Por um mundo onde menos crianças morram na praia

 

Uma das minhas amigas mais queridas tem uma filha adolescente asperger. Uma gracinha de menina. Há umas semanas, minha amiga me procurou, muito chateada. Havia recebido uma mensagem de um dos responsáveis pelo grupo de jovens que sua filha começara a frequentar. A mensagem narrava explosões e comportamentos inadequados da filha de minha amiga durante as reuniões. O organizador dizia lamentar, mas já afirmava parecer “irreversível” sua saída do grupo.

Mais uma vez, constatamos, entristecidas, a falta de preparo da sociedade para incluir. A despeito de haver aceitado a filha de minha amiga no grupo, a expectativa do organizador era de que ela simplesmente se acomodasse às atividades – sem apoios, sem recursos, sem adaptações. Não me espanta que o comportamento da filha de minha amiga tenha deixado a desejar; afinal, ela tem asperger e a atividade não foi desenhada para ela. Tampouco se buscou adaptar a atividade de forma a viabilizar a participação de quem é diferente. Incluir vai muito além de matricular, muito além de uma difusa boa vontade inicial.

Quiçá reproduzindo, inconscientemente, clichês que circulam pela mídia e pelas redes sociais, esperava-se da menina asperger superação, em vez de oferecer-lhe adaptações e apoios.

Tão triste quanto a filha da minha amiga, à primeira dificuldade, ter sido deixada para morrer na praia – afinal, que fazer por quem, na loteria da vida, nasceu com deficiência, ou no país errado? –  é a lição que foi ensinada aos outros adolescentes participantes do grupo. A lição transmitida a estes meninos é que devemos lamentar, mas infelizmente não nos resta outra alternativa senão excluir. Devemos chorar os meninos que morrem na praia – mas que fazer por eles? Os garotos do grupo aprenderam que a exclusão é, para citar o organizador, “irreversível” –  supostamente um fato da vida, da mesma forma que são apresentadas como “fatos da vida” as guerras, fomes e catástrofes que impelem migrações.

Teria sido possível ensinar exatamente o contrário. Ao aceitar a filha de minha amiga, os organizadores do grupo deveriam ter conversado com a família, com os profissionais de saúde que a acompanham, com a própria menina. Para entender seu quadro e desenvolver adaptações e estratégias. Deveriam, na sequência, ter reunido o grupinho de adolescentes. E conversado sobre autismo, sobre asperger, e sobre como cada uma daquelas crianças tinha a responsabilidade de fazer a sua parte para receber e incluir a filha da minha amiga, para ajudá-la com suas dificuldades. As atividades deveriam prever intervalos, necessários momentos de relaxamento, de redução das demandas e da sobrecarga. O grupinho perdeu uma excelente oportunidade de aprender a incluir, a aceitar o diferente – em vez de lamentar por cinco minutos e deixá-lo para morrer na praia.

Qualquer um de nós dirá que não quer viver em uma sociedade que exclui. Não queremos ver os diferentes confinados em guetos. Reconhecemos os direitos humanos de todos. Queremos que os mais vulneráveis sejam protegidos.  Mas não queremos fazer a nossa parte: queremos que alguém enfrente o trabalho de inclusão por nós. A lógica do grupo de jovens é a mesma lógica da associação de escolas particulares que impetrou acintosa ADIN, pedindo ao STF que lhe seja reconhecido o direito de não receber alunos com deficiência. Nenhum de nós quer viver em uma sociedade segregadora, mas queremos que outros incluam. Que outras escolas incluam, que outros grupos incluam. Que outros países acolham os migrantes destituídos. Mas é imperativo reconhecer que a responsabilidade de incluir é de cada um de nós, como cidadão e como ser humano. Como um elo da economia global. Negar esta responsabilidade é compactuar para que mais e mais crianças que nasceram no país “errado” ou com as capacidades “erradas” sejam deixadas para morrer na praia, sob nosso olhar atônito e inerte.

 

(Ana Nunes é mãe de autista e autora de “Cartas de Beirute – Reflexões de uma mãe e feminista sobre autismo, identidade e os desafios da inclusão”)

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