Inclusão dispensa utopia

Uma placa de trânsito indica o destino de Utopia, para a frante, a uma distância infinita, representada pelo símbolo matemático do 8 horizontal.

Por Lucio Carvalho

É do livro As palavras andantes, de Eduardo Galeano, e também de um vídeo muito compartilhado nas redes sociais na voz do próprio autor, uma das definições mais acreditadas e difundidas da noção contemporânea de utopia. O conceito tem origem nos estertores da baixa Idade Média, quando no ano de 1516 o inglês Thomas Morus o cunhou, através da publicação de um livro homônimo e, desde então, o termo tem sido compreendido como sinônimo de “mundo ideal”, ainda que Morus, bem como Maquiavel e Thomas Hobbes, cada um a sua própria maneira, na verdade tenham criado metáforas para explicar o mundo de então (em O Príncipe e O Leviatã) e a respeito dele fazer proposições.

“A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”, diz Galeano no conhecido vídeo e também em seu livro, publicado no Brasil pela L&PM, em 2004. Trata-se de uma visão otimista da utopia ou, melhor ainda, funcionalista, porque condiciona na sua busca a concretização de um mundo efetivamente melhor e mais justo.

Todavia o conceito nem sempre tem contado com uma interpretação assim tão otimista. Em fins do séc. XIX, com a publicação das ideias críticas de Schopenhauer e Nietzsche, muito foi redimensionado das possibilidades e da crença na utopia enquanto um modelo a desejar e perseguir-se. Na contemporaneidade, por exemplo na visão do filósofo francês Jean Baudrillard, falecido em 2007, “não há nada mais conservador que a utopia, porque ela jamais redimensiona sua perspectiva”. A frase se encontra no livro O sistema dos objetos, publicado em 1968 e por aqui pouco depois, em 1973, pela editora Perspectiva. A bem dizer, é quase uma antítese da proposição, digamos, mais literária, de Galeano. Não se trata aqui de disputar a razão ou soberania de uma atribuição ou de um conceito sobre o outro, mas de verificar que, mesmo dentro de uma concepção funcional, a utopia pode servir tanto ao objetivo de confirmar esperanças latentes de reforma no mundo social quanto ao de conservar o status quo, como se servisse a um perpétuo adiamento.

Na história recente do mundo ocidental, inclusive no Brasil, tem vicejado o que se pode denominar por pensamento “inclusivo”. É um pensamento que ganha força principalmente a partir da queda do muro de Berlim, em 1989, e da necessidade de revisão histórica dos projetos do socialismo real que nasceram e vigoraram em boa parte do séc. XX, principalmente na extinta União Soviética e nos países do leste europeu. Nesta perspectiva, não é tão importante projetar o mundo ideal nem caminhar em direção à utopia quanto pavimentar desde já as condições necessárias a garantir a todos os cidadãos o acesso, nas melhores condições possíveis, ao exercício de – pelo menos – seus mais simples direitos fundamentais, tais como educação, saúde, segurança e assim por diante, bem como corrigir e sanar distorções no modelo jurídico-social em prol do interesse público. Trata-se de um pensamento essencialmente político, mas também catalisador de mentalidades, ideologias e, por que não?, de esperanças também, tendo-se em vista a aparentemente cada vez mais remota possibilidade de reforma radical da sociedade.

Recentemente, no caderno DOC (08/04/2016) do jornal Zero Hora, de Porto Alegre, o psicanalista e autor Mário Corso, trouxe uma interpretação bastante dura a respeito do conceito de utopia na contemporaneidade. De seu texto depreende-se um embotamento da racionalidade em face ao endurecimento das condições do mundo real e a construção artificial da satisfação humana, levada a efeito pelos artifícios criativos da publicidade. É um texto bastante duro e que corrobora um cenário de grande desesperança, ou distópico, como é mesmo possível verificar em muitas e muitas situações no mundo presente, desde que se rompa a tela de sua virtualidade e passe-se, ao menos momentaneamente, ao mundo real, onde a vida e as coisas acontecem.

De outro modo, o mesmo Jean Baudrillard, que antes mesmo das explosão das redes sociais anunciara que o tempo presente provavelmente seria o do “êxtase comunicativo”, mas que mantinha dúvidas importantes sobre o comportamento da sociedade massificada, acreditava igualmente que seria o conjunto social, a reboque de suas reinterpretações do tecido social que é onde todos de um modo ou outro atuam e interagem, que poderia superar a fantasia consumista, ainda que essa não seja uma tarefa das mais simples para ninguém individualmente. Porém, de certo modo ele também traduz o espírito inclusivo (ou pelo menos torna evidente onde o pensamento inclusivo poderia estar atuando ainda mais), que não mais espera pela redenção política, mas se realiza na e pela ação e colaboração imediata de todos: de pensadores a trabalhadores, das pessoas mais habilitadas (pelo menos segundo o critério da sociedade de mercado) até minorias extremas, como pessoas com deficiência, com doença mental, ciganos, homossexuais e tantas quantas existam. Quer dizer, se as utopias são territórios inacessíveis, modelos ideais sobretudo vedado às pessoas, o pensamento inclusivo visa tornar as condições de vida imediata menos duras, além de possibilitar melhores chances de (até mesmo inadvertidamente) chegarmos à própria utopia, ou a tanto quanto dela nos seja possível realmente viver.

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