Qual é o papel dos sentidos na memória de um aprendizado obtido e consolidado ao longo da vida? E a palavra? Que lugar ela ocupa no tecido dessas lembranças? Seria o ato de narrar o nosso próprio passado uma maneira de recriá-lo, aproximando-o do universo ficcional? E quanto ao nosso corpo? Que contingências históricas e culturais atribuíram um valor específico ao sentido da visão ou à falta dele?
São essas as questões-chave que conduzem este ensaio do escritor e historiador Flávio Oliveira. O autor nos apresenta os relatos de vida de quatro músicos cegos que se formaram em uma escola especializada na educação de pessoas com deficiência visual em Belo Horizonte, entre as décadas de 1930 e 1960, e os analisa a partir do conjunto de signos encontrados por Gilles Deleuze na obra de Marcel Proust.
Neste livro, Flávio Oliveira, que também é cego, aproxima ambas as narrativas, a de Proust, enquanto obra literária, e os relatos dos quatro músicos (três homens e uma mulher), para mostrar que elas têm em comum o fato de se apoiar na memória dos narradores. Nos dois casos, a memória surge tanto a partir da relação com os sentidos da percepção quanto do próprio ato de narrar.
No ano de 2000, a pesquisa que deu origem a este livro recebeu o primeiro lugar na categoria ensaio do Concurso Nacional de Literatura Cidade de Belo Horizonte.
Leia a seguir a apresentação do livro, por Joana Belarmino de Sousa.
Apresentação – Memórias que não se perdem: meu encontro com a narrativa de Flávio Oliveira
Joana Belarmino de Sousa*
O convite para escrever a apresentação do livro de Flávio Oliveira me chegou no momento em que estou lendo a formidável obra de Proust Em busca do Tempo Perdido. Assim, ao abrir o livro de Flávio, surpreendi-me com a confluência. Flávio nos apresenta a questão principal de seu livro por meio de depoimentos de músicos cegos: “de que maneira a memória pode reconstruir a história de um aprendizado?”
O pano de fundo reflexivo da obra são as incursões do filósofo Gilles Deleuze e a sua competente análise sobre os signos proustianos, a matéria de que são constituídos, seus efeitos, sentidos e relações com sujeito e objeto e a temporalidade implicada no seu trabalho de narrar.
É dentro dessa moldura filosófico-literária que Flávio vai levantar a hipótese de seu trabalho: o que poderia haver em comum entre o livro de Proust, a análise Deleuziana e as memórias dos quatro músicos cegos entrevistados em seu livro? O próprio autor me responde:
Minha intenção é mostrar que existe um ponto comum entre o sentido dos signos da memória e o aprendizado, e que essa relação se encontra para além das trajetórias escolares dos músicos que me relataram, em depoimentos emocionados, as lembranças de suas vidas.
As chaves principais das quais o autor se apropria para a sua incursão são as concepções de signo, memória e aprendizado, entendendo-se o signo como a matéria primeira para a decifração dos acontecimentos, da memória e, por assim dizer, do aprendizado, nesse lugar habitado por sujeitos de linguagens.
Da análise deleuziana da obra de Proust, Flávio vai buscar, no contato com as memórias dos seus entrevistados, os quatro conjuntos de signos que o filósofo identifica na narrativa de Em busca do Tempo Perdido, quais sejam, os signos mundanos, os signos amorosos, os signos sensíveis e os signos da arte e os seus entrelaçamentos, conformando assim, os rastros da memória, os processos de ressignificação e o aprender/reaprender.
Resultado de sua dissertação de mestrado em Educação, a obra de Flávio Oliveira estrutura-se em quatro partes: na primeira, o autor faz uma abordagem histórica e contextual do instituto São Rafael, realizando apontamentos sobre suas primeiras experiências pedagógicas com cegos; na segunda, discorre sobre a filosofia do olhar e da percepção a partir das ideias de Diderot; na terceira, apresenta a narração e a memória como fundamentais à constituição e afirmação do sujeito narrador para o testemunho histórico e, por fim, na quarta parte, faz uma análise dos depoimentos de vida de músicos cegos.
Não direi muito sobre os achados filosóficos do trabalho de Flávio Oliveira, deixando aos leitores a tarefa de esmiuçar e ressignificar os resultados dessa narrativa densa e surpreendente.
Falarei um pouco mais sobre o meu próprio encontro com Flávio Oliveira, o narrador, a partir da leitura de seu livro. De saída, percebo que o autor se move entre dois mundos e, nesse caminho de via dupla, vai construindo um texto que busca o rigor acadêmico sem renunciar à veia literária, estratégia que empresta à sua obra de ciência um sabor inusitado.
Engana-se o leitor que julgar que vai encontrar na obra de Flávio Oliveira uma colagem entre as teorias deleuzianas e o seu problema de investigação. De fato, as teorias do filósofo auxiliam o autor em sua tarefa de perscrutar a realidade escolhida como objeto de estudo, mas ele próprio vai abrindo suas veredas discursivas com autonomia de estilo, alicerçando sua incursão em pesquisa documental que sedimenta as memórias oficiais da escola, solidificando, por assim dizer, o terreno onde busca flagrar as memórias amorosas, as memórias sensíveis, as mundanas e as artísticas. Flávio não perde de vista as questões novas que vai encontrando por esse caminho investigativo. Um exemplo é a questão de gênero, com a qual se depara ao analisar a profissionalização dos estudantes cegos no Instituto São Rafael através da música:
Nota-se, assim, que no tipo de formação profissional oferecida pelo Instituto São Rafael havia uma divisão entre os trabalhos socialmente aceitos como trabalhos masculinos e os femininos. Aqui está posta uma questão de gênero que não foi ignorada ao longo da pesquisa que resultou neste livro: não obstante aquela fosse uma escola mista, pode-se perceber uma clivagem entre o tipo de educação oferecida aos alunos e às alunas. (…) Entretanto, há que se dizer que, embora moças e rapazes tivessem igual liberdade para adquirir a formação musical, e o faziam igualmente, eram quase somente os rapazes que de fato acabavam por se profissionalizar e frequentar os ambientes musicais das cidades pelas quais passaram.
O escrutínio da história da escola vai desbravando seus mitos fundadores, aparentemente tão semelhantes a outras histórias de instituições para cegos. Nesse percurso, o autor encontra pelo menos três mitos fundadores.
Sinto a obra de Flávio Oliveira como uma espécie de caleidoscópio, em que a cada giro encontramos diferentes possibilidades de produção de sentidos e ressignificação da realidade pesquisada.
A obra de Flávio Oliveira é, pois, um belo tratado sobre cegueira e visão e suas representações, sobre memória e suas significações e ressignificações, sobre a narrativa e os seus atores ─ o leitor, o autor e o narrador, todo ele tramado por um diálogo polissêmico com a filosofia, com a literatura, com a antropologia e, como a tônica mais forte do trabalho, um diálogo com as vozes ressoantes dos músicos cegos que se profissionalizaram no Instituto São Rafael.
Temos uma obra de estudo, mas, sobretudo, um trabalho de escuta dessas memórias iluminadas pelo diapasão da filosofia de Deleuze e pela métrica afiada e saborosa do próprio autor. Para nos remetermos à formidável obra de Marcel Proust, que reverbera como música de fundo nesse trabalho, diremos que Flávio foi buscar memórias de um tempo passado, memórias que não se perdem e que ressoarão a cada vez que um leitor empreender sua jornada particular por essa densa narrativa.
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* Joana Belarmino de Sousa é jornalista, escritora e professora titular do curso de jornalismo da Universidade Federal da Paraíba. Desenvolve pesquisas nas áreas de acessibilidade à comunicação e ao jornalismo, ciberativismo, cegueira e percepção tátil, arte, literatura e comunicação.
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O livro Sentidos e memórias, de Flávio Oliveiral, é uma aula sobre signos, memórias e aprendizados, e também é uma viagem emocionante sobre relatos de vidas. Só tenho a dizer: uma leitura imperdível!