Texto de Angélica Santa Cruz na Revista Piauí
Em 1992, a psicóloga social Maria Leonor Cunha Gayotto publicou um livro chamado Creches: desafios e contradições da criação coletiva da criança pequena. É uma obra política. Ao longo de 134 páginas, onze artigos assinados por ela relatam, em linhas gerais, os desafios encontrados por educadores na formação de crianças cidadãs. Na primeira frase da introdução, ela escreveu: “Numa sociedade democrática, a educação é direito de todos, da própria cidadania, e por isso assegurada pelo Estado.” Nos comentários finais, observou que “uma creche deve identificar-se com uma proposta de educação libertadora da criança”.
O prefácio do livro é assinado por Paulo Freire. O autor do clássico Pedagogia do oprimido era uma das referências intelectuais da psicóloga, que fundou o hoje extinto Instituto Pichon-Rivière de São Paulo, uma escola particular na área da psicologia social, e foi professora associada da PUC-SP. Contemporâneos da faculdade lembram-se dela como uma mulher com pequenos olhos azuis, nariz arrebitado e quase sempre usando um corte de cabelo muito curto. Os amigos mais próximos a chamam de “Lolô”.
Ela é viúva do médico Luiz Carlos da Costa Gayotto, que foi professor titular de anatomia patológica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Era um homem culto. Costumava se trancar no escritório de casa para devorar livros, o que fazia em cinco línguas. Usava um cavanhaque sempre bem aparado e tinha ar jovial. Com outros médicos, escreveu um livro até hoje referência em sua área – Doenças do fígado e vias biliares, finalista do Prêmio Jabuti em 2002. Quando morreu de câncer, em 2004, aos 70 anos, houve comoção entre seus colegas. Obituários o descreveram como um médico que na juventude fora ligado à esquerda católica, um sujeito amigo dos amigos e desbravador em sua área. “Era reto por essência, generoso por índole, despretensioso por constituição, superiormente inteligente por genética e graças a todos esses atributos exerceu marcante liderança”, escreveu Silvano Raia, seu colega de faculdade e famoso pioneiro em transplante de fígado no Brasil.
No Natal de 2022, os descendentes de Maria Leonor e Luiz Carlos Gayotto ganharam um presente especial: um pingente de ouro, em forma de figa. Uma fotografia da celebração mostra dezesseis pessoas, de várias gerações, abraçadas e sorridentes, olhando para a câmera. O registro familiar foi feito em uma casa na praia da Jureia, no litoral de São Paulo, que pertence à filha mais velha do casal, Ana Cristina Gayotto de Borba, e a seu marido, Jorge Luiz de Borba, desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. A psicóloga Maria Leonor Gayotto, que há mais de duas décadas sofre de Alzheimer, tem presença tímida na imagem. Aparece abraçada por uma filha, coberta por uma leve sombra. Entre filhos, netos, bisnetos e genros, todos na foto têm relações de parentesco muito bem definidas com ela e seu marido. Com uma única exceção: uma pessoa, que aparece no canto direito.
Usando tiara nos cabelos e vestido lilás, com um sorriso em que faltam três dentes pré-molares superiores, está Sonia Maria de Jesus. Soninha, como é chamada por todos, costuma ser definida nas redes sociais dos integrantes da família como “nosso anjinho”, “um ser de luz”, “um amor puro, que não espera nada em troca”. Às vezes, diante de estranhos, a explicação é mais objetiva: “É uma senhora que pegamos para criar quando ela tinha uns 11 anos.” Naquela noite de Natal, ela também ganhou seu pingente em forma de figa.
Soninha é uma mulher negra, baixinha e vivaz. Tem 50 anos, 1,53 metro de altura, cerca de 90 kg e olhos amendoados que costuma abrir bem quando tenta entender algo que lhe dizem. Sempre que há chances, demonstra sua afinidade extraordinária com crianças, correndo para abraçá-las. Tem mania de recortar fotos de bebês em revistas, para colar em um caderno ou na parede do seu quarto.
É surda desde criança. Nunca aprendeu a ler e a escrever. Só começou a ter aulas de Libras, a Língua Brasileira de Sinais, há um ano. Por isso, varou décadas sem qualquer elocução, se comunicando apenas por meio de grunhidos ou de gestos primários. Quando está agitada, o que acontece principalmente à noite, solta gritinhos agudos. Às vezes, gesticula para o vazio, como se falasse com amigos imaginários.
Em junho de 2023, Soninha virou personagem do mais estrepitoso caso de trabalho doméstico análogo à escravidão no Brasil. Nas últimas semanas, uma outra fotografia em que ela aparece, desta vez séria, vem percorrendo as redes sociais. É um card de uma campanha global chamada “Sônia Livre”. Irmãos biológicos, ativistas e artistas pedem que ela saia da casa de Ana Cristina Gayotto de Borba e do desembargador Jorge Luiz de Borba, que fica em um condomínio de alto padrão em Florianópolis. Soninha retornou para a casa dos patrões três meses depois de ter sido resgatada por uma equipe de combate ao trabalho escravo contemporâneo, formada por auditores fiscais, promotores, defensores públicos e policiais federais.
Na fotografia usada no card, feita no dia em que foi resgatada, Soninha usa uma camisa branca, um blazer marrom – e o mesmo pingente em forma de figa oferecido aos descendentes do casal Maria Leonor e Luiz Carlos Gayotto. O contraste entre as duas fotografias, a do Natal de 2022 e a de junho de 2023, atravessa tantas, mas tantas dimensões, que poderia ser aquilo que os sociólogos chamam de “fato social total”. É um caso que, examinado em detalhes, revela a totalidade da sociedade e das suas instituições.
Em quase tudo – e não apenas na coincidência do sobrenome – a baiana Deolina Ana de Jesus lembrava a escritora mineira Carolina Maria de Jesus, autora do extraordinário Quarto de despejo, livro publicado nos anos 1960 que narra a rotina brutal em uma favela paulistana. Ambas habitavam um mesmo planeta embrutecido pela miséria. Ambas moravam em barracos de madeira e saíam cidade afora todos os dias para tentar arrumar um naco de dinheiro. Ambas costumavam usar um lenço amarrado na cabeça, à maneira das lavradoras. Eram mulheres negras, de traços fortes. Carolina Maria de Jesus, no período em que rodou o mundo com seu livro traduzido em catorze idiomas, às vezes aparecia nas fotografias rindo. Deolina Ana de Jesus, ou “dona Ana”, como era chamada pelos conhecidos, posava sempre com um meio sorriso – não gostava de expor a falta de dentes. Baixinha, com olhar meigo, parecia uma menina.
Dona Ana nasceu em 28 de março de 1945 em Boninal, uma região da Bahia conhecida pela beleza da Chapada Diamantina e pela profusão de comunidades quilombolas. Tinha dificuldades de contar para os filhos, em uma linha cronológica clara, como sua história se desenrolou. Pelo pouco que eles conseguiram pescar, ela se mudou quando tinha cerca de 20 anos para a casa de familiares em São Bernardo do Campo, em São Paulo, para tratar de um ferimento grave que tivera nas costas ao passar por uma cerca de arame farpado. Conheceu um primo que se chamava Agenor e, com ele, mudou-se para um barraco em uma ocupação na Vila Dalva, na divisa entre São Paulo e Osasco. Os dois tiveram três filhas: Sônia, logo chamada em casa de Soninha; Marlene, conhecida como Lene; e a caçula Aparecida, apelidada de Cida.
A vida com Agenor era como entrar todos os dias no círculo mais baixo do Inferno de Dante. Ele era alcóolatra e, em seus muitos momentos de fúria, espancava dona Ana e aterrorizava as filhas. Lene e Cida de Jesus, hoje com 48 e 46 anos, respectivamente, têm lembranças sofridas e meio diluídas desse período, como naqueles filmes em que as memórias voltam em flashes. Lembram vagamente, por exemplo, dos momentos em que a mãe alimentava as filhas embaixo da cama, com medo de o marido aparecer, possuído por surtos de violência.
O único refresco do dia era quando as meninas iam para uma creche que ficava na rua de cima, a Menino Jesus de Vila Dalva, hoje rebatizada como Recanto da Alegria III. Ali, das sete da manhã às quatro da tarde, as três irmãs tinham comida e segurança. E, ali, a psicóloga Maria Leonor Cunha Gayotto coordenava um projeto voluntário da PUC-SP. Chamava-se Socialização em Creche de Periferia.
Já com deficiência auditiva, até hoje não se sabe ao certo por qual razão – A relação consanguínea dos pais? A violência doméstica? –, Soninha virou alvo preferencial das investidas do pai. Dona Ana entrou em pânico. Em 1982, na creche, pediu para que Maria Leonor Gayotto tirasse Soninha daquele tormento e a levasse para a sua casa. A psicóloga ficou abalada. Contou para o marido. Disse que estava com o coração partido só de imaginar o destino da menina naquela comunidade e que gostaria de levá-la para casa, um apartamento no bairro da Vila Sônia, na Zona Oeste de São Paulo. O médico concordou. E assim, aos 11 anos, Soninha mudou de casa. Era a “circulação de criança”.
O conceito foi disseminado pela antropóloga americana radicada no Brasil, Claudia Lee Williams Fonseca, quando publicou o livro Caminhos da adoção, em 1995. O termo é usado para os casos em que a responsabilidade pela criação de uma criança é transferida de um adulto para outro. É uma transação usual entre famílias pobres, em que um dos filhos pode ir morar com um vizinho, com outro parente ou com alguém em melhores condições financeiras em uma adoção informal – muitas vezes provisória e na qual o adotado não perde necessariamente o contato com a família biológica. Por tudo o que os filhos ouviram de dona Ana ao longo de décadas, era esse o arranjo que ela tinha em mente. Dona Ana esperava que, assim que seu inferno doméstico passasse, teria a filha mais velha de volta. Mas, quando Soninha deixou de ir à creche e desapareceu de seu radar, ela entrou em desespero, um estado que persistiu por toda a sua vida. As circunstâncias exatas desse sumiço são um grande vácuo na trajetória de Soninha. Perguntas cruciais – Quando exatamente ela deixou de ir à creche? Em que dia foi levada da casa da mãe? – não podem mais ser respondidas pelos três adultos envolvidos no episódio. O médico Luiz Carlos Gayotto e dona Ana morreram. Maria Leonor Gayotto não consegue mais recontá-lo.
Depois de se separar de Agenor, dona Ana foi morar com seu segundo companheiro, Helvécio. Teve mais quatro filhos: Marcos, Marcelo e as gêmeas Marta e Marisa de Jesus. Ele também era abusivo – também bebia, também era violento. Para arrumar comida, dona Ana andava quilômetros a pé de casa até o Mercado da Lapa ou o Ceagesp, ambos na Zona Oeste de São Paulo, de olho na xepa descartada pelos comerciantes. Ou pedia alimentos na porta das casas em bairros mais abastados. Às vezes conseguia, às vezes era maltratada. Quando levava os filhos a tiracolo, avisava: “Aqui ninguém vai roubar nada dos outros.”
Reunidos em volta de uma mesa, na tarde de um sábado de maio, os irmãos Jesus receberam a piauí. Lembraram desse período, entre risos e lágrimas, um emendando a memória do outro. Os filhos se derretem por dona Ana. Dizem que, por obra dela – uma mulher preta e analfabeta –, todos ali foram à escola, ninguém jamais se envolveu com drogas ou teve passagem pela polícia. E a descrevem como uma mãe amorosa que só começou a sorrir um pouco quando conseguiu se livrar do segundo companheiro e um pouco mais ainda quando os filhos cresceram e passaram a pegá-la no colo para rodopiá-la pela casa. Era uma mulher tão alucinada por laranjas que as consumia de maneiras heterodoxas, como em sucos feitos com água fervendo. Católica, gostava de ir à missa na Igreja Nossa Senhora do Monte Serrate, no Largo da Batata, em Pinheiros, porque ali ninguém a conhecia. Ia sempre a pé e levava junto pelo menos um dos filhos.
Criou a família usando o mantra das brasileiras iletradas que comeram o pão que o diabo amassou: “Estudem para ter uma vida melhor do que a minha.” Os filhos foram matriculados na escola pública do bairro, a General Álvaro Silva Braga. Lene de Jesus era a filha mais espoleta. Vivia pulando o muro para fugir. Dona Ana a pegava pela mão, a depositava na frente do portão escolar e ordenava: “Entra.” Até o fim da vida, mesmo quando os filhos começaram a ganhar dinheiro suficiente para levá-la em lanchonetes, manteve uma ausência de senso de merecimento que os deixava desconcertados. Só topava comer fora de casa se pudesse ir em horários de pouco movimento e ficar em mesas afastadas. Tinha receio de que rissem de sua aparência, por causa dos cabelos ralos cobertos com um lenço ou de um volume perceptível no abdômen. Era uma hérnia que ela não queria operar, porque tinha medo de morrer sem reencontrar Soninha.
A busca pela filha perdida é relatada pelos irmãos em detalhes, como um grande luto que pairava pela casa. Primeiro com as duas mais velhas, Lene e Cida de Jesus, depois com os quatro mais novos, que nem haviam conhecido Soninha, ela percorria uma via-crúcis pela cidade. Dona Ana estava sempre à procura de uma funcionária da creche que, na memória dos filhos, se chamava Tia Rosa. Era o único elo com a psicóloga Maria Leonor Cunha Gayotto. Mas a mulher sempre lhe dava endereços e números de telefone que não existiam. Certa vez, dona Ana ouviu dessa funcionária uma frase matadora: “Sônia usa aparelho de surdez e mora nos Estados Unidos, com a família de um médico famoso. Vai cuidar dos seus outros filhos.” Marta de Jesus lembra: “O que tivemos todos esses anos da Sônia é a história que carregamos da minha mãe. Das buscas, do desespero, do choro, da culpa. Ela dizia que buscou a única ajuda que conseguiu e acabou que levaram a filha dela.”
A biografia de Soninha é cheia de datas imprecisas. Por volta de 1989, por exemplo, um episódio nebuloso abalou sua família biológica. As irmãs Lene e Cida de Jesus, mais uma vez, só conseguem lembrar de fiapos da cena. Do nada, Soninha, já adolescente, apareceu no portão da casa. Olhou para o barraco de madeira e, de repente, começou a urrar, apontando na direção da creche. Foi uma aparição rápida. Soninha entregou para a mãe uma foto, em que aparece usando um moletom branco com a estampa de um guarda-chuva colorido, abraçada a uma menina loira. As duas estão de pé, na frente de uma parede decorada com a bandeira do Brasil, no que parecia ser um evento escolar. Dona Ana também não conseguia recontar exatamente o que acontecera, mas ficou dilacerada, porque interpretou aquilo como um desespero da filha para ir embora e nunca mais voltar ali, naquele barraco. Ainda assim, nos anos seguintes e à medida que a situação da família melhorava, dona Ana continuou a procurá-la pela cidade. Os outros filhos chegavam a ficar impacientes. “Um dia ela começou a falar da Sônia e, como sempre, a ficar muito triste. Eu me irritei e disse: ‘Mãe, desiste dessa mulher! Ela está com uma vida boa, nos Estados Unidos, e não quer saber da gente, vai saber como lida com os traumas que viveu aqui. Ou então já morreu’”, lembra Marta de Jesus.
Dona Ana morreu aos 70 anos, às 4h35 do dia 17 janeiro de 2016, no Hospital Universitário da USP, por causa das complicações de uma cirurgia de emergência na hérnia. Dias antes, durante a virada do ano, tivera uma de suas crises de choro, em que chamava pelo nome de Sônia. Em sua declaração de óbito, os filhos não colocaram o nome da irmã que evaporou. Mas Cida de Jesus guardou, no fundo de uma caixa, uma cópia da certidão de nascimento dela, junto com a foto em que está ao lado da menina loira.
Soninha chegou na casa da psicóloga Maria Leonor e do médico Luiz Carlos Gayotto achando tudo estranho. No início, dava pequenos chutes na empregada que ficou décadas na casa, Zeli Martinha da Silva. Em 1983, quando já havia completado 9 anos, foi matriculada na Escola Estadual Professora Marina Cintra, no bairro da Consolação, em São Paulo. Na ficha escolar, guardada na secretaria do colégio em uma velha pasta cor salmão, ela aparece em uma fotografia 3×4, com um casaco de malha com zíper fechado até o pescoço. A ficha informa que ela foi considerada desistente porque só estudou ali uns poucos meses.
No apartamento do casal, prevaleceu a percepção de que ela tinha problemas cognitivos que impediam qualquer aprendizagem. Durante dez anos, Soninha foi mantida por ali, como uma pessoa quase da família. Fazia viagens com os Gayotto para a Praia da Jureia, onde a família sempre manteve uma casa, ou para hotéis no litoral ou no interior do estado. Aparecia em fotos de celebrações domésticas, quase sempre sorrindo.
Em 1992, o casal Maria Leonor e Luiz Carlos Gayotto andava ocupado. Ele tinha 59 anos e era presidente da prestigiosa Associação Internacional para o Estudo do Fígado (IASL), além de membro dos comitês de hepatite da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do seu braço pan-americano, a Opas. Percorria o mundo – América Latina, África, Índia, China. Ela tinha 56 anos e também estava em plena atividade. O Instituto Pichon-Rivière, que fundara em 1984, se transformara havia três anos também em uma fundação, chamada M.L.C. Gayotto. Além de dar aulas, a instituição organizava seminários, prestava consultoria sobre liderança para empresas privadas e publicava livros, como aquele sobre creches.
Zeli, a empregada da família, anunciou que já havia ajudado a criar os quatro filhos do casal e que se aposentaria. Soninha tinha 18 anos. Foi, então, transferida de cidade e de núcleo familiar. Passou a morar com Ana Cristina Gayotto, na época com 33 anos, e seu marido Jorge Luiz de Borba, que estava com 36. Eles já tinham três filhas. Primeiro, Soninha morou com eles em Blumenau, onde Borba construía sua carreira como advogado trabalhista, em uma banca fundada por seu pai, e onde seria presidente da subseção local da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Em Blumenau, chegou a ser matriculada em uma escola para deficientes que já fechou as portas – ninguém da família sabe dizer ao certo quanto tempo ela ficou por lá. Tinha resistência ao aprendizado, virou de novo uma desistente. Em 2008, Soninha foi viver em Florianópolis, onde Borba virou desembargador do Tribunal de Justiça, seguindo os passos de seu pai, João de Borba.
Arua de onde dona Ana sempre se recusou a sair, para ser encontrada no caso de Soninha voltar, hoje tem asfalto, posto de saúde, ponto de ônibus, supermercado. Os barracos, pouco a pouco, foram substituídos por casas de alvenaria. O da família Jesus foi o último a passar por essa transformação. Os irmãos moram no mesmo terreno em que cresceram, em cinco construções por onde espalharam seus núcleos familiares, com exceção de Marcos de Jesus, que mora com a mulher e os filhos em outro bairro.
As irmãs mais velhas, Lene e Cida de Jesus, são as mais tímidas diante de estranhos. Cida está desempregada. Lene é auxiliar de limpeza na USP. Os três mais novos são despachados, cresceram com noções de cidadania inimagináveis na época de dona Ana. Discorrem sobre a força das pessoas da periferia, sobre o direito à identidade e preconceito racial, se declaram cientes de suas origens e orgulhosos de onde chegaram.
Marcos de Jesus tem 40 anos, já foi manobrista e balconista, mas prefere ser motoboy de uma hamburgueria. Diz que adora a liberdade de circular pela cidade e, quando passa por um bairro muito pobre, fica emocionado e pensa no passado difícil. Fala coisas como: “Meu pai foi um homem violento, mas quando ficou muito doente, cuidei dele. Apesar de tudo, eu tive um pai. Fico pensando: será que a Sônia vive com um vazio de não saber da família dela?”
Marcelo tem 38 anos e é técnico em segurança do trabalho. Estudioso e ponderado, foi eleito pela família para falar do Caso Sônia com a imprensa, quando o episódio ganhou atenção nacional. Marisa e Marta de Jesus, as gêmeas, têm 34 anos. A primeira chegou a cursar faculdade de pedagogia e hoje é promotora de vendas. Marta concluiu o curso superior, é formada em serviço social. Já trabalhou como agente comunitária de saúde e ganha um extra alugando kits de decoração para festas. “Mesmo com uma mãe que vivia dentro de uma comunidade, num estado de vulnerabilidade grande, com violência doméstica, a gente conseguiu se erguer. Todo mundo aqui desenvolveu instinto de sobrevivência, de autonomia, de autocuidado. Teve chance de estudar e se ajuda nas horas difíceis. Tudo o que a Sônia não teve chances de conseguir na vida dela,” diz Marta de Jesus.
Os filhos de dona Ana cresceram unidos, acostumados a decidir tudo em conjunto. Durante anos, convocaram reuniões extraordinárias para discutir os problemas de cada um. Nas duas últimas eleições presidenciais, o hábito foi interrompido pela polarização política, que rachou a família ao meio. Uma ala fechou com Jair Bolsonaro. Outra votou em Lula. Os encontros esfriaram. Até que um telefonema no dia 13 de junho de 2023 voltou a unir a família.
Nesse dia, uma terça-feira, Marcelo de Jesus recebeu uma ligação do procurador do Trabalho Italvar Filipe de Paiva Medina, integrante da equipe de combate ao trabalho análogo à escravidão. O procurador queria saber se ele tinha alguém na família com quem havia perdido contato. O irmão de Soninha achou que era uma tentativa de golpe, mas foi entendendo do que se tratava com o desenrolar da conversa. Pediu um tempo para conversar com os irmãos. Ligou para Cida de Jesus, falou para ela pegar a cópia da certidão de nascimento de Soninha e a fotografia, para que o procurador pudesse checar se estavam falando da mesma pessoa. Quando soube que a irmã poderia estar viva, mas resgatada de um trabalho escravo, Cida caiu no choro. “A gente começou a assimilar que, de fato, era o reaparecimento da Sônia”, conta Marcelo. O grupo do WhatsApp, que andava parado, retomou um movimento frenético, que dura até hoje. “Ali a gente se juntou tudo de novo!”, diz Marcos.
Em setembro de 2022, uma denúncia anônima chegou ao Ministério Público do Trabalho de Florianópolis. O relatório sobre a acusação, redigido em burocratês, resume o que disse o denunciante:
Que trabalhou na casa do desembargador Jorge Borba e da sua mulher Ana Cristina Borba; que eles mantêm em sua casa, há mais de vinte anos, pessoa que atende pelo nome de Soninha, que é surda e muda e faz todo o tipo de trabalho doméstico para a patroa, de segunda a segunda, sem salário e sem registro; que dizem que ela é “como se fosse da família”, mas se veste como empregada e não se senta à mesa para comer com a família, além de morar em uma casinha fora da casa principal.
Em seguida, o relatório dava o endereço do casal: o condomínio residencial Servidão Laje de Pedra, no bairro de Itacorubi, em Florianópolis.
Parecia uma acusação altamente improvável. Não tanto pelo seu conteúdo – nos últimos anos, as denúncias de trabalho doméstico escravo vêm aumentando aos borbotões no país –, mas sobretudo por seus contornos. Além de ter feito carreira no direito do trabalho, o desembargador presidia a 1ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, cujas atribuições incluem julgar, justamente, casos trabalhistas. Os procuradores do MPT abriram um inquérito civil sigiloso. Na primeira fase da investigação, já viram que Soninha passara quase cinco décadas irrastreável aos olhos do Estado – uma perfeita antítese do ser político defendido no livro da psicóloga social Maria Leonor Cunha Gayotto. Só fora levada para tirar CPF, o documento que habilita os brasileiros para qualquer ato civil, no dia 23 de julho de 2021, cinco meses antes de completar 48 anos.
Os procuradores seguiram adiante. Cruzaram dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) e da Relação Anual de Informações Sociais (Rais). Nesta pesquisa, localizaram o registro de três empregadas que haviam trabalhado para a família Gayotto de Borba. Elas foram convocadas para depor. Na tarde de 13 de janeiro de 2023, as três deram depoimentos que confirmaram o teor da primeira denúncia – e eram espantosos.
Maria Lídia do Nascimento fora empregada doméstica do casal durante oito meses, entre 1º de agosto de 2015 e 31 de março do ano seguinte. Em seu testemunho, disse que a família do desembargador afirmava que Soninha era adotada, mas que na verdade era uma empregada. Passava roupa, arrumava a cama e servia o café de Ana Cristina Gayotto, sempre no quarto. Só sabia se comunicar por gestos. Ocupava um quarto com paredes mofadas e usava o banheiro das dependências no fundo da casa, reservadas aos funcionários. Vestia roupas usadas. Comia depois da família, com outros empregados. Disse que, certo dia, viu Soninha chorando muito, apontando para um dente. Penalizada, pediu para servir o café de Ana Cristina Gayotto, para ter a oportunidade de avisá-la de que a colega estava com muita dor. A patroa não se preocupou e continuou tomando seu café. Ela mesmo tirou um Dorflex de sua bolsa e deu para Soninha. Concluiu assim: “Soninha é uma espécie de mucama para a Ana.”
O depoimento seguinte foi o de Nadir Terezinha de Matos, que passara pela casa cinco anos mais tarde, do dia 3 agosto de 2020 a 9 de setembro de 2021. Fora cuidadora de Maria Leonor Gayotto que, por causa do Alzheimer, estava morando com a família da filha mais velha. O relato foi semelhante. Lá estavam o quarto nos fundos com paredes mofadas, os chás e cafés servidos no quarto da patroa, as refeições com os empregados, e Soninha chorando de dor pela casa, sem ser levada a médicos. Nadir de Matos disse que chegara a comprar dois sutiãs para dar de presente para Soninha, porque a via com assaduras embaixo dos seios. Certa vez, viu pus e sangue nos ouvidos da colega. Avisou o desembargador, ao que ele respondeu que depois pediria para que uma de suas filhas a levasse a um médico. Relatou que chorou várias vezes por vê-la naquela situação, mas entendeu que não tinha o que fazer, “por ser pobre e trabalhar para um desembargador”. E a definiu assim: “Uma escravinha que faz tudo o que eles mandam, varrer, lavar banheiro, limpar os quartos.”
O terceiro testemunho coube a Erni Terezinha Rau, que trabalhou na casa por quase cinco anos, entre 2 de janeiro de 2015 e 15 de junho de 2020, também como cuidadora de Maria Leonor Gayotto. O depoimento foi quase idêntico, tanto nos detalhes da rotina da casa quanto nas atribuições de Soninha. Rau afirmou que ela “é surda-muda”, “arrumava a cama da patroa”, “passava roupas” e “fazia algumas tarefas nos finais de semana.”
Os procuradores do Trabalho concluíram que havia indícios robustos de que estavam diante de uma coleção de atentados à lei. Para eles, os testemunhos apontavam não apenas para a manutenção de uma trabalhadora em condições análogas à escravidão. Também indicavam flagrante violação ao Estatuto da Pessoa com Deficiência que, entre outros, estabelece o direito à educação, à saúde, à previdência social. E ainda caracterizavam desobediência ao artigo 7º da Lei Maria da Penha, que não apenas pune a violência doméstica física contra a mulher, mas também a violência de natureza psicológica, moral e patrimonial. Eram suspeitas tão graves envolvendo um desembargador que o mpt tomou o cuidado de comunicar a Procuradoria-Geral da República.
Como Jorge Luiz de Borba tem foro privilegiado, o Ministério Público Federal pediu ao Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, a autorização para que auditores fiscais do trabalho pudessem fiscalizar a casa, junto com uma intérprete de pessoas surdas e uma assistente social. No STJ, o pedido caiu na mesa do ministro Mauro Campbell Marques. Ele avaliou que havia indícios de que a “situação inicial de acolhimento, com o passar do tempo, pode ter se degenerado em efetiva submissão às condições análogas à de escravo”. No dia 7 de maio de 2023, autorizou a operação.
A diligência foi acompanhada por representantes de cada uma das cinco instituições que compõem o Grupo Especial de Fiscalização Móvel para combate ao trabalho escravo contemporâneo: a Secretaria de Inspeção do Trabalho, órgão do Ministério do Trabalho, a Polícia Federal, o Ministério Público Federal, a Defensoria Pública da União e o Ministério Público do Trabalho. Boa parte dos integrantes foi deslocada de outras cidades e viajou até Florianópolis. Na manhã de 6 de junho de 2023, dezoito agentes públicos se reuniram em uma sala na sede da Polícia Federal. Combinou-se que a fiscalização seria feita de maneira discreta. A equipe usaria carros descaracterizados e, em um primeiro momento, apenas um auditor do trabalho e policiais federais entrariam na casa.
De repente, a reunião foi interrompida. O delegado José Leandro da Silva, da PF, avisou que uma notícia de que haveria uma diligência na casa do desembargador acabara de ser publicada no site g-1. Àquela altura, até mesmo o Tribunal de Justiça de Santa Catarina já havia sido consultado sobre o caso. O grupo avaliou que agora haveria tempo para o desembargador instruir testemunhas e, quem sabe, descaracterizar a casa. Resolveu continuar o trabalho mesmo assim. Entrou no condomínio às 9h45, quarenta minutos depois do vazamento.
O desembargador recebeu a fiscalização usando uma calça jeans e camiseta com a foto do rosto de uma criança, coberto com uma tarja com a palavra “cuidar”. Ana Cristina Gayotto apareceu no instante seguinte. O casal mostrou aos auditores os documentos de Soninha: o CPF tirado em 2021 e a carteira do primeiro plano de saúde, que entrou em vigência em agosto de 2021. Os fiscais descobriram ali que a primeira carteira de identidade de Soninha havia sido expedida em outubro de 2019.
A equipe visitou os aposentos descritos pelas testemunhas. Na edícula, havia dois quartos, separados por um banheiro. Em um deles, de fato com as paredes mofadas e infiltrações no teto, estava um guarda-roupa e uma cômoda, com pertences de Soninha. Do lado de fora da edícula, estavam algumas coisas dela, como se estivessem prontas para ser retiradas dali. No outro quarto, havia uma cama e um armário com roupas de cama, materiais de limpeza e jardinagem. Soninha, explicou o casal Gayotto de Borba, estava dormindo em um quarto na casa principal. O desembargador e a mulher foram buscá-la. Ela apareceu diante do Grupo Móvel pela primeira vez, vestindo um casaco lilás, de tricô. Um dos auditores foi inspecionar o quarto de onde ela viera. O cômodo tinha cama, armário com roupas de festa do casal Borba e prateleiras com livros. Não havia nenhum pertence de Soninha. Parecia um quarto de hóspedes.
O casal Borba disse que Soninha era tratada com muito amor, como alguém da família. Foi buscar fotografias familiares em que ela aparecia. A equipe de auditores percebeu que, mesmo com a ajuda de um intérprete e de uma assistente social, não daria para perguntar nada diretamente para Soninha. A cada tentativa de comunicação, ela olhava para os donos da casa, como quem busca orientação, e não sabia se expressar por sinais.
Os fiscais notificaram o casal, duas empregadas e uma cuidadora que estavam na casa naquele momento, para prestar depoimento na tarde do mesmo dia, na sede da Procuradoria Regional do Trabalho da 12ª Região. E foram embora.
Os depoimentos começaram a ser tomados às 17h. Agora, os auditores estavam acompanhados de um procurador do Trabalho e um defensor público federal. As empregadas falaram primeiro. Disseram que nunca viram Soninha fazer trabalhos domésticos, a não ser quando se oferecia para fazer algo leve, como enxugar a louça e arrumar camas, e que só convivia com integrantes da família Borba. Nunca ouviram falar de familiares de Soninha. Ouvidos em seguida, Ana Cristina Gayotto e Jorge Luiz de Borba foram breves. Contaram outra vez que Soninha era tratada como se fosse da família e que fora morar com a família quando tinha “por volta de 12 ou 13 anos de idade”.
O Grupo Móvel faria uma força-tarefa para colher mais dados, em um nível de detalhe que dificilmente seria visto se o investigado não fosse um desembargador. Vasculharam o sistema de saúde pública da cidade para ver se havia registros de atendimento a Soninha. Não havia nada. Consultaram a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae), cuja sede fica a 650 metros de distância da casa do desembargador, para saber se ela recebera assistência de alguma natureza. Nada. Um dos integrantes do Grupo Móvel foi até o endereço anterior do desembargador, em Blumenau. A casa havia sido demolida pelo novo proprietário, mas ele encontrou vizinhos que se apresentaram como amigos da família. Lembraram de Soninha. Disseram que era empregada doméstica.
Os fiscais do trabalho tiraram prints de posts nas redes sociais dos integrantes da família. Em alguns, Soninha aparecia em meio a festas familiares. Em uma publicação no seu Instagram, Ana Cristina Gayotto postou três fotos e agradeceu as homenagens que recebera pelo dia de seu aniversário. As primeiras mostravam a família, abraçada. Na terceira, aparecem as empregadas da casa. Soninha está entre elas. A dona da casa colocou na legenda: “Ajudantes de ferro.” Em outro post, dessa vez agradecendo pelas manifestações carinhosas pelo Dia dos Pais para o desembargador, ele aparece em uma foto segurando um cartão com o nome da equipe de funcionários da casa. No meio, está o de Soninha.
Ao todo, o Grupo Móvel ouviu onze testemunhas. As três mulheres que já haviam falado no início da investigação voltaram a ser chamadas e confirmaram seus depoimentos. O auto de infração detalha todos os testemunhos em 31 páginas escritas na linguagem vertiginosa dos ofícios. No documento, a palavra “Soninha” aparece 379 vezes. Ela é, em linhas gerais, uma personagem que anda pela casa gesticulando, executando trabalhos domésticos e fazendo refeições com as empregadas. Algumas testemunhas disseram que ela fazia esse tipo de serviços porque gostava. Três disseram que ela fazia massagens nos pés de Ana Cristina Gayotto, uma delas enfatizando: “Às vezes por horas.” Sete disseram ter a percepção de que ela era empregada doméstica. Quatro não fizeram menção a essa impressão. Ninguém negou que ela, em algum nível, fazia serviços na casa.
Entre os novos depoimentos, o de Laurita Gonçalves, que trabalhara para o casal quando eles ainda moravam em Blumenau e chegara a ir três vezes na casa de Florianópolis, foi um dos mais contundentes. A diarista afirmou que o irmão de Jorge Borba, o também advogado Paulo Borba, é padrinho do filho dela e “não tem nada a ver com a situação de Soninha”. Em seguida, disse que tinha “nojo” das declarações que havia visto na imprensa em que Jorge Luiz de Borba e Ana Cristina Gayotto declaravam que Soninha era tratada como se fosse da família. Contou que ela fazia vários tipos de serviços domésticos e não era paga por isso – e achava que ela “nem mesmo conhece dinheiro”. Garantiu que, nas muitas festas dadas pela família, Soninha estava sempre “bonitinha e arrumadinha”, mas, no dia a dia, usava “roupas nojentas”. E que não podia comer pratos “como salmão”, reservados apenas para a família. Também a definiu como uma “mucama” de Ana Cristina Gayotto.
Silvia Rieger, que fora empregada doméstica da família durante nove anos, de 2000 a 2009, ainda em Blumenau, reiterou essa rotina. Quando a família viajava de avião, Soninha ficava. Quando a família ia para a Praia da Jureia e Cabeçudas, era levada junto – mas lá trabalhava também. De acordo com Rieger, Ana Cristina Gayotto brigava muito com Soninha. Jorge Luiz de Borba, não. Também afirmou que tinha “muita pena” de Soninha.
O depoimento de Elisangela Ribeiro, que fez faxinas eventuais na casa da família entre 2017 e 2022, destoou dos demais. Disse que Soninha ganhava roupas novas, sim, às vezes era levada ao shopping, acordava na hora que queria e costumava usar a piscina da casa. Ainda assim, Ribeiro afirmou que se incomodava “com o fato de Soninha dormir na casinha lá de trás”. E Antonia de Jesus Alves, que trabalhou para o casal em dois períodos, de 2006 e 2008 e entre 2016 e 2019, disse que Soninha via muita televisão e fazia serviços como estender roupas de cama, apenas porque gostava e era perfeccionista. Disse que já havia visto uma professora indo duas vezes por semana dar aulas para ela. Ao final, afirmou que “a última vez em que teve contato com o sr. Jorge foi ontem, quando mandou uma boa tarde para ele e ele disse para ela falar apenas a verdade”.
Além da inspeção na casa, dos testemunhos, da análise da documentação só emitida a partir de 2019 – o que sugeria décadas de falta de atenção aos direitos básicos de Soninha – e às condições de trabalho e moradia, o Grupo Móvel levou em conta laudos feitos por uma psicóloga do Ministério Público do Trabalho e uma assistente social do Ministério do Trabalho. Ambos concluíram que ela sofrera graves violações de direitos e recomendaram que ela fosse afastada do casal.
No dia 9 de junho de 2023, o Grupo Móvel convocou o desembargador e sua mulher para uma audiência no Ministério Público para comunicá-lo formalmente de que o caso havia sido caracterizado como trabalho doméstico análogo à escravidão e que Soninha seria resgatada de sua casa. O casal não compareceu e enviou os seus advogados, que já levaram Soninha. Enquanto os defensores do casal ouviam os detalhes da notificação, ela ficou na sala ao lado, onde foi apresentada a Sandra Amorim, presidente da Associação de Surdos da Grande Florianópolis. De acordo com o auto de infração, “antes mesmo de terminadas as tratativas com os advogados, ela já havia aprendido a falar as cores ‘vermelho’ e ‘amarelo’ em Libras”. Para que Soninha não ficasse assustada, os fiscais a levaram para almoçar em um restaurante perto do Ministério Público do Trabalho. De lá, ela foi levada para a Casa de Acolhimento para Mulheres em Situação de Violência Doméstica – projeto Amadas. A família Gayotto de Borba foi proibida de saber onde ela estava.
No dia 15 de junho, Soninha foi levada a um dentista. Tinha várias cáries, além dos três dentes pré-molares superiores que já haviam sido arrancados, um outro estava tão comprometido que foi extraído para evitar uma infecção. Como sentia muitas dores na região lombar, no dia 27 de julho foi levada para um hospital. Uma tomografia encontrou um mioma uterino, que requer tratamento. Passou por cardiologista, fez exames auditivos e iniciou doses do calendário vacinal.
Asaga dos servidores públicos que consolidaram o combate ao trabalho escravo contemporâneo no Brasil começou nos anos 1970, quando os conflitos fundiários pegaram fogo na Amazônia Legal. Entidades como a Comissão Pastoral da Terra (CPT) denunciavam crimes horripilantes, como os de trabalhadores assassinados e enterrados em covas clandestinas. O Brasil ratificara várias convenções internacionais que condenavam os trabalhos forçados, mas, na prática, pouco se fazia para combatê-los. A pressão acabou vindo de fora. Em 1988, o assassinato de Chico Mendes, no Acre, arregalou os olhos da comunidade internacional. No ano seguinte, José Pereira Ferreira, um trabalhador de 17 anos, conseguiu escapar de uma emboscada em uma fazenda do Pará e saiu contando sua história. Causou outro rebuliço internacional.
Em 1994, o Brasil foi denunciado na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA por não tomar medidas sobre esse caso. Para não sofrer sanções, o governo de Fernando Henrique Cardoso se comprometeu a combater os trabalhos forçados e punir os responsáveis. A Procuradoria-Geral da República passou a fazer reuniões periódicas para discutir o tema. Além dos procuradores e de integrantes da CPT, participavam auditores fiscais do trabalho, juízes, deputados, senadores e entidades como a OAB. Combater esse tipo de crime ainda era missão quase impossível. Fiscais do trabalho sofriam ameaças de pistoleiros, e os criminosos tinham conexões com as delegacias do trabalho locais.
Em 1995, chegou-se a uma boa ideia. Foi criado o Grupo Especial de Fiscalização Móvel, que contaria com auditores diretamente ligados à Secretaria de Inspeção do Trabalho. O grupo é formado por auditores de várias regiões do Brasil e por servidores de outros órgãos, que se apresentam para fazer operações específicas. Todos são voluntários, não recebem remuneração extra pela atividade e atuam com cobertura da Polícia Federal ou da Polícia Rodoviária Federal. Os primeiros servidores a encarar o desafio, entre auditores, procuradores, defensores públicos, promotores e policiais, varavam o Brasil em condições precárias – atravessando rios, percorrendo matagais, dormindo em carros estacionados em estradas de terra, até chegar em fazendas para resgatar pencas de trabalhadores em condições sub-humanas e notificar seus patrões.
Com a direção do vento virando, um arcabouço legal em torno do tema foi saindo do forno. Em 2003, o Congresso Nacional aprovou a lei que alterou a redação do artigo 149 do Código Penal, que tipifica o crime de reduzir uma pessoa à condição análoga à de escravo. À luz da lei, isso acontece em quatro situações: trabalhos forçados, jornadas exaustivas, condições degradantes e restrições de locomoção. No ano seguinte, o Ministério do Trabalho criou o Cadastro de Empregadores que Submeteram Trabalhadores a Condições Análogas à Escravidão, logo chamado de “lista suja do trabalho escravo”. É um rol, atualizado a cada seis meses, de pessoas jurídicas e físicas autuadas pelos auditores e condenadas em duas instâncias na esfera administrativa. A lista é pública. Quem entra nela ali permanece por dois anos, período em que fica impedido de receber financiamentos públicos e, muitas vezes, fechar negócios. Fora a vergonha pública.
Desde a criação do Grupo Móvel, mais de 60 mil trabalhadores em condições análogas à escravidão foram resgatados. Em sua maioria eram homens, safristas, que, uma vez resgatados, voltavam para suas cidades. Mas uma categoria passava batida pelos fiscais – a das mulheres, sobretudo negras, tiradas de perto de seus familiares ainda meninas para trabalhar em domicílios urbanos, dia e noite, sem remuneração e sem educação formal. Muitas eram apresentadas como “filhas de criação”, que estavam sendo “protegidas” de uma circunstância ainda pior: a miséria de suas famílias biológicas. Algumas boas-novas foram aparecendo, para ajudar a clarear a diferença entre acolher uma pessoa e escravizá-la. Em 2013, a PEC das Domésticas definiu direitos como jornada de trabalho, aposentadoria e auxílio-doença. Em 2015, a Lei Complementar nº 150 estabeleceu o acesso a outros, como FGTS e seguro-desemprego.
Mas a invisibilidade dessas mulheres era tamanha que só em 2017, 22 anos depois de sua criação, o Grupo Móvel recebeu a primeira denúncia anônima de trabalho doméstico escravo urbano: o de uma senhora analfabeta de 68 anos que trabalhava em uma residência em Rubim, no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. Além de não pagar por seus serviços, a patroa tomava o dinheiro da pensão que a vítima recebia pela morte do marido. Ela foi resgatada. Entre 2017 e 2020, houve outros onze resgates domésticos em todo o país. Até que aconteceu o caso definido por especialistas na área como “paradigmático”: o de Madalena Gordiano, uma mineira que passou 38 anos trabalhando para três gerações de uma família de professores em Patos de Minas. Os patrões ainda a obrigaram a casar com um parente idoso da família, para que ela herdasse sua pensão de militar. O dinheiro, claro, ia parar na conta deles. Em abril deste ano, o casal Milagres Rigueira, com quem ela morou por décadas, foi condenado a catorze anos e sete meses de prisão e está recorrendo da sentença em liberdade. Já pagou indenização de 1,13 milhão de reais para Gordiano. E o empregador, Dalton Rigueira, teve o nome publicado na “lista suja”.
No dia em que foi resgatada, Gordiano foi consultada pelos fiscais do trabalho sobre se gostaria de dar entrevistas. Ela quis. Participou de uma reportagem exibida no Fantástico. A divulgação do caso, chocante, provocou um aumento nas denúncias anônimas. Em 2021, os resgates subiram para 31. Em 2022, foram 35. No ano passado, 41. O Grupo Móvel percebeu a importância de disseminar a noção do que é um trabalho doméstico análogo à escravidão.
E, com a divulgação do caso de Soninha, os fiscais acharam que cabia falar sobre ele também. De novo, o Fantástico exibiu uma reportagem sobre as denúncias contra a família do desembargador. Mas, dessa vez, deu ruim. A defesa do desembargador pediu no STJ a nulidade da investigação, por causa do foro privilegiado do desembargador e, no bolo, pediu também a punição do auditor fiscal do trabalho Humberto Camasmie, que dera entrevista para o programa de tevê, sob o argumento de que ele teria ferido seu dever de sigilo funcional. No dia 27 de agosto, o ministro Mauro Campbell Marques recusou o pedido da nulidade, mas afastou Camasmie do caso e mandou investigá-lo. Seu celular foi apreendido. Camasmie combate o trabalho escravo há seis anos. Participou da libertação de Madalena Gordiano.
Na mesma decisão que afastou o auditor, o ministro Campbell Marques considerou que não havia mais “elementos que possam fazer presumir que ainda estaria presente o risco de perpetração do delito” no caso de Soninha. Citou o depoimento da faxineira que dissera já ter visto Soninha usar a piscina da casa e não ter hora para acordar. E referiu-se ao episódio contado de modo difuso pelas irmãs biológicas, segundo o qual Soninha visitara a mãe e deixara uma fotografia, como um indício de que ela escolhera ficar com a família de Maria Leonor Gayotto. Assim, autorizou que o desembargador e a mulher tivessem acesso a ela no centro de acolhimento. Determinou que, se Soninha demonstrasse vontade inequívoca, poderia voltar para a casa do desembargador.
A família Gayotto de Borba contou para amigos que o reencontro foi emocionante, três meses depois de um afastamento compulsório. Vídeos repassados por eles mostram o desembargador e sua mulher, ao lado de um neto adolescente, em cadeiras colocadas no gramado do quintal da casa de acolhimento. Nas imagens, Soninha fica feliz ao vê-los e corre em direção a eles, com um ursinho de pelúcia nas mãos. Ana Cristina Gayotto chora e aponta para um álbum de fotografias. Soninha vê também o resto da família acenando por uma janela, do lado de dentro da casa, e também corre para eles. Minutos depois dessa cena, ela voltou para a casa do desembargador, onde está até hoje.
As instituições envolvidas no resgate produziram uma denúncia de 52 páginas, encaminhada para o Conselho Nacional dos Direitos Humanos, afirmando que se formou ali um ambiente de coação emocional, em que o casal Gayotto de Borba levou a família inteira para tumultuar o ambiente, apontou para uma mala e deu pequenos toques na perna de Soninha, como em um comando de adestramento. E que a cena não deveria ter sido suficiente para retirá-la do começo de um aprendizado de autonomia. A reação de Soninha ao ver os Gayotto de Borba, diz a denúncia, é prova de que ela “foi enredada em uma teia psicológica que a vinculava ao âmbito de convivência dos réus, como seu único mundo”.
A punição do auditor e a volta de Soninha à casa do desembargador foram interpretadas pelo Grupo Móvel e outras autoridades como um golpe sem precedentes, vindo do próprio Judiciário, no combate ao trabalho análogo à escravidão no Brasil. No dia 4 de setembro, a Defensoria Pública da União impetrou habeas corpus no Supremo Tribunal Federal contra a decisão do ministro Mauro Campbell Marques. “Não existe na jurisprudência brasileira um caso de uma vítima resgatada ser devolvida ao agressor dessa maneira. Foi um ‘desresgate’! São as mais altas autoridades das nossas cortes totalmente em descompasso com tudo o que prevê a nossa legislação sobre trabalho escravo”, disse à piauí o defensor público William Charley Costa de Oliveira, autor do pedido e integrante do Grupo Móvel.
No dia 7 de setembro, o ministro André Mendonça, em decisão provisória, negou o pedido. O ministro Silvio Almeida, dos Direitos Humanos e da Cidadania – que havia posado para fotos ao lado de Soninha dois meses depois de seu resgate, durante uma viagem oficial a Santa Catarina – ficou pasmo com a decisão de Mendonça. No dia seguinte, enviou por e-mail um ofício para o ministro do STF pontuando sua preocupação com as repercussões “para os direitos da senhora Sônia Maria de Jesus e para o respeito aos direitos humanos em geral, notadamente das pessoas com deficiência”.
O ministro Mendonça não gostou. No dia 9, um sábado, deu um prazo de 24 horas para Silvio Almeida explicar quais eram os “fortes indícios” de trabalho escravo e quais os “documentos correspondentes aos atos que tenha adotado, na condição de ministro de Estado dos Direitos Humanos e da Cidadania, para o fim de proteger esses direitos e interesses”. Um mal-estar vazou pelos corredores do alto escalão do governo petista. Silvio Almeida, irritado, respondeu no mesmo dia. Disse que não cabe à sua pasta conduzir investigações de um processo que corre em segredo de Justiça, mas que é seu dever “promover diálogo entre esferas do Estado e da sociedade civil, em prol dos direitos humanos, notadamente das pessoas com deficiência”. Com isso, o sábado quente esfriou.
O Conselho Nacional de Justiça abriu uma reclamação disciplinar para investigar o desembargador. E o mérito do habeas corpus, que poderia devolver Soninha ao abrigo, ainda não foi julgado. A decisão agora caberá à Segunda Turma do STF. No dia 7 de novembro do ano passado, a Procuradoria-Geral da República apresentou um parecer opinando que ela seja de novo retirada da casa dos Gayotto de Borba. O subprocurador-geral da República, Carlos Frederico Santos, apontou os laudos técnicos que atestam a vulnerabilidade de Soninha, que não teria como manifestar sua vontade “de forma livre e inequívoca”. Com seu nome embolando nas mais altas cortes do Judiciário, Soninha, de fato, nem sabe que se chama Soninha.
No Livro Vendo vozes: uma viagem ao mundo dos surdos, o médico Oliver Sacks especula “como seria nascer no silêncio e chegar à idade da razão sem adquirir um veículo de pensamento e comunicação”. Conclui que é uma das calamidades mais terríveis que podem acontecer a um ser humano. O escritor mostra como, ao longo da história, crianças com surdez congênita receberam erroneamente o diagnóstico de retardamento mental – como os deaf and dumb, que foram julgados estúpidos ao longo de séculos e declarados incapazes de herdar bens, receber instrução, ter um trabalho estimulante. Na verdade, eram cérebros plenamente capazes, mas com uma maneira de se expressar que se daria fora do mundo dos fonemas.
Sacks puxa o fio das implicações – para um ser humano com deficiência auditiva total – do não aprendizado da língua dos sinais. Elas são trágicas para o cérebro da pessoa, para a identidade da pessoa e para o que transforma essa pessoa numa pessoa. Os sinais usados pelos surdos não são uma mímica primitiva para traduzir a língua falada. São complexos símbolos abstratos com estrutura interna refinada. Em 1960, o linguista William Stokoe provou, em uma obra chamada Sign language structure, que a língua dos sinais preenche todos os critérios linguísticos de uma língua genuína – no léxico, na sintaxe, na capacidade de gerar um número infinito de proposições. Mais adiante, neurologistas também provaram que a língua de sinais é tratada, sim, como uma língua pelo cérebro.
Depois de ser resgatada, Soninha passou por duas camadas de análises. Na primeira, quando estava na casa de acolhimento, psicólogos constataram que ela não domina conceitos abstratos. Na segunda, quando já estava de volta à casa da família Gayotto de Borba, passou por um exame para atestar sua capacidade cognitiva, feito por um psiquiatra pago pelo desembargador, com autorização judicial. No laudo, Soninha aparece como portadora de deficiência intelectual moderada. Tem idade mental equivalente a entre 6 e 9 anos de idade e evidente afeto pela família do desembargador.
Para a família Gayotto de Borba, é uma prova de que ela era incapaz de aprender e que eles deram as ferramentas que estavam ao seu alcance – o amor e a proteção familiar. Para os integrantes do Grupo Móvel e equipe envolvida no pós-resgate, é o contrário. É uma das provas do tamanho da negligência a que ela foi submetida por décadas, na casa de pessoas instruídas. Sem acesso a nenhum tipo de língua, foi jogada no perigo de incapacitação intelectual permanente e relegada ao único trabalho que julgavam estar ao seu alcance, o doméstico. Ainda por cima, não remunerado.
Falar a língua de sinais com outros surdos – e aprender com eles – é entrar em um universo cuja magnitude dificilmente é concebida por quem está de fora. À medida que aumentou a compreensão do quão poderosa é essa experiência, os surdos foram deixando de ser vistos como um grupo patológico e passaram a ser identificados como uma comunidade cultural e linguística diferente. Há um ano, por determinação judicial, Soninha frequenta a Associação de Surdos da Grande Florianópolis. De segunda a quinta, das nove da manhã às cinco da tarde, participa de aulas de dança, pintura, faz passeios e é introduzida na língua dos sinais. Aos poucos, começa a se expressar por meio deles. Também aprendeu a escolher suas roupas sozinha.
Nas línguas orais, as pessoas recebem nomes – que são palavras feitas de fonemas e letras. Em Libras, recebem um sinal próprio, inspirado em alguma característica de sua personalidade ou de sua aparência. Soninha ganhou de seus professores e novos amigos, surdos, o mesmo sinal usado para o sorriso. Na prática, é a primeira vez que entende o próprio nome.
Quando o caso de Soninha explodiu, Florianópolis entrou em polvorosa. Um dia depois de receber os fiscais do trabalho em casa, o desembargador falou em uma sessão especial do Tribunal de Justiça. Com os olhos marejados, disse: “Continuo de cabeça erguida, vou em frente. A maldade foi feita, tudo bem. Não choro por mim, choro pela minha família, meus filhos, meus netos.” E completou: “Vocês podem ficar certos de que não fiz nada de errado. Foi maldade pura, vindita pessoal.” Para amigos, a família tem dito que a denúncia anônima foi feita por uma trabalhadora que foi demitida e quis se vingar, mas não diz por que testemunhos tomados depois reiteraram o teor da acusação.
O presidente do tribunal, João Henrique Blasi, disse que Soninha é uma “moça acolhida desde os 11 anos, convivendo familiarmente, como mais um filho da família”. E afirmou ter certeza de que “a verdade prevalecerá e a Justiça será feita”. Na Assembleia Legislativa de Santa Catarina, quatro deputados estaduais – dois do PL, um do PT e outro do MDB – se solidarizaram com o desembargador. Um deles, Ivan Naatz, do PL, disse: “Quero fazer uma reflexão sobre o ataque que recebe o desembargador Jorge Luiz de Borba sobre a utilização de uma empregada na condição análoga à de escrava. Sou testemunha de que aquela senhora era tratada como filha, como uma irmã, como membro da família e não como empregada.”
Nas redes sociais, amigos e vizinhos da família saíram em defesa do casal, descrevendo fins de semana, ao longo de anos, em que Soninha transitava pela casa, sempre sorridente. Em sua conta no Instagram, a advogada Eleonora Lebarbenchon Silveira de Borba, cunhada do desembargador, postou fotos de Soninha abraçada a crianças da família, com a legenda: “Era uma vez uma menina abandonada, que foi muito machucada pelo seu pai. A menina teve a sorte de ser acolhida por uma família generosa e, desde então, soube o que era ser amada e também aprendeu a amar. E todos são felizes. Fim da história.”
Colegas do desembargador circularam em grupos de WhatsApp um vídeo com cenas de Soninha andando na praia, boiando na piscina, comendo sushi, correndo para abraçar crianças e adolescentes da família ou, ainda pequena, com uma camiseta amarela, sorrindo para o médico Luiz Carlos da Costa Gayotto. A legenda: “Momentos de um trabalho análogo à escravidão.”
O casal Gayotto de Borba é muito católico. Frequenta grupos de oração e de aconselhamento conjugal. Costuma fazer peregrinações para santuários, algumas vezes levando filhos, empregadas – e Soninha. Ana Cristina Gayotto gosta de brincar que a família é de “loucos do bem”, porque gosta de ajudar as pessoas. No círculo religioso que frequentam, a versão preponderante é a de que eles foram punidos por fazer uma caridade.
Olhando para essa comoção, Silvia Maria Fávero Arend, historiadora do direito da infância, identificou um de seus objetos de estudo se materializando. Em sua tese de doutorado, ela tratou da criação do Juizado de Menores de Santa Catarina, em 1935, que entregou ao juiz a tarefa de inventar o que fazer com os jovens “abandonados”, como eram chamados na época. O magistrado criou uma espécie de experimento em que eles ficavam aos cuidados de “guardiões”, pessoas da elite local que os recebiam em troca de um soldo. “Mas, na lógica do Juizado, essas crianças teriam que ir para a escola. Só que elas não iam, elas eram obrigadas a trabalhar. O juiz foi percebendo que esse programa não funcionava, e depois ele acabou extinto”, disse Arend à piauí.
O experimento do juiz foi à breca porque acabou sabotado pela lógica caritativa entranhada na sociedade brasileira. “A lógica do ‘filho de criação’ – e note que a palavra ‘criado’ vem de ‘criar’ – é a de que pessoas extremamente pobres passariam de certa forma a ser protegidas, era uma relação de dádiva, de dar e receber”, explica Arend. “E o que esses menores extremamente pobres davam em troca? Trabalho.”
Essa relação foi de vento em popa, na informalidade, até que o Estatuto da Criança e do Adolescente começou a barrá-la, definindo a importância de deixar os menores com suas famílias biológicas. A lógica caritativa teve que dar lugar a uma outra, poderosa e transformadora: a dos direitos. “É importante pontuar que esse filho de criação não é o adotado – que recebe exatamente o mesmo amor de um filho biológico, com todos os esforços que uma família faria pelo bem-estar e pela educação dele.” À frente do Laboratório de Relações de Gênero e Família da Universidade do Estado de Santa Catarina, Arend fez uma manifestação de cunho historiográfico anexado ao processo. Caracterizou as relações de trabalho de Soninha na casa do desembargador como análogas à escravidão.
O procurador Thiago Lopes de Castro, hoje lotado em Brasília como vice-coordenador do Grupo de Trabalho do Ministério do Trabalho, atuou por cinco anos em Patos de Minas, onde participou do resgate de Madalena Gordiano. Ele traça paralelos entre os casos de Madalena e Soninha: “Ambas nasceram em 1973. Madalena foi resgatada aos 46 anos, Sônia aos 49. Ambas foram resgatadas após quase quarenta anos de escravidão contemporânea. Ambas trabalharam para duas gerações da mesma família. Foram vítimas de trabalho infantil e trabalho escravo doméstico. Foram privadas da educação formal por essas famílias. Tiveram a saúde negligenciada. Dormiam em quartos destinados exclusivamente para trabalhadoras domésticas. Ambas tinham restrição parcial de liberdade, com convívio social basicamente no núcleo familiar. Trabalhavam de domingo a domingo, sem férias, sem feriado. Portanto, foram submetidas a jornadas exaustivas, uma das modalidades de trabalho escravo contemporâneo.”
Castro também elenca aquilo que define como tratamento discriminatório: “No caso da família da Madalena, os quatro irmãos têm nível superior, dois deles com pós-doutorado. No caso da família que acolheu a Sônia, uma é CEO de uma grande empresa, uma é advogada, uma é médica, e o outro, engenheiro.” Para ele, Soninha, se fosse tratada como uma filha, teria outra vida, apesar de sua deficiência auditiva e cognitiva.
Integrante da equipe do Departamento Jurídico XI de Agosto, ligado à Faculdade de Direito da USP, que presta auxílio voluntário aos irmãos Jesus, a advogada Juliana Costa Hashimoto Bertin Stamm analisa desta forma as manifestações em defesa da família Gayotto de Borba: “Tem um provérbio que diz que para educar uma criança é preciso de uma aldeia inteira. Pois para que ela tenha seus direitos violados, também. Ninguém, durante quarenta anos, estranhou uma mulher preta, com dentes faltando, comunicando-se por gemidos e indocumentada, circulando em meio a uma família abastada, com filhos com ensino superior e saúde plena garantida. É um ambiente em que só olharam para as limitações dela, mas ninguém nunca se interessou por suas potencialidades.”
Em junho de 2017, a revista americana The Atlantic publicou uma reportagem intitulada My family’s slave (A escrava da minha família). A chamada da capa entregava o tom do artigo confessional: “Lola tinha 18 anos quando o meu avô a deu de presente para a minha mãe. Nós a trouxemos para os Estados Unidos. Por 56 anos ela trabalhou em nossa casa.” Era a história, de cair o queixo, de uma mulher que fez os serviços domésticos e criou silenciosamente as crianças de uma família de imigrantes filipinos respeitáveis – o pai, era advogado; a mãe, médica. Enquanto eles viviam o sonho americano, a mulher trabalhava sem pagamento, sem documentos, sem um segundo de folga e sem a menor possibilidade de rever a família biológica. À medida que cresciam, os filhos foram atentando para a gravidade daquela relação – a família poderia até ser deportada se o governo americano descobrisse a situação em que a mulher foi mantida por décadas. O autor do artigo, Alex Tizon, jornalista vencedor do Prêmio Pulitzer, morreu de câncer, pouco antes da publicação do artigo. Quando a reportagem saiu na revista, sobreveio uma controvérsia incandescente, cujo pano de fundo era a reponsabilidade de toda a família em um crime que foi, digamos assim, herdado.
No caso de Soninha e, à luz da lei, o Grupo Móvel não teve dúvidas. Incluiu os quatro filhos do casal, hoje adultos, tanto na condição de investigados como em uma ação civil pública na Justiça do Trabalho que pede indenização de 4,9 milhões de reais para Soninha, além de pagamento de pensão alimentícia de três salários mínimos por mês. A depender do rumo dos processos, os nomes de todos podem ser incluídos na lista suja do trabalho escravo. Na última edição, publicada em abril deste ano, 43 dos 642 incluídos foram parar ali por manter em suas casas domésticas em condições análogas à escravidão.
A filha mais velha do desembargador, Maria Leonor Gayotto de Borba Bachir, tem 42 anos. É advogada e trabalha como executiva do setor financeiro da Gympass, em Nova York. Outra filha, Maria Alice Gayotto de Borba dos Santos, de 37 anos, é ginecologista obstetra. Era a menina loira que aparecia na fotografia guardada por Cida de Jesus, ao lado de Soninha. Já trabalhou como médica voluntária num presídio de Santa Catarina e escreveu artigos em defesa do parto humanizado. Jorge Luiz Gayotto de Borba tem 28 anos e é engenheiro de produção. Maria Julia Gayotto de Borba, 32 anos, também é advogada. No livro Temas de direito civil: uma visão contemporânea do direito de família e da criança e adolescente, ela escreveu um artigo sobre a “teoria da perda de uma chance”, aplicada a casos de crianças adotadas. A teoria é usada para condenar uma pessoa ou uma empresa a pagar multa por fazer alguém perder uma chance importante na vida.
No dia 21 de junho de 2023, depois do resgate de Soninha e diante da possibilidade de ver seu nome na lista suja do trabalho escravo, o desembargador e Ana Cristina Gayotto de Borba entraram com pedido de reconhecimento de paternidade e maternidade socioafetiva de Soninha, um processo que corre em segredo de Justiça. Com anuência dos quatro filhos, alegam que receberam Soninha com a mesma dedicação que uma pessoa da família teria.
Os outros três filhos da psicóloga Maria Leonor e do médico Luiz Carlos Gayotto, que conviveram com Soninha em São Paulo, não foram ouvidos pelo Grupo Móvel ou citados nas ações que correm na Justiça. Quase todos aparecem naquela fotografia de Natal, também presenteados com pingentes. Lucia Helena Gayotto é fonoaudióloga, com mestrado em distúrbios da comunicação humana. É diretora vocal de teatro e atriz. Já trabalhou com alguns dos maiores encenadores brasileiros, como José Celso Martinez Corrêa. O caçula Luiz Gayotto, músico formado pela Unicamp, é professor em uma escola pública, onde faz projetos com jovens da periferia de São Paulo. Algumas de suas letras fazem críticas ao preconceito. Na foto, aparece abraçando Soninha. Outra filha, Bia Gayotto, artista plástica, mora em Los Angeles – e não estava na foto.
Depois de ser “desresgatada”, Soninha deixou de dormir no quarto da edícula. Agora, ocupa uma suíte ao lado dos donos da casa, antes ocupada por Jorge Luiz, o filho caçula, que foi morar com o namorado. A equipe da Associação de Surdos da Grande Florianópolis considera que é essencial para Soninha manter contato com seus irmãos biológicos. Desde o telefonema em que Marcelo de Jesus soube que a irmã estava viva, eles se mobilizaram para encontrá-la. O primeiro encontro, que precisou de autorização da Justiça, porque Soninha já havia voltado para a casa do desembargador, começou mal.
Com passagens pagas pelo Projeto Ação Integrada: Resgatando a Cidadania, uma parceria entre o Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro e a Cáritas Arquidiocesana, alguns dos irmãos foram até Florianópolis. Viajaram Lene, Cida, Marisa, com a filha de 1 ano, e Marcos de Jesus junto com a mulher e um de seus filhos, de 7 anos. O encontro deveria acontecer durante as comemorações do Dia do Surdo, na sede da associação. Os irmãos levaram chocolates, uma caneca e uma camiseta. Mas Soninha não apareceu. O desembargador alegou que fora avisado muito em cima da hora e não pôde levá-la porque a sua filha mais velha havia alugado uma casa na Lagoa da Conceição, também em Florianópolis, justamente para comemorar o regresso de Soninha.
Com ajuda das advogadas do Departamento XI de Agosto, os irmãos entraram com um pedido no plantão judicial e conseguiram marcar um encontro para o dia seguinte, desta vez na sede da Polícia Federal. Soninha apareceu com um vestido amarelo. “Quando viu aquele monte de pretinho, todos a cara dela, já arregalou os olhos”, brinca o irmão, Marcos de Jesus. Mas o encontro foi tenso. Além de acontecer no ambiente frio da PF, houve um desentendimento entre o desembargador e Sandra Lúcia Amorim, presidente da Associação de Surdos da Grande Florianópolis, convocada para ajudar na aproximação. Em um relatório apresentado depois para o Ministério Público, Amorim escreveu que o magistrado, em dois momentos, sinalizou com a cabeça o que Soninha poderia fazer e aceitar e, por isso, atrapalhou o encontro com os irmãos. “A presença do desembargador precisa ser reavaliada”, escreveu, “para que ela possa desenvolver autonomia.”
De lá para cá, os irmãos tiveram outros quatro encontros com Soninha – e, aos poucos, vão ficando mais à vontade. Soninha abraça e brinca com os sobrinhos pequenos. A família biológica está aprendendo a falar a língua dos sinais e conseguiu ser admitida como parte interessada no processo de paternidade socioafetiva movido pelo desembargador e sua mulher. Agora consegue acompanhar o que se fala a respeito do destino da irmã.
Os irmãos também retomaram as velhas reuniões deliberativas, inclusive para decidir como fazer na eventualidade de Soninha ir morar com eles. Na enxurrada de dúvidas que inundou a família, eles discutem se de fato teriam estrutura emocional e física para acolhê-la. Concluíram que sim. “Pela memória da minha mãe, e porque somos irmãos dela”, explica Marta de Jesus. Em maio, em uma audiência pública na Comissão de Direitos Humanos do Senado, em Brasília, Marta falou ao microfone. Usando camisa amarela e tranças nos cabelos – e com o irmão Marcos olhando da plateia –, denunciou o evento “surreal” da irmã que voltou para a casa do desembargador. “O que foi revogado não foi só o resgate da Sonia. Ela também não teve direito à família dela, que está de braços abertos esperando.”
Procurada pela piauí, a família Gayotto de Borba disse que não fala porque o processo está em segredo de Justiça.
Em relação a Soninha, não se sabe o quanto exatamente ela percebe do que acontece à sua volta. Mas é tentador lembrar da frase que aparece logo no começo do filme O enigma de Kaspar Hauser, de Werner Herzog – a história de um rapaz que, privado de uma língua, saiu de um calabouço incapaz de elaborar pensamentos: “Esses gritos assustadores ao redor são o que chamam de silêncio?”
Texto de Angélica Santa Cruz
Fonte: Revista Piauí https://piaui.folha.uol.com.br/?s=quest%C3%B5es+brasileir%C3%ADssimas&_wpnonce=7b8f6c28c4&_wp_http_referer=%2Fmateria%2Fsorriso-uma-biografia%2F