Artigo de Marta Almeida Gil (*)
Sônia Maria de Jesus tem hoje 50 anos. É uma mulher negra, natural da Zona Oeste de São Paulo, pessoa com deficiência múltipla (surdez bilateral e visão monocular), analfabeta em Libras e português.
Em 1982 foi retirada de sua cidade e levada para Santa Catarina, quando tinha entre 8 e 9 anos de idade, pela psicóloga Maria Leonor Gayotto, mãe de Ana Cristina Gayotto de Borba, esposa do desembargador Jorge Luiz de Borba.
Está há mais de 40 anos em situação análoga à de escravidão com a família Gayotto Borba, ocupando em Florianópolis um espaço periférico da casa. Nunca foi registrada, nem recebeu salário e demais benefícios trabalhistas. A certidão de nascimento foi seu único documento até 2019, quando fez seu RG. CPF só em 2021. Comunicava-se com a família por gestos rudimentares.
Sua mãe biológica nunca mais soube de seu paradeiro, embora tenha se empenhado muito em localizá-la. Morreu em 2016 sem saber se sua filha mais velha estava viva.
Sônia foi libertada aos 49 anos, após cuidadosa investigação que se seguiu a uma denúncia anônima informando que estava submetida à condição de trabalho análogo ao de escravizada. A ação fiscal na casa do Desembargador foi autorizada pelo Ministro Mauro Campbell, do STJ (Superior Tribunal de Justiça). A equipe responsável pela ação fiscal, seguindo o protocolo, em decisão unânime, decidiu pelo resgate e encaminhou a Sra. Sônia para uma Casa de Acolhimento para mulheres em situação de violência doméstica. Lá recebeu atendimento psicológico, assistencial, cuidados médicos e odontológicos, que identificaram perda de dentes; presença de mioma no útero; indicação de possibilidade de uso de aparelho auditivo, obesidade; problemas lombares; inexistência de atendimento no sistema público de saúde, inclusive ausência de ciclos vacinais.
Após o resgate começou a frequentar a Associação de Surdos da Grande Florianópolis, onde está sendo alfabetizada em Libras e língua portuguesa; pela primeira vez está interagindo com pessoas surdas.
Entretanto, sua liberdade durou pouco: uma decisão do ministro do STJ, Mauro Campbell, autorizou a visita da família do Desembargador à Casa de Acolhimento a Mulheres Vítimas de Violência e o retorno de Sônia se essa fosse sua “vontade” já que ela seria “como se fosse da família”. A Defensoria Pública da União entrou com um Habeas Corpus junto ao Supremo Tribunal Federal, tentando evitar o encontro. O Ministro André Mendonça permitiu que ela retornasse à casa do casal, acolhendo o argumento do Ministro do STJ.
Seu caso foi divulgado pela mídia e redes sociais e foi assim que sua família biológica soube que ela estava viva e nestas condições. Conseguiram visitar Sônia poucas vezes e as visitas não têm sido facilitadas pela família do Desembargador. Querendo a liberdade da irmã, e percebendo que o caminho judicial tem sido moroso e difícil, começaram uma campanha global por sua Liberdade: #sonialivre.
Os apoios têm sido numerosos: Anna Paula Feminella – Secretária Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência – Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania; Universidades, entidades de Pessoas com Deficiência, entidades do movimento negro, ativistas, grande imprensa e dirigentes de organizações de Direitos Humanos de oito países da América Latina aderiram à campanha global #sonialivre, além de países europeus.
O Senador Paulo Paim pautou o Trabalho Escravo Doméstico e o caso Sônia em Audiência Pública da Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal com falas potentes, inclusive de Marta de Jesus, irmã caçula de Sônia; diversos Conselhos de Direitos do Brasil e do exterior têm manifestado apoio à campanha, como o Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência – Conade, a Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo – Conatrae, o Conselho Nacional de Direitos Humanos- CNDH, o IPEATRA – Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e Ministério Público do Trabalho e o Sindidoméstico/BA, entre outros, também manifestaram seu apoio.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos foi acionada para pedir ao Brasil que preste Informações sobre essa situação de desrespeito às normas de combate ao trabalho escravo no Brasil. O contato foi feito pelo Centro pela Justiça e Direito Internacional (CEJIL) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) com apoio da Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados e Assalariadas Rurais – CONTAR; Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas – FENATRAD; Instituto Trabalho Digno – ITD; Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho – SINAIT; Associação Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho – ANAFITRA; Associação Nacional dos Procuradores e das Procuradoras do Trabalho – ANPT; Associação Nacional dos Procuradores da República – ANPR.
Audiência no Senado Federal
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(*) Marta Almeida Gil
Socióloga, Fundadora e Coordenadora Executiva do Amankay Instituto de Estudos e Pesquisas; consultora para empresas e órgãos públicos, Empreendedora Social reconhecida pela Ashoka; palestrante em eventos nacionais e internacionais; conteudista de vídeos e de cursos de educação à distância (EAD).