Por Patricia Almeida*
Com a onda de incerteza e medo instaurada pelo nascimento de bebês com microcefalia em decorrência do vírus zika, a flexibilização das possibilidades de aborto rapidamente voltou à pauta. O Ministro da Saúde à época do início do surto chegou a sugerir que as mulheres adiassem seus planos de gravidez, uma intrusão sem precedentes sobre as escolhas individuais. Depois voltou atrás. Agora, em entrevista à BBC, a Secretária de Direitos Humanos Flavia Piovesan disse que o Judiciário poderia aprovar o aborto nesses casos. A legislação brasileira permite atualmente o aborto somente em casos de anencefalia, risco para a saúde da mãe ou estupro.
Quando essa questão foi levantada pela primeira vez, ativistas dos direitos das pessoas com deficiência reagiram afirmando veementemente que quaisquer medidas reducionistas poderiam levar a práticas eugenistas:
“O assunto do aborto só é discutido quando é para evitar uma criança com deficiência”, escreveu Meire Cavalcante.
Ana Nunes, um ativista feminista com uma filha com autismo enfatizou:
“É necessário distinguir entre o debate ético do aborto porque você não quer uma gravidez, e um aborto porque você não quer uma gravidez de um feto com certas características”.
Outra preocupação levantada por Nunes é o efeito que essa legislação teria sobre as mulheres que decidem não abortar:
“A eventual liberação do aborto nestes casos convidaria a uma maior culpabilização das mães de bebês com microcefalia: podia ter abortado e decidiu ter, agora aguente as consequências. É a desculpa perfeita para um Estado e uma sociedade omissos continuarem a se omitir, no tocante ao apoio às famílias afetadas pela deficiência. O aborto em casos de contaminação por zika, em vez de uma escolha, será praticamente compulsório. ”
Em outro artigo publicado em um dos principais jornais brasileiros, Maria Antonia Goulart, co-fundadora e coordenadora do Movimento de Down, salientou como nesta situação grave, acaba-se reconfirmando a visão de uma pessoa com deficiência como alguém incapaz de ser autônoma e independente e de levar uma vida produtiva e feliz.
A descriminilização do aborto em caso de fetos com microcefalia constitui discriminação com base na deficiência e contraria a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e a Lei Brasileira de Inclusão.
A discussão sobre direitos reprodutivos, inclusive a descriminalização do aborto é bem-vinda e necessária diante da séria questão de saúde pública que envolve. É fato inegável que todos os dias um elevado número de mulheres brasileiras se submete a abortos clandestinos e inseguros, pondo em risco a própria vida. Mas, quando chegar, o direito de escolha informada da mulher deve ser garantido em qualquer situação, não apenas no caso de uma gravidez de feto com deficiência.
Extraído, adaptado e traduzido do artigo: Challenging Connections: Zika and disability in Brazil, publicado em 19/04/2016 no Global Disability Watch.
* Patricia Almeida é jornalista e mãe de uma criança com deficiência. Ela é membro do Conselho de Down Syndrome International, co-fundadora do Movimento Down e fundadora da Inclusive – Inclusão e Cidadania. Mestranda em Estudos sobre Deficiência na City University of New York (CUNY), ela também é autora da cartilha de acolhimento para famílias de crianças com microcefalia, Três Vivas para o Bebê.
Tema altamente controverso, que enseja questões bioéticas, sociais e de políticas públicas. Não se trata ser contra ou a favor da liberdade da mulher de interromper ou não sua gestação. No debate da legalização do aborto por zika congênita a escolha é sim ou não em um caso específico no qual os futuros filhos têm maior potencial para deficiência múltipla. Nesta opção joga-se com a defesa do direito à vida das pessoas com deficiência.Por não haver amparo legal para aborto no Brasil, a criança com deficiência passa a ser erroneamente equiparada à anencefalia, situação incompatível com a vida. Não acredito que a questão social e de saúde pública que a criminalização do aborto acarreta deva enveredar para seara da valoração da vida de uns em detrimento de outros. Não cabe “consertar” a proibição com a escolha particularizada. O ganho seria ilusório, enquanto reforçaria a discriminação da pessoa com deficiência.