.
No ensaio mencionado, Roxanne Gay transcreve a declaração do famoso jornalista da CNN Anderson Cooper ao sair do armário, assumindo-se gay na coluna de Andrew Sullivan em The Daily Beast : “sempre fui aberto e honesto sobre esta parte da minha vida com meus amigos, minha família e meus colegas. Idealmente, em um mundo perfeito, eu ser ou não ser gay não deveria ser da conta de ninguém. Mas penso que existe valor em levantar-se e deixar-se contar” (but I think there is value in standing up and being counted.)
A privacidade da população LGBT – outro grupo minoritário com muito em comum com as pessoas com deficiência, inclusive a patologização de sua identidade – também é reduzida em virtude de sua condição. Por ser homossexual, Anderson Cooper sentiu-se forçado a tornar público um assunto que deveria ser eminentemente privado – “nobody’s business”, em sua própria expressão. Saiu do armário para levantar-se e ser contado, para tentar colocar seu grãozinho na luta de toda a comunidade LGBT por direitos iguais.
Por isso eu vou fazer a tatuagem. Porque em um mundo onde as pessoas com deficiência ainda são vistas como tragédia, ainda causam desconforto, ainda têm mais de chance de viver na pobreza, ainda têm sua privacidade invadida ou são forçadas a esconder-se em nome do decoro, existe valor em levantar-se e ser contado.
Ink 4 Autism
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