Izabel de Loureiro Maior
Membro do Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Rio de Janeiro e do Fórum Permanente UFRJ Acessível e Inclusiva, médica fisiatra e professora aposentada da Faculdade de Medicina da UFRJ e ex-Secretária Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência – SNPD/SDH.
Chamamento à participação em 3 de dezembro de 2019, dia internacional da pessoa com deficiência: nenhum direito pode ser subtraído!
“Nada sobre nós sem nós” é um lema que grita e dá visibilidade à autodeterminação, que nos conclama à ação e reação dentro dos parâmetros constitucionais e democráticos. A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, elaborada na ONU com a participação brasileira, foi ratificada e promulgada no Brasil com equivalência constitucional por firme deliberação do movimento social e que se concretizou com a força motriz de milhões de pessoas que acreditam nos direitos humanos e convenceram o Congresso Nacional e o Poder Executivo da necessidade de promover e assegurar a não violação desses direitos no tocante ao segmento de brasileiros e brasileiras com deficiência.
Além de ratificarmos o texto da Convenção, o Protocolo Facultativo é igualmente constitucional e isso determina a obrigação de o país prestar contas sobre a implementação dos direitos das pessoas com deficiência, assim como permite que petições individuais ou coletivas possam ser feitas ao Comitê da Convenção, para denunciar medidas que afrontam as obrigações ratificadas ou que não estejam sendo adequadamente cumpridas. Discriminar alguém por motivo de deficiência é crime e desrespeitar os direitos humanos ou reduzir os direitos das pessoas com deficiência é passível de sanção internacional.
Faz uma década que o Decreto 6.949, de 25 de agosto de 2009, que promulgou a Convenção, nos garante o direito de sermos amplamente consultados e opinarmos sobre os assuntos relacionados diretamente às pessoas com deficiência. O movimento social, por intermédio de suas associações, redes, comitês e conselhos representativos, alcançou conquistas e não aceita ser desrespeitado por quem descumpre os preceitos legais. Estão faltando leitura e conhecimento sobre a Convenção aos que elaboram e assinam medidas provisórias, projetos de lei e decretos sem respeitar os procedimentos de ampla e acessível consulta pública às pessoas com deficiência. São atitudes e comportamentos errados e inconcebíveis no Brasil, que precisa consolidar a inclusão e participação de todos os atores sociais.
Reforma da Previdência
Nos últimos meses fomos atropelados pela emenda constitucional, PEC 6/2019, Reforma da Previdência, que, a exemplo da proposta Temer, exorbitou limites e pretendeu alterar um benefício da assistência social, o Benefício de Prestação Continuada – BPC, tão essencial aos que, além da falta de oportunidades decorrentes da deficiência, vivem na extrema pobreza. Reagimos e estaremos sempre prontos para desmontar medidas prejudiciais aos mais vulneráveis, que sequer tomam conhecimento em tempo hábil dos riscos à sua sobrevivência.
Programa de habilitação e reabilitação física e profissional
No dia 11 de novembro, por meio da Medida Provisória 905/2019, vimos surgir o Programa de habilitação e reabilitação física e profissional, prevenção e redução dos acidentes de trabalho (artigos 19 a 23), a ser realizado pelo INSS e receber recursos orçamentários oriundos de multas indenizatórias e de termos de ajustamento de conduta aplicados pelo Ministério Público do Trabalho. Embora a MP 905/2019 considere que esses recursos serão destinados a custear o programa apresentado, na verdade indica o Tesouro Nacional como destino. Difícil entender como se dará a gestão física e financeira desse programa. Se por um lado o ressurgimento da reabilitação profissional representa iniciativa alvissareira, na mesma MP o serviço social deixa de ser prestado pelo INSS. Um paradoxo inexplicável, pois sabemos que entre as demandas dos segurados da previdência que requerem a atuação dos profissionais da assistência social encontra-se justamente a habilitação e a reabilitação profissional, visto serem os profissionais responsáveis pela alocação e acompanhamento dos segurados reabilitados no mercado de trabalho. Como as determinações de medidas provisórias passam a vigorar imediatamente, caberá aos parlamentares corrigir as inconsistências instaladas e desfazer os atropelos e as evidentes ilegalidades. Mesmo mudando-se os artigos no Congresso, o Executivo deixou de cumprir sua obrigação constitucional da consulta prévia, conforme as normas da OIT e da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Tem-se a impressão que os cidadãos deixaram de existir para o Executivo ou são meros tutelados pelos governantes. O voto não é uma medida de interdição da cidadania!
Muito ainda teremos que alterar a MP 905/2019, da “carteira verde e amarela”, modalidade de contrato de trabalho tratada somente nos primeiros 18 artigos da medida provisória, seguidos pelos quatro artigos do Programa de habilitação e de reabilitação profissional, destinando-se os artigos de 24 a 53 para estabelecer modificações próprias de reformas trabalhistas e previdenciárias camufladas.
Restrição do auxílio-inclusão e das cotas do trabalho
Sem descanso, sem versões em formato acessível e, mais uma vez, desconsiderando a obrigação constitucional da consulta às pessoas com deficiência, portanto deixando de fora o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência – CONADE, fatos exigidos pela Convenção e a Lei 13.146/2015 – LBI, foi enviado ao Congresso Nacional o Projeto de Lei 6.159, de 26 de novembro, com tramitação de urgência constitucional, o que limita o prazo de apresentação de emendas a cinco sessões deliberativas do plenário da Câmara. O regime de urgência constitucional não se sustenta legalmente analisando-se a matéria desse projeto de lei, em face das próprias regras constitucionais.
O PL 6159/2019 legisla e restringe o auxílio-inclusão previsto na Lei 13.146/2015, afetando profundamente a reserva de cargos destinados a trabalhadores com deficiência e segurados reabilitados nas empresas com cem ou mais empregados. A proposta governamental baseia-se na falsa premissa de que não existem pessoas com deficiência para suprir o mercado e, portanto, os empresários não podem ser penalizados. Esse é o argumento encontrado na exposição de motivos e, sem dados estatísticos comprobatórios, toma-se a informação do Ministério da Economia por verdade inconteste, ainda que tendenciosa e velha conhecida do movimento de defesa dos direitos das pessoas com deficiência. O muro da discriminação no acesso ao mercado de trabalho encontrou apoio no Executivo, o que nos causa perplexidade. É necessário ressaltar que a reserva de vagas não é um prêmio: muito pelo contrário, representa um remédio para responder às barreiras atitudinais enfrentadas pelo segmento de trabalhadores com deficiência na busca por contratação no mercado formal. Não podemos prescindir dessa ação afirmativa antes de equacionar as barreiras das oportunidades. Portanto, contar aprendizes para as cotas, reduzir as ocupações que podem ser exercidas, retirar os cargos com 26 horas de trabalho, permitir o pagamento de contribuições ao Tesouro Nacional para não contratar e usar cotas de outras empresas estão entre as decisões do Executivo que não se coadunam com as necessidades dos trabalhadores com deficiência. Isso tudo são estímulos a burlar o direito ao trabalho.
O PL 6159/2019 estabelece a obrigatoriedade de frequentar o programa de habilitação e de reabilitação profissional para beneficiários do BPC, para pensionistas com deficiência, para segurados que recebem benefício por incapacidade permanente para o trabalho (anteriormente “auxílio invalidez”) e os beneficiários do auxílio por incapacidade temporária para o trabalho (antigo “auxílio doença”). Antes da entrada em vigor desse programa, que demanda planejamento e acompanhamento, há que se verificar se o Sistema S está apto a realizar a capacitação profissional de pessoas com deficiência de diferentes perfis de escolaridade, tipo de deficiência e se dispõe dos recursos de acessibilidade e de tecnologia assistiva imprescindíveis.
Avaliação biopsicossocial da deficiência
É importante frisar que a avaliação biopsicossocial da deficiência, realizada pela equipe multiprofissional e interdisciplinar, conforme previsto no § 1º do art. 2º da Lei Brasileira de Inclusão, é fator-chave para as várias decisões e encaminhamentos surgidos com o PL 6159/2019, a saber: definir pessoa com deficiência moderada ou grave oriunda do BPC que poderá pleitear o auxílio-inclusão ao ingressar no regime previdenciário, nos limites de dois salários mínimos e renda familiar per capita exigidos; a elegibilidade das pessoas que serão encaminhadas ao programa de habilitação profissional e reabilitação profissional; e a determinação do enquadramento como pessoa com deficiência grave para fins de contagem em dobro no preenchimento de cargos reservados nas empresas privadas, medida, a nosso ver, de caráter duvidoso.
Desde julho de 2018, o governo federal passou a realizar a pesquisa de campo, técnica e cientificamente conduzida por intermédio da carta-acordo entre o MDH, a OEI e a Universidade de Brasília, sob a coordenação da Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, com o propósito de validar em amostra nacional o Índice de Funcionalidade Brasileiro, em sua versão modificada – IFBrM – pelo Comitê criado pelo Decreto 8.954/2017 para proceder a elaboração do Cadastro Nacional de Inclusão e a Avaliação Unificada da Deficiência. O estudo envolveu mais de 50 cidades das cinco regiões do país, capacitou mais de uma centena de profissionais de nível superior em instituições públicas e conveniadas do SUS e aplicou o instrumento IFBrM a cerca de 8.200 pessoas com tipos diferentes de deficiência e nas cinco faixas etárias definidas.
O Comitê interinstitucional foi responsável pela validação do conteúdo do instrumento (57 atividades e participação selecionadas na Classificação Internacional de Funcionalidade – CIF, OMS) e na pesquisa de campo foram realizadas a validação de acurácia e de face, respectivamente, quantitativa e qualitativa, com a percepção dos avaliadores e dos avaliados. Durante os meses de julho de 2018 a setembro de 2019 foi possível alcançar as metas da pesquisa, a capacitação dos profissionais, análise estatística, definição de escala métrica para o grau de deficiência e o teste de resposta ao item para cada quesito presente no instrumento de avaliação. Em 30 de outubro, a UnB apresentou o relatório consolidado ao MMFDH e, posteriormente, a Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência e os pesquisadores da UnB procederam à exposição dos resultados em reunião na Casa Civil, para os representantes dos ministérios da Economia, Cidadania e Saúde.
A Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência da Câmara dos Deputados realizará no dia 3 de dezembro, o debate para conhecer os instrumentos de avaliação da deficiência e divulgar os resultados da validação do IFBrM. Sabemos que as análises técnicas consideraram o instrumento confiável para determinação do grau de deficiência dos indivíduos avaliados por ao menos dois profissionais de nível superior, especificamente capacitados. Uma parte do instrumento deverá ser de uso do profissional de medicina, atuando na equipe multiprofissional e interdisciplinar.
É finalmente chegado o momento de dar amplo conhecimento sobre o instrumento de avaliação biopsicossocial da deficiência e estabelecer os demais componentes de um Sistema Nacional de Avaliação e Certificação da Deficiência, conforme regulamentação exigida pela Lei 13.146/2015. Deixamos para os debates a ideia de desatrelar do INSS essas medidas, pois são muitas as políticas públicas que precisam usar o resultado da avaliação biopsicossocial da deficiência. A lógica da avaliação biopsicossocial da deficiência deve ser atender as necessidades de cada pessoa em busca da justiça social.
Participação e liderança das pessoas com deficiência
Espero que o dia Internacional das Pessoas com Deficiência – 3 de dezembro, cujo lema cunhado pela ONU para 2019 é “Promovendo a participação e liderança das pessoas com deficiência: tomando medidas da Agenda do Desenvolvimento 2030”, nos inspire a fortalecer o movimento social, assegurar os direitos conquistados com muitos sacrifícios ao longo de quatro décadas e impeça os retrocessos e desmandos dos projetos de mudança da legislação. Que venham políticas e programas para reduzir a discriminação e as desigualdades sociais enfrentadas por milhões de pessoas com deficiência no Brasil.
Observação: Para conhecer as análises juridicamente detalhadas acerca do PL 6.159/2019, indicamos o posicionamento da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência e Idosas – AMPID (www.ampid.org.br) e a manifestação da Coordenadoria Nacional de Promoção da Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho (Coordigualdade) do Ministério Público do Trabalho.
Izabel,
Você me representa!
Abraços